quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Lisboa I

Ao longe um barco sem flores
deixa no Tejo um risco de sofrimento;
dizes que trarão saudades
os contentores vermelhos que o engordam;
deixo seguir a vista; imagino o deleite
com que reinventas essa poesia do concreto.
Alfama parece um lego, e
umas ceroulas penduram-se num fio
como podia ser nas unhas duma gaivota;
tão surreal assim, o resto de cerveja
espuma-me uma confidência, e eu: "vamos"!
Lisboa, tarde de um ano que chegará.

Lisboa II

E o polícia desfralda a boina
como um certificado
e a mulher gasta, toina
repete-lhe o gesto, e é pecado;
no intendente há sempre gente,
passei o martim moniz e, por um triz,
alcancei o rossio na ocasião do desafio:
a mulher voltou ao lugar do engate
o polícia emboinou (que disparate...).
Lisboa não anda boa
do juízo. Nem é preciso.

De frente para o mar

Com a organização e o prefácio de David Rodrigues, e comemorando os 150 anos do tratado de Paz, Amizade e Comércio entre Portugal e o Japão (2010), foi publicado um livro de poesia haiku contemporânea, com a participação de vários autores portugueses. Chama-se De frente para o mar (Palimage, Coimbra, 2010) e aqui se deixam algumas gotas dessa escrita frugal.

Peixes: os sobreviventes
dos antigos
naufrágios

(Albano Martins)

E tudo são conchas -
ossos musicais que podiam
ser relva ou bronze

(Casimiro de Brito)

ouves o mar?
e o vento? e as gaivotas?
- É o silêncio.

(David Rodrigues)

Giro o globo
o dedo indicador
perde-se no Pacífico

(Dinis Lapa)

saudade -
e tudo o que tenho
é este búzio

(Lécio Ferreira)

praia matinal -
cheiros distantes regressam
no cheiro das algas

(Leonilda Alfarrobinha)

Onda a onda
O mar
Se anuncia

(Liberto Cruz)

no fundo do mar -
uma concha adormece
sem ruído

(Lucília Saraiva)

No fundo do mar,
passam devagar as sombras
das aves, dos barcos...

(Luís Domingos)

Amendoeiras em flor,
espuma do mar
no novo corpo da deusa.

(Yvete Centeno)


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

tempo saudoso

E agora, que agonizo os dias
na tua saudade; só mesmo por ela
que me lembro o esquecimento.
Penhoro-me a promessas
do teu regresso
invento modos de te ver
nas formas da escuridão,
e angustio os segundos
com que o tempo se fractura
e dilacera entre os momentos.

verão de promessas

e agora, que o sonho se deslumbra
na terra fria, lá onde os pássaros
repousam gravilhas de pasmo,
e eu respondo que entendo o mundo
entre o perplexo de um olhar d'areia
e o mar azul, azul de azul e cor
onde repouso os ombros do cansaço
futuro, onde, cada vez onde
intrigo o espaço que amanhã
traz bagatelas de dúvida
e respiração de sossego: canto
outra vez as promessas antigas,
julho e agosto, mar e lábios
ternuras de porvir

julho. 2010

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O velho que lembrava romances de amor

Num gesto mecânico, apertei o dorso
como quem se abraça num hábito
e o pensamento esbracejou em fumo
até se diluir nos contornos do presente;
era só a saudade, amalgamada
em resíduos de memória
que te inventava nos contornos
onde eu segurava, temerário
ilusionistas ares de realidade:
já te fugiras, sem eu crer
ida nos tempos puídos dum calendário
onde as moças dos pneus
ainda usam corpetes de renda;
oh!, anos de brasa (frios)
- bêbados como na lei seca:
o século há muito partiu
e eu fiquei na grande guerra
perdida, sempre
em invenções de fantasia.