quarta-feira, 31 de março de 2010


Sinais de enganos...

"Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tamara sem tê-lo sabido. Fora dela espraia-se a terra vazia até ao horizonte, abre-se o céu por onde correm as nuvens. Na forma que o acaso e o vento dão às nuvens o homem fica logo absorvido a reconhecer figuras: um veleiro, uma mão, um elefante..."
gggggggggg
Italo Calvino, AS CIDADES INVISÍVEIS (As cidades e os sinais. 1.)

terça-feira, 30 de março de 2010


Sonhos idos...

"Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos (...), onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações".

Italo Calvino, AS CIDADES INVISÍVEIS (As cidades e a memória. 2.)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Quando fores grisalha e velha, com o sono a te cercar
Dormitando junto da lareira, toma este
Livro, lê-o lentamente e sonha o suave olhar
Que teus olhos já tiveram, e as sombras fundas que leste

quinta-feira, 25 de março de 2010

e...

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.
(...)
Álvaro de Campos, Opiário

Há dias assim...

xxxxxxxx Ao senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola ora adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos d'ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
(...)
Álvaro de Campos, Opiário

domingo, 21 de março de 2010

António Lobo Antunes

Ainda sonha com a guerra?

Às vezes tenho um pesadelo tremendo. Sonho que me estão a chamar para voltar para África. Tento explicar que já fui, argumentam que tenho que ir. E o sonho acaba aqui. Nunca sonhei com tiros ou com morteiradas. No meio daquilo tudo havia muito humor. Havia um homem, o Bichezas, que cuidava do morteiro que estava ao pé da messe. Tínhamos mais medo dele do que do MPLA porque o Bichezas disparava com o morteiro na vertical. Aquilo subia…e toda a gente fugia. Apesar de tudo, penso que guardávamos uma parte sã que nos permitia continuar a funcionar. Os que não conseguiam são aqueles que, agora, aparecem nas consultas. Ao mesmo tempo, havia coisas extraordinárias. Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata e, assim, não havia ataques.

Parava a guerra?

Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica. Era uma sensação ainda mais estranha porque não faz sentido estarmos zangados com pessoas que são do mesmo clube que nós. O Benfica foi, de facto, o melhor protector da guerra. E nada disto acontecia com os jogos do Porto ou do Sporting, coisa que aborrecia o capitão e alguns alferes mais bem nascidos. Eu até percebo que se dispare contra um sócio do Porto, mas agora contra um do Benfica?

Não vou pôr isso na entrevista…

Pode pôr. Pode pôr. Faz algum sentido dar um tiro num sócio do Benfica?

Excerto de uma entrevista na Revista Visão a António Lobo Antunes

Visão 27.11.2003

http://www.ala.nletras.com/entrevistas/VI271103.htm

Outono Quente

- Como se chama a tua nova namorada? (1)

- Cristina. (2)

-Ai. Que a Cristina me vai odiar! (3)

- Não vai nada. Ela nuca vai saber que isto aconteceu… (4)

(1) Perguntou a Joana, assim que consegui voltar a falar, quando espasmos do corpo se desvaneciam e a rouquidão da garganta era amaciada pelo fumo do cigarro.

(2) Disse eu, fracamente pouco interessado naquele tipo de conversa, sobretudo agora que o corpo me pedia descanso e a mente pedia ausência e silêncio.

(3) Joana levou as mãos à cabeça, tapando ostensivamente os olhos, como se procurasse esconder a vergonha que na altura sentia.

(4) Resignado com impossibilidade de evitar o diálogo, virei-me para ela, afastei-lhe as mãos da cara, afaguei-lhe o cabelo e beijei-lhe suavemente a testa…

Lonely - Wraygunn

Dia Mundial

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas en lo mar.

Antonio Machado, Proverbios

sábado, 20 de março de 2010

Apocalypse Now - Helicopter Attack- Kilgore

Nos dias mais escuros

é um dia cinzento
como uma terça-feira em Santiago
encastelado de nuvens
como farófias queimadas em fogão antigo
e eu
resto-me em certeza de desânimo
antes que a noite nasça na cidade.
de repente
nada de mim, são dois
vultos e sombras cruzam-se
no apeadeiro esquecido duma estação deserta
e o frio
inesperadamente a galopar em gume
ressuscita-me uma memória do futuro:
estacionado num palco inclinado
divido a vida em marcas d’outro tempo
e vagueio entre granitos deformados.
encontro um ser passado
belo como uma recordação
(que me segunda um sonho por sonhar)
e parte, deixando-me o desejo.

25.11.09

quinta-feira, 18 de março de 2010

1.

Como a verdade da noite, o som do escuro dobra-se às angústias da claridade, e nós trocamos o mundo da memória - esse que apenas nos recorda os erros de percepção - até respirarmos uma nova luz. Margarida Maria tinha passos de nuvem, como se tivesse engolido todos os relógios e balbuciasse infinito, momento a momento, sempre e antes. Nas eras do tempo, antigamente, pretérito, ainda o homem creu que os dias se seguiam, e o escuro da noite se apartava da largueza da luz. Em vão; invariavelmente enganado.

Um livro fascinante...

Irreversible

terça-feira, 16 de março de 2010

barco

Meu coração é um barco. Perdido
das graças e do mar. Nem prata
da noite me refaz a solidão. O escuro do dia
a luz das estrelas:
deixem que viva ao contrário do ritmo. E se
invento gestos, imitador das ondas,
nem a espuma lava os dias mansos
serenamente pausadamente irmamente
esperando as horas de Godot.

Navegarei um dia à tona das nuvens
cerzido rendilhado, curvas a destroçar,
enquanto os olhos dos peixes bogalham
tanta certeza da dúvida.

E o meu barco voa, só por ser inquieto,
que as malhas (caídas) do tempo assim o impõem;
em descoberta de azul degradê
como um solfejo a percorrer a pauta em bicos
(espelho de gestos que só a imagem cria)
tropeçando nos fios, os que
podiam cercar anéis em saturno
(poeira igual ao baço acordar dos teus olhos)
ou só as desgraças - só - com que se esquece a chuva
no falso morno de um sol de Fevereiro. Coração e barco
perdido em mês sem tempo dum ano sem calendário.
Seja fevereiro... (nosso amor é solidário:
aos mais pequenos!).

Tivera eu um navio. Também tu tens os olhos azuis
e o mar - acuso - plagiador... Há dias em que a luz entra
no respirar do vento e ganham traços de cristal
(com o seu vences o mar. Saudade)

Em vezes, sem rombo nem assombro
cai-me o coração ao mar. Sufoco de imensidão
balouço em agitamento razão inventadas
numa tarde de luz roxa.

(...)

E de nada serve o perdão do alheamento
o doce sono que finge a espera
o silêncio das cores misturadas
as ondas que chilreiam antes da manhã
Nem ir de novo em busca da aurora

O meu coração é um barco cansado
do mar e dos sargaços. Vive num cais sem espera
a acotovelar-se com os desânimos.

Naufrágio de um oceano longínquo.
Onde os sóis brincam sombras
com as crianças traquinas
e os jogos fazem o xadrez dos panos.
(...)

Dedicoratória II

Este conto é-te devido, Margarida. Conta quantas estrelas roubámos do céu nas noites claras em que os olhos piscavam de procura. Conta as vezes das vezes que os lábios humedeceram as manhãs, antes da madrugada cantar vitórias. Conta o receio do teu peito, o aprendiz do meu jeito e, um a um, todo o preceito com que violámos as regras. Conta as histórias por contar, roubadas das nuvens de sonhos por poetas famosos. Eram nossas e estão perdidas nas calçadas de basalto que os pescadores salpicam. Mas conta, muito mais que a totalidade do mundo, o que sempre fica por reinventar naquele mês de Neruda além de Dezembro, antes de Janeiro. E o nome da Rosa, que Borges usava a dar-lhe o aroma da cor. O perfume de Eugénio. As raivas de Júpiter, a tentação de Cristo, a figueira de Shidarta. conta que nos teus olhos se via o cristal dos alquimistas, a caverna, as categorias, um beijo de chá no côdo de Novembro. E os atritos do mundo que Ludwig ensinava ser precisão dos passos. talvez te copie um poema de Novalis, um sonho de Rimbaud; que a juventude é modo único de contar.

domingo, 14 de março de 2010

Recordações da Casa Amarela

sonhei

sonhei que estava acordado
e deixavas cair no meu ombro
os olhos tristes que separam
o teu cabelo loiro
- tesoiro das searas que eu sonhava -
e as tuas mãos triangulavam em prece

no rogo dum beijo solitário
com que sonhaste sem m'o falares
sem mo pedires
por cuidares
que era só sonho o sonho
onde o beijaste

e que os lábios eram espumas das marés
desfeita serradura no convés
onde marinheiros sonhavam as sereias

e a meias
sonhámos novo beijo sem o dar
ainda por inventar

que o sonho dado ao mar
sempre foram beijos futuros
por voar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

O Dia Triunfal

"... foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não consigo definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre."
FERNANDO PESSOA

quinta-feira, 4 de março de 2010

Momentos

(Folhetim semanal. Com este número do blogue de hoje e por apenas mais cinquenta cêntimos de paciência, os capítulos 1 e 2)

#1 "Bom dia, são agora sete horas da manhã, está na nossa companhia" - ouvia-se no rádio-despertador. A voz do locutor em altos berros, acompanhada pelo hit do top dessa semana, não queria dar mais espaço a quaisquer sonhos que pudessem ainda habitar debaixo da almofada, por onde João tentava pedir asilo político contra mais um dia que o esperava. A custo, João levantou-se, abriu a porta do quarto e atravessou o pequeno hall da suite, em direcção à casa de banho. Inclinando-se para o lavatório, abriu a torneira da água fria, depois um pouco a da quente e mergulhou as mãos na corrente amena, molhando de seguida a cara. Já mais desperto, olhou-se ao espelho e decidiu fazer a barba. Nunca deixava de se espantar com o facto curioso de lhe parecer que a sua barba estava sempre consideravelmente maior depois de uma noite de valentes copos. Talvez fosse da ressaca... A percepção das coisas saía modificada quando a recordação da noite anterior era ténue e, por isso mesmo, angustiante, obrigando-o a enfrentar um mundo muito mais real do que aquele a que se tinha entregado. Tudo era muito mais feio, mais cruel, mais ingrato. Na verdade, as inibições voltavam sempre e o que parecia ter sido uma saída elegante, uma gloriosa aventura, uma noite intensa de bem-estar perpétuo e a definição de uma nova pessoa - um rei da noite, um sultão em terreno conhecido, uma estrela de cinema em potência, quiçá - não eram agora mais do que a estúpida certeza de que voltava a estar consigo próprio - uma figura grotesca, a cicatriz dos excessos ali bem exposta. Para não falar da dor de cabeça e da náusea constante que o impelia a vomitar, por cada vez que virava a cara para o lado para passar com a lâmina por uma zona mais difícil de cortar. Voltando a mergulhar a cabeça na água, agora mais fria, tentava recordar-se do impossível. De tudo quanto tinha acontecido. Lembrava-se de uma vodcka pedida por entre uma multidão que expelia um suor perfumado - os preparativos de milhares, para uma noite que acontecia e que nela estavam ali a ser gastos, desvanecendo-se e reduzindo todos a uma igualdade espúria -, um encontrão de um segurança mal-encarado que talvez lhe tenha dito para "andar mais direito", uma cara feminina - da menina do bar - falsamente sorridente, que lhe conduzia a mão ao copo e ao cartão... Um táxi bafiento... O portão de entrada do prédio que insistia em ondular à vista. Pelo menos, não tinha havido nenhuma zaragata... Não foi vítima de nenhum assalto. Sete e quarenta e cinco. Tinha que se despachar mais depressa. A cabeça latejava-lhe nas têmporas e cada movimento que fazia, ao vestir a camisa branca ou as calças de xadrez, preto e branco, apenas lhe lembrava que devia voltar para aquela cama que ali estava, meio desfeita, terrível tentação de "apenas mais uns minutos" de descanso. "Tu estás velho, pá. Já devias saber que este tipo de coisas não são para a tua idade, caralho!" - a auto-recriminação parecia tão certa nestas alturas e, no entanto, estava sempre a cair nos mesmos enganos. "E vê lá tu, pá, se tinhas necessidade de acordares assim logo hoje... Logo hoje que tens coisas novas a chegar"... "Pareces um puto irresponsável" - e esta constatação talvez fosse aquela com que lhe custava mais lidar. Porque o que mais lhe apetecia, no contexto de dilemas tão básicos - os únicos permitidos por uma performance intelectual ainda diminuta àquelas horas e depois do fatídico serão - era, realmente, ser um puto irresponsável. Enquanto aquecia um café na cafeteira eléctrica que Paula - a antiga namorada - lhe tinha oferecido no seu último aniversário, procurava freneticamente as chaves de casa, do carro e da galeria, na banca central da cozinha que se encontrava cheia de postais, cartas, contas para pagar, pratos sujos, copos de vinho a meio - tudo fazendo parte de um cenário de horror de um fim-de-semana sem empregada e absolutamente diletante. "A dona Josefa disse que vinha hoje à tarde... Ainda bem!" - pensou, aliviado. Já a sair porta fora, o seu telemóvel tocou. "Estou? És tu Mané?" - atendeu. Do outro lado, uma voz agitada respondeu-lhe: "Ò João, pá! Mas o que é que tu andas a fazer, meu palerma? Onde é que tu estás, pá?" Meio atrapalhado, João disse: "Eh pá! É só mais meia hora e estou aí, ok?" "Tu já devias cá estar, foda-se! Andas a brincar com isto, andas, andas" - o sócio de João, por vezes, parecia pai dele. Não suportando a crítica, João desligou abruptamente o telemóvel e entrou no elevador. Em direcção à cave, a garagem do prédio, recapitulou as suas tarefas para o dia de hoje. A encomenda chegava dentro de uma hora. Às onze da manhã, tinha a reunião com o agente do expositor, ao meio-dia encontrava-se com os publicitários para dar as indicações para o catálogo e logo depois começaria a pendurar as peças. À tarde, era abrir as portas antes das três. A festa oficial seria apenas dali a três dias e ainda tinha que falar para a empresa do catering. "Que cena. Bem que podia ser eu o fotógrafo". - pensou João com algum ressentimento. De facto, desde os seus tempos da faculdade que se interessava por design, música, roupa e tudo aquilo que, segundo a sua percepção, eram os componentes essenciais de um estilo de vida pop, sempre jovem, sempre na moda, enfim, sofisticado. Contudo, como não tivesse nenhum dom especial para nenhuma das áreas assim definidas, João tomou outra opção. Ficar a olhar... Ao invés de estar do lado da criação, estava do lado de quem vendia e fazia dinheiro com a criação dos outros. Posto isto, realmente a única coisa que lhe restaria era ficar ali, captando momentos atrás de momentos. O negócio, que tinha aberto com o Mané, seu companheiro de quarto durante o curso de História, traduzia-se nos oitocentos metros quadrados de uma ampla loja na baixa, com paredes brancas e banais expositores que, quando vazios, lhe davam a sensação de apenas estar de guarda ao vácuo. Uma galeria, afinal, devia ser mesmo isso, um espaço em branco para que outras estórias, as únicas que existiam, pudessem ser contadas, desfrutadas e, sim, vendidas. Ligando a chave do carro, carregou no botão do auto-rádio e tentou apanhar a estação das notícias. Desde que lhe tinham roubado a antena a única coisa que apanhava era estática. Premindo o botão do CD, começou a ouvir os primeiros acordes de sintetizador da música de dança que o tinha acompanhado na noite anterior. Não estava a ter o mesmo efeito que na noite anterior, fosse lá ele saber - como sabia - porquê. De caminho em direcção à baixa da cidade, entre lentas filas de trânsito, foi aproveitando para fazer alguns telefonemas para os tipos do catering e convidados de última hora que ainda não tinham confirmado presença na festa de lançamento da nova exposição. Tudo certo. Já não era mau, para o começo de um dia que deveria ser muito longo. Ao chegar à galeria, Mané, um sujeito de trinta e cinco anos, gordo, cabelo preto e farta barba veio ter com ele à porta e, sem grandes cumprimentos, disse: "Já adiantei algumas coisas, mas precisava de ter algumas indicações tuas". "O gajo já chegou?" - perguntou João, referindo-se ao agente do artista. "Estava a tentar arranjar lugar para o carro, há cinco minutos" - respondeu Mané. "Bom, então, aguardamos para vermos o que ele tem para nos mostrar. Tenho algumas ideias sobre a maneira como devemos dispor as fotografias, mas não quero que esse gajo comece a fazer ondas" - disse João de olhar franzido. A dor de cabeça parecia querer dar tréguas, mas não era garantido que assim fosse. "Porra, João, tens de ter mais cuidado contigo, homem. Ainda por cima andas a sair à noite e não me convidas" - queixou-se Mané, meio a brincar, meio a falar a sério. "Tens razão. Mas olha que a noite não valeu de nada. Não se vê ninguém. Poucas gajas. Por isso não andas a perder grande cena". "Tu esperas mesmo que, numa noite de semana, alguém saia de casa? Só estou a ver alguns otários capazes disso e, mesmo assim, ter esperança de encontrar alguma coisa" - contrapôs o sócio, com uma daquelas gargalhadas tão anafadas como ele e que só o próprio sabia entoar. João lamentou-se: "Sabes, pá, começo realmente a achar que esta porra de vida não vai dar a lado nenhum. O tempo passa e é sempre a mesma cena. 'Cum camandro, pá!" De testa meio franzida, Mané respondeu: "Tu toma tininho, homem! Toma tininho e leva as coisas com calma. É como te digo, tens que ter juízo". Para o sócio de João, este era o ritual de sempre... Para ele, João era uma pessoa que parecia ter parado no tempo... que não tinha crescido e que ainda se julgava nos tempos de estudante. Isso não fazia dele má pessoa e também não era nada que o saturasse. A amizade deles era daquelas bem sólidas, feita de muitas cumplicidades e de grandes aventuras vividas juntos. João haveria de ver a sua vez chegar. Assentar com alguém e ter uma vida igual à sua e de todas as outras pessoas que, a certa altura, ao envelhecer, vêem que ser jovem para sempre, para além de ser uma maçada e uma utopia impraticável, é uma excelente moeda de troca relativamente a uma vida estável, com dinheiro ao final do mês e uma família decente. E no meio destas suas reflexões, julgou ser este um momento tão bom como outro para lhe dizer: "João, tu lembras-te daquela proposta que me fizeram para Barcelona?" "Lembro. O que é que tem?" - perguntou-lhe João, enquanto folheava descontraidamente as guias da encomenda. "Pá... Aceitei. A Teresa já começou à procura de casa e mudamo-nos para o mês que vem.". Ao olhar para João, Mané começou a perceber que talvez esta não tivesse sido a melhor altura para contar a João as novidades. "Mas ò Mané... Dizes-me isso assim? Dessa maneira?" - João parecia incrédulo. "Como é que tu querias que eu dissesse?" - Mané estava agora atrapalhado. "Foda-se! Então sempre vais? E a galeria, pá? Como é que tu achas que me vou virar sozinho???" "A minha parte, tal como está na escritura, passa para ti. Já está tudo assinado. Faltas apenas tu. O registo pode ser feito imediatamente." - Mané disse rapidamente. "Não sei o que te diga, Mané" - João sentia-se meio desfeito. "Desejas-me sorte". "Mas tu? Como professor?" - João tentava rir-se. "O que é que tem" - Mané tentava agora aliviar o ambiente, pantominando uma pose séria, a condizer com a de mestre de uma qualquer disciplina importante. "Ok, ok... Estou a ver. Vou sentir a tua falta." - o desabafo de João era sincero. "E eu a tua, João." Trocavam um olhar de sincera perda, quando, à porta assumou um sujeito banal de óculos escuros redondos. Vestindo um fato dois tamanhos acima da sua minúscula estatura, uma gravata que parecia maior que a sua cabeça de alfinete, cumprimentou ambos com um nervoso aperto de mão. Vitor Castanheira, agente do fotógrafo Jacinto Lopes, ou JL, como, confidenciou, o artista gostava de ser chamado. Após algumas piadas veladas sobre tal pedantismo, que de excêntrico não tinha nada, João e Mané fizeram uma pequena introdução sobre o espaço - de tão imenso que era e vazio que estava, a introdução realmente só podia ser pequena - e recapitularam as condições, as cláusulas e as comissões. O Castanheira parecia concordar com tudo... O artista ainda era jovem e precisava de projecção. Nada de especial. A galeria orgulhava-se de ter lançado, no ano anterior, dois novos nomes "emergentes no panorama artístico nacional" e era agora uma referência em vários roteiros turísticos da cidade. Bons clientes que eram sinónimo de boas compras, como garantiram, davam ao agente do JL, o descanso que buscava nessa luta pelos interesses do seu representado. Já passava da uma da tarde - e já após terem mandado os publicitários pela porta fora, a fim de refazerem todo o catálogo, insistindo que o mesmo precisava de "mais cor... esse esquema é coisa de meninos da quarte classe, pá" -, quando a última fotografia foi pendurada. Intitulada #Semblante, revelada em papel de arroz, em tons de preto e branco de uma nitidez aveludada e com a saturação ideal, bem como exposição e luz, representava um sorriso feminino, apenas se vendo a metade de uma cara jovem, fresca e com uns lábios irrequietos. João ainda pensou, sem olhar muito bem para o obra, "olha mais um com a mania que é o Vermeer da objectiva digital". Contudo, vista ao pormenor, aquela metade de olhar começou a intrigar João. Não havia indicação de quem era a modelo, embora parecesse ser alguém com vinte e tal anos. Também não tinha data. Mas não era propriamente esta falta de informação que o inquietava. Era a forma como aquele "semblante" se lhe impunha aos sentidos... Era como se já se tivesse cruzado com aquela pessoa, sendo a mesma várias pessoas, outras pessoas. Não comentou nada com Mané, que estava entretido a enviar mails para a namorada. Ainda lhe disse para irem almoçar ao café, mas Mané recusou. João saiu para a rua e... e, de súbito, parecia estar ainda a alucinar com os eflúvios do álcool consumido na noite anterior. Uma breve tontura tinha-se seguido à visão que teve, qual instantâneo. Ao longe, de perfil, uns cabelos pretos pareciam ocultar um rosto que ia jurar ser o mesmo da fotografia que tinha visto. Ao tentar clarear a vista, perdeu-lhe o rasto, após a passagem de um automóvel que tinha retomado a sua marcha, ao sinal verde do semáforo. Acto contínuo, teve o estranho pressentimento de que este seria um primeiro momento de outros tantos que aí viriam e que lhe mudariam a vida. Talvez estivesse numa de acreditar em partidas desse cliché chamado "destino". #2 "Boas tardes, senhor João, tudo bem consigo?" - perguntava Pessanha enquanto João puxava a cadeira de madeira escura para se sentar na mesa de mármore do costume, ali na cervejaria "Camilo com Pimenta, Lda. – Bifes, mariscos, cervejas várias, águas finas", do outro lado da rua da galeria. "Vai-se andando, Pessanha, vai-se andando" - respondeu João, enquanto sentia a dor de cabeça a instalar-se ainda com mais intensidade nas têmporas, fruto de se ter sentado muito depressa no assento de couro duro e rígido. "O que é que tens aí hoje que se coma?" - atalhou, impedindo que Pessanha começasse a discorrer sobre o rescaldo da futebolística noite europeia - algo que João apenas consentia, respondendo com lugares-comuns, em dias mais leves e por mera simpatia. Pessanha pareceu ter percebido que hoje o senhor João não estava com disposição para discutir o derby da Liga dos Campeões, respondendo prontamente com o seu forçado estilo de profissional: "Há uma salada de polvo fresquinha feita mesmo há pouco". O estômago de João protestou, vigoroso, perante tamanho despautério. Uma vez mais, Pessanha adiantou-se: "Mas se quiser outra coisa mais leve, manda-se vir o bife grelhado do costume, senhor João". "Olha, pode ser. E já agora traz-me uma água com gás fresca e o jornal de hoje, se fazes favor" - pediu João. Arriscando, Pessanha lançou a piada, ainda que a medo: "Noite difícil, senhor João?". João apenas sorriu e disse: "Oh pá. Nem me digas nada... nem me digas nada". Com isto o empregado, feliz com a pretensa cumplicidade que pensava ter criado com este cliente fiel, foi até ao balcão, gritando lá para dentro, com ares de superior hierárquico - consciente da sua posição na pirâmide profissional «do ramo da hotelaria» - o pedido feito por João. A água estava mesmo fresca. Os pequenos flocos de água gaseificada, congelada na garrafa que era guardada na arca frigorífica glaciar, derretiam-se-lhe na boca, quais pedaços de neve. Realmente, não havia ainda melhor remédio para a ressaca do que uma água mineral com gás, bem fresca. Pelo menos para ele que se achava, mais um cliché, um amante de coisas simples. E foi no meio destas suas lucubrações muito básicas, ao alcance das possibilidades deste "dia seguinte", que João notou na pessoa que entrava. Um sujeito que costumava também ir à cervejaria mas completamente desconhecido para si. Não gostava do homem, ou, pelo menos da sua figura. Sempre de blusão azul de tecido, camisa às riscas, gravata a condizer, calças de ganga e sapatos de pala, com berloque. Curiosamente não seria tal trajar, susceptível de ferir a sensibilidade de um qualquer consultor snob de moda, aquilo que lhe provocava irritação. Era, outrossim, aquele bigodinho escorreito, estreitinho, que encontrava enquadramento nuns óculos, com fundo de garrafa e demasiado redondos. Era a imagem mais odiada de João, porque de bafiento funcionário público, burocrata improdutivo. Ainda por cima, tinha o péssimo hábito de, acabada a refeição - uma sandes de queijo e um copo de vinho - palitar os dentes com a unha do dedo mindinho com uma alegria quase fetichista. João deixou-se mergulhar nos artigos de opinião da última página do jornal, como que decidindo abstrair-se daquela imagem tão gratuitamente grotesca. Pouco tempo depois chegava o seu bife grelhado com arroz branco e uma rodela de limão. Para beber pediu outra água com gás, mas "desta vez, natural, está bem? A outra estava muito gelada, pá!... Pois, Pessanha, eu sei que é a arca... Tá... Não faz mal... Obrigado". Continuava a pensar no seu avistamento desta manhã. Coincidência? Associação forçada de imagens? Sim. Seria o mais provável. "A bebida, realmente, anda-me a fazer mal, caraças" - protestou para si mesmo. Mas lá que aquele rosto o intrigava, lá isso era verdade. "Vou perguntar ao tal JL, quem é a modelo" - decidiu. Não tornou ao assunto, preferindo pensar, enquanto acendia um cigarro, no trabalho que o esperava na loja. “

Por Alexandre Villas-Diogo.

terça-feira, 2 de março de 2010