sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Ascensão

Porque, de alguma forma, esperávamos ascender a algo, entramos os três no elevador…
Ele desejava-a… tentava disfarçar o desejo por detrás e brincadeiras, mas, no fundo tudo o que ele queria era atear-lhe o fogo que o consumia.
Ela, falsa como sempre, fingia não perceber (era imperioso não perceber) o desejo dele. Fingia aceitar as “brincadeiras” dele como brincadeiras, mas, no entanto, não conseguia disfarçar o ardor que lhe humedecia as entranhas. E eu encostado num canto, ignorado pelos dois, senti que a minha ascensão seria sempre algo estranho, apenas uma fracção de mim próprio.
E dia 29 passou, sem calor e sem desilusão…

Sans titre


29.02.1996

(ao amigo AV)

Tantos os anos que lá vão, nem os contei
Mas vejo ser muito o tempo a ti roubado
Ou, talvez, descrente, sequer eu reparei
Que continuarás em Céu mais abrigado.

Como não entendo a vida que nos dão
Ainda menos entenderia uma vida outra
Deixo só uma palavra pobre de gratidão
Por aceitar que nos guardes aquela Porta.

No mais, muito mais que pouco digo
Manda a saudade que o verbo traça;
Só na aparência não estamos contigo
Só na pequenez a morte é uma desgraça.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

J.L.B.

Quando Borges chegou a Genebra para morrer, vinha acompanhado por María Kodama. No início dos anos 60 ela fora sua aluna de Literatura Anglo-saxónica e Nórdica. Tinha metade da idade dele. Quando se casaram, oito semanas antes de ele morrer, mudaram-se de um hotel numa rua-arquivo chamada Rue de la Tour-Maîtresse, para um apartamento que ela encontrara.
Este livro, escreveu ele numa dedicatória, é teu, Maria Kodama. Deverei dizer-te que esta inscrição inclui crepúsculos, os veados de Nara, noite solitária e manhãs povoadas, ilhas, mares, desertos e jardins partilhados, aquilo que o esquecimento perde e a memória transforma, a voz aguda do muezzin, a morte de Hawkwood, alguns livros e gravuras?... Só podemos dar o que demos. Só podemos dar o que já pertence ao outro!

John Berger, Aqui Nos Encontramos
(trad. Isabel Leite da Silva)

Inscrição (J.L.B.)

Escrever um poema é ensaiar uma magia menor. O instrumento dessa magia, a língua, é assaz misterioso. Nada sabemos da sua origem. Só sabemos que se ramifica em idiomas e que cada um deles consta de um indefinido e mutável vocabulário e de um número indefinido de possibilidades sintácticas. Com esses inacessíveis elementos formei este livro. (No poema, a cadência e o ambiente de uma palavra podem pesar mais do que o sentido).
É seu este livro, Maria Kodama. Precisarei dizer-lhe que esta inscrição compreende os crepúsculos, os cervos de Nara, a noite solitária e as populosas manhãs, as ilhas partilhadas, os mares, os desertos e os jardins, o que o esquecimento perde e o que a memória transforma, a alta voz do almuadem, a morte de Hawkwood, os livros e as gravuras?
Só podemos dar o que já tivermos dado. Só podemos dar o que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. O mistério que é a dedicatória, uma entrega de símbolos.

Jorge Luis BORGES, Os Conjurados
(trad. Maria P. Pereira e Salvato T. de Meneses)

RM

Desassossegas, lá ao fundo do blogue
(como quem ouve e responder não pode)
enquanto te procuram, desesperados
atrás de telas e de véus esfiapados...

Responde-nos, RM, ou dá qualquer sinal
qualquer que seja o teu estado actual
(como se encontram as válvulas e o motor)
pois fatigamos em procura e ardor.

Desassossego II

Abandonar todos os deveres, ainda os que não nos exigem, repudiar todos os lares, ainda os que não foram nossos, viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas... Ser qualquer coisa que não sinta o pesar da chuva externa, nem a mágoa da vacuidade íntima... errar sem alma nem pensamento, sensação em si mesma, por estrada contornando montanhas, por vales sumidos entre encostas íngremes, longínquo, imerso e fatal... Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...

Bernardo Soares

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Desassossego

Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta da entrado do escritório? Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos construímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.
(...)
Olho, como uma extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da pouca luz do cárcere a que se habituara.

Bernardo Soares

The Road

Cormac McCarthy reste l'un des écrivains les plus secrets d'Amerique. Reclus du côté de la frontière mexicaine, tournant les dos aux micros et aux caméras e creuse son sillon en solitaire, claquemuré derrière les murailles d'une ouvre magistrale, tourmentée, hantée par la violence aveugle d'une époque maudite dont le diable semble orchestrer le destin.
(...)
Les deux pénitents de McCarthy sont inoubliables. Il ne leur reste qu'une seule issue: marcher vers la mer. Où les rivages sot fouettés par le sinistre ressac de la damnation. Mais où un pére peut encore serrer son fils contre son coeur. Et où un écrivain peut encore répandre quelques mots sur la grève, comme on vide un chargeur, pour que résonne "l'ultime musique terrestre".
Celle de McCarthy, lyrique, dépouillé, tragique, est un très grand moment de littérature.
André Clavel, Lire (Fev. 2008)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Seda

Seta é o título original do livro de Alessandro Barico, recentemente publicado pela Dom Quixote. É considerado o best seller deste autor nascido em Turim em 1958 e que publicou, além de peças de teatro e ensaios, os romances Oceano Mar, Sem Sangue, Esta História e City, depois de, aos trinta e três anos, se haver iniciado com Castelos de Raiva.
Seda é um romance suave, falsamente lento, que conta a história de Hervé Joncouer, um negociante de bichos-da seda francês que estabelece ligações com o Japão. O livro é de leitura rápida e assemelha-se a um conto longo.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

autoridade


Gehard Richter



Seestuck (Gegenlicht) / Seascape (Contrejour)1969
200 cm X 200 cm
Óleo sobre tela

Filho da Pauta

Ao sabor de uma Perrier (what else?...), o som que se vai ouvindo na Esplanada é o deste senhor. Vincent Delerm... Voz agradável, letras engraçadas - embora buscando um dado cliché de "vivre amoureux", é certo - e melodias descontraídas. Uma breve sugestão para o gira-discos.

domingo, 24 de fevereiro de 2008


Distância

Sentia no corpo e no olhar dela a distância de quem era capaz de esquecer. E eu, receando o que era então inevitável, transformava-me frequentemente num molusco, vivendo na esperança que os meus tentáculos e as minhas ventosas fossem o suficiente para a manter junto de mim. Nunca o foram… Por isso sentia, de uma forma dolorosa, que ela me fugia viscosamente por entre os tentáculos, evitando todas as minhas tentativas de aproximação, deixando uma sensação de paralisia nas guelras e nas cordas vocais.

No Country for Old Men


Antes da chegada do veredicto da Academia, fica o livro: seco, sóbrio, suave e hábil. Sendo certo que literatura não é cinema, venha a escolha.

MÃE/MAR

Quando fores velhinha, de cabelo branco
Continuarás a sentar-te feliz junto do mar
No banco onde ainda t’espreito de espanto
E ver-te é um exercício inteiro de sonhar.

Os dedos já falharão os traços de artista
Com que me pintaste o tempo toda a vida
O areal, o verde não abarcará a mesma vista
Porque foi comprida a tua missão cumprida.

Temo a saudade de olhar o banco, apenas
E ver-te tal e qual, mas sem te ouvir a voz
Ainda que no lembrado olhar dites poemas
A dizer-me que nós dois nunca estamos sós.

Cem anos que eu vivesse te sentiria
Em cada instante que cerro os olhos
É impossível não respirar a maresia
Que contigo se mistura em meus sonhos.

(1.ª versão)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

uma história verdadeira



Só o conhecia em lígua espanhola. Tal como a generalidade do Roth, mostra uma serena angustiosa escrita, com o muito de pessoal que não ignora a universalidade de todos. Agora, na língua de cá da fronteira, será interessante repetir. Vou correndo. Darei notícias.

Les intermittences de la mort

L'oeuvre de Saramago est une toile d'araignée aux allures de gigantesque parabole: à chaque noveau livre, on y voit le monde se détraquer un peu plus, comme si l´humanité courait à sa parte. (...) Ce roman est une fable délirante, une farce tragi-comique où la métaphysique croise la pataphysique, où Cioran se fait alpaguer par le pére Ubu. Et où Saramago brocarde joyeusement une humanité qui chavire parce que son plus vieux rêve - devenir immortel - se transforme soudain en cauchemer. Moralité: la mort, notre pire ennemie, nést pas si détestable que ça.
Lire, Février 2008

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008


GLOSA

Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?

Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do irreal que ninguém tece?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava".

Fernando Pessoa, 1929

MA VIE

Tu t´en vas sans moi, ma vie.
Tu roules,
Et moi j´attends encore de faire un pas.
Tu portes ailleurs la bataille.
Tu me déserts ainsi.
Je ne t´ai jamais suivie.
Je ne vois pas clair dans tes offres.
Le petit peu que je veux, jamais tu ne l´apportes.
A cause de ce manque, j´a aspire à tant.
À tant de choses, à presque l´infini...
À cause de ce peu qui manque, que jamais tu n´apportes.

Henry Michaux

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008



cuco teimoso

O relógio do sétimo, cucando rouco, insistia em avisar por doze vezes que estávamos a meio da noite. Chega!, desabafei-lhe com um som irritado. Deu resultado: só passado uma hora inteira ele voltou a si, e praguejou tímido, uma vez única. Dormi que nem um absolvido, horas atrás de outras. O tolo, julgando-se já liberto, voltou a guinchar doze avisos, assim que a manhã chegou ao fim. Haja paciência…

lábios

Deixa que eu beije os teus lábios rotos
ansioso os vejo, carentes como poucos
deste reencontro pintado de vermelho.

Antes de te chegar, treino-me ao espelho
Antecipando receio de me imaginar velho

Os teus são só os meus, que ali emolduro
não vendo mais que meus se teus procuro
mas insisto em treinar-me pró reencontro
acreditando assim que teus não desaponto

Amanhã, muito cedo ainda, partirei
carregando juventude e longo estágio
e esses lábios que aos meus encostarei
são dos do espelho a carne de plágio.

Afinal, é apenas nosso o que expandimos
fingindo e sonhando ser pertença de outro
e tudo isso, nosso e não, ainda repartimos
deixando-nos, a nós, pedaços de tão pouco

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

T S Eliot

ora aí está!

Claro que não podia consentir aquela nobreza inglória de arruinar as contabilidades. O cavalheiro tem um gosto hirto, parece um pêndulo quando deixa cair os olhos nas somas e nas diferenças! Dito isto, avançou o Sr. Nogueira a descoberta metafísica: o homem, sim obstante, tinha um peculiar decaimento para vasculhar o oco do ser e, como o oco se sonoriza, pintava um eco a cada observação. Tinha de o escolher, concluiu veemente. O VG? – atrevi-me. Paciência, ripostou o Sr. Nogueira: cada Soares tem o seu VG, tal como todos temos um Vasques, na maioria nem damos por tal! Está contratado? – renovei. Contratado; contratado, mas não deixo de lhe deitar a mão ao embaraço: o rapaz é novo… burilando os inícios do Guedes e com umas cinzeladas minhas acho que chega a guarda-livros; se se desassossegar, bem entendido. Bem entendido, terminei eu, como se entendesse.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

teimoso

Ainda assim, aí mesmo afastando hipóteses de um encontro olhos nos outros, teimou-me que o seu lugar estava seguro. Pensava mesmo – imaginem! – convencer VG a ceder-lhe o quarto na Rua dos Douradores; aí aplicaria uns cortinados mais distintos e disporia uns sofás mais fundos e confortáveis. A caligrafia dos números – elogiou-se – transformara em museu os livros de deve e haver. E terminou o relatório ao som de um peito em brasa: “Vais receber concludentes cá do Soares!”

ora essa!

Cá a mim, apeteceu gritar-lhe que tivesse juizo! Afinal, é justamente o que o Sr. Nogueira exige que se tenha para não ser contratado. Mas o moço é fino: ainda chega a guarda-livros. Por enquanto, só lhe digo que, nos tempos que correm, ainda ninguém se chama Bernardo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

o Soares não pode ouvir nada!

Entretanto, o Soares desconfiou da queixa e disse-me que nem pensasse em falar com o Sr. Nogueira. Ele, Soares, era muito mais inquieto, quase inquietado. Se fosse nos dias de hoje, acrescentou-me, teria sido uma criança hiperactiva. Se verá...

Eva beijava

Eva beijava de dentes cerrados e pernas encolhidas, tanta era a culpa que sentia por desejar. Só no Verão, com a chegada do (e)terno sol quente, o seu corpo dilatava; as pernas abriam-se e cresciam de tal forma que impedimento algum lhe tolhia a alma.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

solidário com VG

Que andava desassossegado com a escrita, foi a queixa do Guedes, há dias, quando afazeres me deslocaram a Lisboa. Não era só a falta de vontade, era o patrão – todos temos um Vasques, segredou-me – que pretendia contratar um tal Soares para lhe aprimorar as contabilidades. Não encontrava motivos para esta desconsideração, justamente ele que sempre se demonstrou suficientemente inquietado; a mais, receava que o novo ajudante desse andamento ao livro de insossegos que já lhe roubara noites imensas de insónia, ali no quartinho da baixa, mobilado no preceito de confortar o tédio. Ouvi-o, mas pouco havia a acrescentar: desalento já ele o tinha. Disse-lhe só que se pudesse daria uma palavra ao Sr. Nogueira. Compreendam que o Vicente sempre foi meu amigo.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

que se lixe

São perigosos os instintos da imagem
O que se vê e bem mais o que insinua
Os dedos tremem, falham a postagem
E a cabeça desaparece longe, lá na lua

A precariedade da carne é uma benesse
Ou um castigo que desafia a serenidade
Deixando o corpo no transe que falece,
Enquanto o nervo relembra a mocidade?

Seja como for, cada coisa de sua vez
Nem há esperança que tanto acredite
Vou contar de repente um, dois e três
E esquecer a já esquecida Anna Smith

peço desculpa

Meninos, desculpem por esta interrupção
Mas está Anna Nicole Smith na televisão
Este blogue é um escrito muito educado,
Mas não nos garante salvação do pecado
E que alegria mais suprema pode haver?
De mesmo velho ter uma deusa a entreter
Que cada qual a possa imaginar de per si,
Não careço sonhar mais, depois do que vi

No Távora (com a minha tia)

O rio descia (não eu) como quem ri
E só o acompanhava aos tropeços
Na giesta maior escondia-me de ti,
Cocavas-me dava outros arremessos

Era a tarde das merendas no S. Pedro
Pão de centeio, queijo e marmelada
Depois de esbracejar água, sem medo
A sério, eu nem tinha medo de nada

Contavas então a história da princesa
Moura que enfeitiçara na Granjinha
O príncipe, e eu esquecia sobremesa
E corria novamente, encosta acima

Chegado a casa o pai pedia conta
De uma tarde inteira a fazer nada
E eu deixava os lábios em ponta
E tu fingias-te deveras preocupada

Mas claro que aprendera a aritmética
De contar os passos até saltar ao rio
E guardar a tua ideia tão profética
De aprender a ser um grande tio.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Escher - Auto retrato


A pedido de um amigo...

Receita

Como fui avisado pela Beatriz que a nossa relação tinha poucos anticorpos, corri apressadamente para a farmácia mais próxima com o intuito de comprar uma vacina. “Só com receita médica…” disse a farmacêutica, escondida por detrás do balcão e de uns óculos de massa grossa.
Para quê uma receita?, pensei eu. Não seria suficiente a vontade de todos aqueles que se expõem deliberadamente a todo tipo de vírus?

futuro...

Seguíamos uma condução prudente, distraída com a suavidade da paisagem. Tu segredaste-me ao ouvido esquerdo, numa manobra que só o sonho consente, que tinhas tido ciúmes e muito medo, porque – dizias – como já estou velhinho podia ter-me esquecido do teu número de telefone. Querias dizer que, não fora o acaso, talvez sucedesse nunca mais nos encontrarmos. Não te lembro a cara, mas a voz que ficou é impossível de esquecer. Não guardo o número de telefone na memória, embora não esteja velhinho (que ideia foi essa? Talvez o sonho tenha antecipado décadas…). Já ninguém decora o número, apenas o aponta no telemóvel. Daqui a anos já ninguém lembra nada, porque guarda tudo na Net. Os homens vão perder a memória e, logo a seguir, haverá chips que substituem o pensamento. Mas, a ser assim, porque estavas tu preocupada? Será que o mundo vai regressar ao passado? Ora era só porque os ciúmes, mesmo no futuro, nunca têm razões de compreender?

avanças pelo poema como gazela
a pensar que te livras da corrente
engano teu: se não é laço é trela,
o mundo vai a passo à tua frente

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

desespero de saudades em todo o corpo
como se fosse verdade tu seres imenso
quando afinal é com o sonho que sofro
porque em ti mesmo eu já nem penso
maneirista é teu gosto de poetar, rapaz
como é capaz o capelista no seu posto
enfeita o altar com rosas de embalar
sonhos de apartar as prosas do desgosto

se numa noite fria um viajante

Se numa fria noite de Outono um viajante
Entrasse desabrido nas palavras, em rompante
As dilacerasse em cacos e cacos de sentidos
Dos antigos e breves aos novos e compridos
As puxasse insistente, letra a letra, som a som
Desfazendo-lhe nesse dissecar cada seu tom
Como quem separa pétala e espinho ao lado
Como quem aparta o som do riso do som do fado
E, depois de tudo, mesmo exausto, fosse inventar
Sentidos novos, já perdidos, como se fosse acabar
Por descobrir o último sentido, o sem-sentido
Deus e diabo em verso de prosa desmedido
Nesse verso procurando, acho eu encontraria
Santo Graal, pedra filosofal, enfim, toda a poesia.

Se revirando o poema, carnal – reprocurasse
E hipótese avara, infernal, não o encontrasse
Perdia eu na esperança do lance o selo sétimo
(ele define quem no após mundo resta préstimo)
E lhe diria, de nó no joelho, pintado em pranto
Que por muito que sem resultado fizesse espanto
O que interessa é a labuta, a empresa a que se deu
Pois só no gesto da demanda (só) se alcança o céu.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

coisas da vida

Verdadeiramente, custava-me a ver aquela
Insistência de m’avisares sempre do perigo
Seguindo-me os passos como numa sequela
De um filme mudo, passado e muito antigo.

Se queres dizer, corro riscos, quem não
Os corre, nesta vida airada e d’aventura
Quando nos cabe, dia a dia, essa opção
D’escolher entre desatino e compostura.

Deixa estar assim, d’ânsias embriagado
Na corda bamba entre sarcasmo e siso
Pior seria se me tivesse aí desfeiteado
D’omissões que enganei não ser preciso.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ontem pela tarde ensolarada

Ontem pela tarde ensolarada
Circulando através de Berlin a cidade morta
No regresso de um qualquer país estrangeiro
Senti pela primeira vez a necessidade
De ir desenterrar a minha mulher ao seu cemitério
Eu próprio deitei sobre ela duas pazadas cheias
E de ver o que dela ainda resta
Os ossos que nunca vi
De segurar o seu crânio na minha mão
E de imaginar o que era o seu rosto
Por detrás das mascaras que trazia
Através de Berlin a cidade morta e de outras cidades
No tempo em que estava vestido com a sua carne.

Não cedi a esta necessidade
Por medo da policia e dos comentário dos meus amigos.

Heiner Müller

sábado, 9 de fevereiro de 2008

poema a pedido

Vens agora reclamar-me um poema de lembrar,
Mas há tantos anos que não te vejo na escuridão
Quando te desenhava só por respirar o mesmo ar
Melhor do que se a Miguel Ângelo pedisse a mão

Sabia de cor os gestos dos teus contornos
E a cor com que te desfazias da penumbra
Despindo em correria os vistosos adornos
Que apartavam ânsias tuas das da sombra

O que tenho agora é a intermitência da ilusão
Rasgos soltos que rememoro incerto e a custo
Sem saber se reconstruo ou são restos de paixão
Se és apenas o traço com que à noite me assusto

Desenhar, pintar-te assim um poema não consigo
Confundo o que penso, quero, sinto, com o que és
Misturar na mesma tela desejos de ambos é perigo
Tão grande como pôr a cabeça onde tu usas os pés

Digo pés de propósito, porque a lembrança zangada
Dá a esta escrita um estilo piroso ou até abandalhado
Em vez de um poema irá sair uma grande trapalhada
Porque escreve o desgosto e não o poeta abandonado

Devia deixar ficar, para sentires a dor do castigo
Como eu senti, assim que me mandaste às urtigas
Dizendo que me entendia era sozinho, eu e comigo
Sem que pudesse enfeitar quaisquer outras raparigas

Mas para que te não fiques a rir, eu te minto
Tenho a desculpa de assim serem os poemas
Em vez de consentir o que te choro que sinto
Roubo aos mais hábeis o risco destes fonemas

E se não mais usarei do meu servil talento
Ouso usar um verso obstinado e lento
Para te lembrar ter tentado o que podia
Mas foi o teu augúrio que não quis poesia

a minha cara

Dizes que estou, logo hoje, de melhor cara
E eu sei que nem és budista para acreditar
Nessa mudança que a cada dia nos separa
Da lembrança de em cada dia ainda mudar

A cara é d’ ontem e antes, certamente
E será a minha daqui ao fim dos dias
Salvo se lhe descobriste, num repente
Apagada imagem de antigas alegrias

Ou então, sei lá, dormi anos a fio
E a idade confunde-me a memória
E nem consigo vencer este desafio
D’emparelhar a cara com a história

Como quer que seja, uso a que cá tenho
Que será a que vês, mesmo sem eu a ter
E seja ou não seja, com ela eu me amanho
Porque só me serve a que tu quiseres ver.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Começo

Comecei a morrer numa manhã de fim de Agosto, enquanto esperava por um comboio que me iria trazer de volta a Coimbra. Um calor abafado, de nuvens baixas, criava uma estranha consistência, o que garantia à minha lenta forma de morrer uma sensação de intemporalidade. Entrei numa tasca velha e rasca e pedi um Brandy, café e cigarros. Fumei como se esperasse que algo acontecesse, mas o tempo mantinha a sua marcha da mesma forma monótona e constante...

amores de mar

Escassas as palavras que se confundam
contigo e renovem esperanças perdidas
de quando aceitávamos todo o mundo
como luz a incandescer as tristes vidas.

Tínhamos aí quinze anos e liberdade
era Agosto, o sol queimava os corpos
nenhum saberia dizer, nem a saudade
nem a oração libertadora dos devotos.

Só nos entregávamos à inconfidência
dos beijos ressuscitados além da duna
depois de castelos d’areia em paciência
de conseguirmos o cimento que nos una.

Deixámos no mar a promessa inteira
de nunca esquecermos essa ousadia
que era a cresta agreste da soleira
nos lábios humedecidos em fantasia.

Entrelaçámos mãos em compromisso
eterno como o fulgor dos tais abraços
numa fé ainda maior que a do noviço
que a Deus entrega ambos os braços.

No Verão seguinte não te vi na onda,
senti que o desespero tinha chegado,
rogando que a mágoa, bem profunda
tivesse o mesmo desgosto do teu lado.

Mas não, não sei sequer se foi assim
porque aprendi o timbre da saudade,
fiquei sozinho, mais chegado a mim
mesmo que creditado em liberdade.
R m
(és) uma mistura indomável entre a impossibilidade e o desejo. Um impossível compromisso entre a devassidão e a castidade. O limite do termo nos termos luminosos que consigamos inventar.
Deixa-te estar:
pode ser que eu consiga soletrar uma palavra nova. Tão grande, tão grande que te abarque.

o brilho do teu olhar

Entendo, mesmo a custo, física de partículas
Trato por tu, há quanto, todo o sistema solar
Na estrada sei dos carros todas as matrículas
É meu irmão o mícron, o neutrino e o pulsar.

Coisas complexas de entender, sei eu bem
Sempre a variar nas mentes dos cientistas;
Coisas que, a fundo, nem as sabe ninguém,
Incluso talvez o maior de todos os artistas.

Mas mesmo sabendo tudo isso que sei eu,
Até certezas algumas que poderia ensinar,
Sei que nem roubando o fogo a Prometeu
Entendo, só um pouco, teu brilho d’ olhar.

é verdade

É verdade
Que me pergunto vezes a mais
Porque receio ouvir-te nos meus sonhos
Quando suo suores e solto
Ais
E da tua ausência vejo
Fantasmas medonhos
Será de gostar que tenho medo e me arrepio?
Será a tua voz mesmo suave que me enche de frio?
Anteontem fui para a cama mais cedo
Esperando que o sono viesse
E que se fosse o medo

Arriscar o receio de te pensar
E o mesmo de te perder
(eu sei que não vai dar,
que vou continuar a tremer)

Amanhã cedo o Sol talvez se finja de amigo
Teimando-me que qualquer ideia é um perigo
Não valendo de nada fugir ao pensamento
Seja de ti e da história que nós tínhamos guardada
Como se por um gesto, num escasso momento
O tempo do mundo fosse uma coisa de nada
E eu vou inventar a vida de um dia inteiro
Distraindo-me da tua imagem com coisas que nem sei
Dissimular que te esquecendo pareço porreiro
E que posso findar as coisas que comecei
Mas é tudo mentira e não sou um feiticeiro
Nem consigo explicar-me porque tanto te amei

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Setembro, junto à avó

Em Setembro na altura das vindimas ias
À tarde recolher-te à sombra da ramada
Olhando céu, os bichos, as cestas vazias
Enquanto o bulício mexia a brisa parada

Enchias os olhos da labuta saudosa
Com que recordavas o teu ido tempo
Vendo cada gesto na forma vagarosa
Que confunde saudade e movimento

Se um catraio te reclamava uma atenção
De te ausentares da observação do outro
Arranjavas-lhe gesto de emprestar a mão
Sem que da paisagem vacilasses o gosto

E ganhavas a tarde no tempo perdido
Despreocupada com qualquer desafio
Sem pensares no teu netinho fugido
Que deveria andar a saltitar no rio

Alheio aos deveres de fingir-se capataz
A cuidar dos mostos e do vinho fino
Perdido nalgum verso que não era capaz
De prender ao gosto de continuar menino

E assim o ensinavas sem nada lhe dizer
Que o bom da vida é sentir-se a idade
Interessa é brincar, correr, crescer e ver
Que cada poema tem a sua liberdade.