quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Momentos (de #Natal)

"A lareira crepitava, num ritmo lento e compassado, trazendo ao espaço um calor que apenas era comparável àquele que os olhos de Luísa deixavam transparecer. Entre os seus dedos esguios rolava agora um copo de balão, onde um preguiçoso brandy era servido a uns lábios que, nessa noite, apenas conheciam os beijos quentes de uma paixão que tinha encontrado o seu porto de abrigo.
João, não sem algum prazer, notou que mal falavam e que nem disso precisavam. O encontro deles, ali, naquela mesma sala de há uns meses atrás, já falava por si.
Mesmo assim, João arriscou: «Já viste bem o caminho que nos trouxe até aqui?».
Luísa sorriu e respondeu-lhe:«Não foi por culpa minha que ele foi tão longo». Ele sabia que não tinha resposta.
«E agora, Luísa, que se segue?», perguntou João, enquanto lhe afastava uma madeixa de cabelo da testa, beijando-a suavemente.
«O que nós quisermos...» - respondeu ela.
Para esta noite, era tudo o que ele precisava de ouvir. Estavam juntos e o momento, mais um, era de Felicidade."

Alexandre Villas-Diogo, "Momentos"

Natal #3



Para agitar, antes de abrir... mas só um bocadinho que é #Natal!

A todos um

LLLL
B O M N A T A L

NATAL

Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma nova Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
JJJJJJJJJJJ
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
LLLLLLLLLLL
FERNANDO PESSOA

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

um dia inteiro sem

sem consolo certo da mão amante
- que enfeitava dedos a trautear carícias -
ganho cabelos alvos na manhã seguinte
logo que o sol relembra o teu espaço vaso
e os lençóis suplicam outra saudade;

já não há noites cândidas
deixando romper o escuro
- como antes d'agora-
com sopros do olhar tímido
brilho no espelho
onde desenho os contornos dos teus seios.

é que hoje
a ausência é feita de silêncio claro,
e as promessa esfacelam-se
em trilhos d'ideias solitárias,
em buscas, sulcos, caminhos,
actos por pisar
nos pés doridos com que percorro o dia.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Cálculos temerários

Conheço a distância exacta
entre os nossos peitos,
que numa álgebra de lábios
calculei em vírgulas de filigrana.

Há um instante futuro
que abre uma brecha imperceptível.
Mas tão futuro, tão futuro
que até lá te aperto, eternidade toda.

(9.06.09)

sulcos

tenho nas mãos o silêncio das terras
que ancestrais sulcaram d'adivinhas
linhas, quando lavraram pastos e vinhas
em outonos tristes e primaveris esperas

Neste momento todo o mundo
é tecido em branco d' algodão.
Num final alento (último segundo...)
perde sentido não te sentir a mão.
E por isso te peço, rainha dos dias
abençoa meu desejo mais puro:
Sei que não mereço outras alegrias
só perder o medo deste sítio escuro.

Consciência


Cada minuto uma questão
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso

Mário Dionísio
As solicitações e emboscadas, 1945

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

País da Tarde



País da tarde,
a que se deve esta demora?
Que luz é esta
que não vem de dentro nem de fora?
Que presença é esta
que está até chagarmos
depois vai embora?

Os meninos fechados
num ponto final
ou os olhos dos meninos
há muitos anos mortos
e ainda com brilho.

De tanto esperarem
são aquilo onde ficaram.
País da tarde,
em que direcção estamos parados?

Recitam distâncias
dantes eruditas
as luzes de néon enlaçados no corpo
e as avenidas alongam-se
até desaparecerem nas dunas.
País da tarde
a quantos metros estamos do deserto?

(...)

País da tarde,
quantos mais anos são precisos
para passar o que passou?

Há alusões e vestígios
que os comparam ao que são.
As ideias favoráveis
são lacónicas
e ensinam umas às outras
uma exactidão nova
portátil e breve.
A face sísmica do século
reduziu a memória
a um texto curto:
agora é só fazer como se escreve.

Boaventura de Sousa
Viagem ao Centro da Pele
Edições Afrontamento, 1995

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

JUSTIÇA

Mas acredita que um poema pode salvar alguém?

Penso que é possível o poema salvar, se num determinado contexto o poema for dito por um justo ou for lido por um justo. São os justos que salvam o mundo. Se o poema for uma forma radical de justiça, o poema salva. Se não, há-de ficar como um ornamento.

José Tolentino Mendonça,
Revista LER, Dezembro 2009

O infinito sempre nos fascinou...

Porque perdemos tanto tempo a tentar completar coisas que, de um ponto de vista realista, não se podem completar?

Nós temos uma limite, um limite muito desanimador e humilhante: a morte. Por isso gostamos de tudo o que para nós não tem limites e que, portanto, não tem fim. É uma fuga que nos distrai de pensar na morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer.

Umberto Eco,
Comissário da nova exposição (no Louvre) sobre listas
(a natureza essencial das listas!), entrevista à Der Spiegel (Jornal i)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Quarta-feira, 9 de Dezembro na RTP2 (trailer)

ESECTV no espaço UNIVERSIDADES da RTP2. Trailer do Programa nº151 da ESECTV. Emissão: 9 de Dezembro de 2009. SOBRE A MÚSICA EM COIMBRA
NESTA 1ª EMISSÃO INTERVENÇÕES DE RUI FERREIRA, DIOGO CABRITA E PAULO FURTADO....

A liberdade é só de fantasia

Vem deitar-te no leito
que meus braços te doam
e recuperar dos sonos antigos
(quando o frio te fingia de sonho
e acordavas debruçada nos passados
que a infância guardou em demasia)
Há agora um sol a visitar-nos nas noites mais escuras
e podemos sorrir tão d'alto
como os trapezistas espreitam o riso dos palhaços
Embalo-te nos acordes da canção recuperada
cheia de cerejas de Junho e de uvas de Setembro
- podemos fechar os olhos e ver o mundo um do outro
sem gestos excessivos
sem que a porta ronque uma dúvida
sem precisar de pecar
quando (des) fazemos as mesmas coisas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

"Alguém sonha"

Que terá sonhado o tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice? Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso. Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria. Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas. Sonhou os gregos que descobriram o diálogo e a dúvida. Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal. Sonhou a palavra, esse grosseiro e rígido símbolo. Sonhou a sorte que tivemos ou que agora sonhamos ter tido. Sonhou a primeira manhã de Ur. Sonhou o misterioso amor da bússula. Sonhou a proa do norueguês e a proa do português. Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, aquele que morreu uma tarde numa cruz. Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates. Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho. Sonhou o espelho em que Francisco López Merino e a sua imagem se viram pela última vez. Sonhou o espaço. Sonhou a música, que pode prescindir do espaço. Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável do que a música, porque inclui a música. Sonhou uma quarta dimensão e a forma singular que a habita. Sonhou o número da areia. Sonhou os números transfinitos, a que não se chega contando. Sonhou o primeiro que no trono ouviu o nome de Thor. Sonhou os opostos rostos de Jano, que não se verão nunca. Sonhou a lua e os dois homens que caminharam sobre a lua. Sonhou o poço e o pêndulo. Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinoza. Sonhou o jasmim, que não pode saber que o sonham. Sonhou as gerações de formigas e as gerações de reis. Sonhou a vasta teia que tecem todas as raanhas do mundo. Sonhou o arado e o martelo, o carangueijo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrêz. Sonhou a enumeração a que os tratadistas chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos. Sonhou a minha avó Frances Haslam na guarnição de Junín, a um passo das lanças do deserto, lendo a sua Bíblia e o seu Dickens. Sonhou que nas batalhas os tártaros cantavam. Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que depressa será uma onda. Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet. Sonhou os arquétipos. Sonhou que ao longo dos verões, ou num céu anterior aos verões, há uma única rosa. Sonhou o rosto dos teus mortos, que agora são esmaecidas fotografias. Sonhou a primeira manhã de Uxmal. Sonhou o acto da sombra. Sonhou as cem portas de Tebas. Sonhou os passos do labirinto. Sonhou o número secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha. Sonhou a vida dos espelhos. Sonhou os signos que o escriba sentado traçara. Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas. Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança. Sonhou o deserto. Sonhou a madrugada que espreita. Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes de água. Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido. Sonhou Alexandre da Macedónia. Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre. Sonhou o mar e a lágrima. Sonhou o cristal. Sonhou que Alguém o sonha.
hhhhhhhhhhhh
Jorge Luis Borges, Os conjurados, Difel

Na lição de Borges

Escrever um poema é sempre dar vida
A uma ilusão mais débil.
Onde a grandeza se exprime
Na ferramenta. Esse instrumento
É a palavra
E esta é, apenas,
Um bocejo da língua,
De todas as línguas.
E o homem, que todas esmerou
Que será?
Se não for, pelo menos,
O demiurgo mágico.
E, nesse Infinito,
Pode ser que ainda haja
Atrás do Início.
Além da barreira do entendível.
Com toda a certeza.

(usando as palavras, talvez a ideia, de J.L.B.
na Inscrição de Os Conjurados, 1985)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

palavras só respiradas

pensamos que o mundo nos ouve
só porque falamos
os silêncios que dão azul ao infinito
e que as aves conhecem
as nossas conversas ocas,
lá onde o som bate as portas dos fundos
sem uma palavra excessiva, sem
nenhum gesto perdido
sem um só beijo por corromper.

madrugada

antes d'a noite morrer
(no corredor de ziguezagues que se despedem
em louvor de escuro e dormência)
há uma luz que só se apaga aos teus olhos.

ao fundo da rua
(confundida nas acácias sem flor)
despejas a trança na camisa alva
e socorres do tédio
os lábios das manhãs.

vejo-te como um grito
- sereno de silêncio -
deixando mar na cidade por abrir

e sal que sulfure
as almas melancólicas
dos teimados.

lanças-me beijos de espuma
em papel de folhas de plátano, e voas
pedaço de nuvem
que guardei depois do olhar,
antes da memória.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Aos que continuamos a ver

A morte é a curva da estrada
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

FERNANDO PESSOA, 1932.
(à primeira vista, deixou de ser visto
há 74 anos, a 30 de Novembro de 1935)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

servíamo-nos de palavras longas que nos separavam

Porque tínhamos medo, Edgar, Kurt, Georg e eu andávamos juntos todos os dias. Sentávamo-nos junto à mesa, mas o medo permanecia tão isolado em cada cabeça como o trazíamos antes de nos encontrarmos. Ríamo-nos muito, para escondê-lo dos outros. O medo, porém, escapava-se-nos. Quando dominamos o rosto, esgueira-se pela voz. Quando se consegue conservar o rosto e a voz como um ramo morto, sai pelos dedos. Deita-se fora da pele. Anda por alí à vontade, reconhecemo-lo nos objectos que estão próximos.
Sabíamos em que lugar estava o medo de quem, porque já nos conhecíamos há muito tempo. Muitas vezes não nos podíamos aturar, porque estávamos dependentes uns dos outros. Tínhamos de nos ofender.
Tu mais a tua cabeça-de-alho-chocho suábia. Tu mais a tua pressa ou molenguice suábia. Tu mais a tua mania suábia de contar os tostões. Mais a tua lorpice suábia. Tu mais os teus soluços ou espirros suábios, mais as tuas peúgas ou camisas suábias, dizíamos.
Seu peida-de-bombo-da-festa suábia, seu cabeça-de-vento suábio, seu kampelsackel suábio. A fúria era tanta que nos servíamos de palavras longas que nos separavam. Inventávamos-las como pragas para ganhar distância em relação uns aos outros. O riso era duro, perfurávamos a dor. Era rápido, porque nos conhecíamos por dentro. Sabíamos exactamente o que magoava o outro. Agradava-nos vê-lo sofrer. Queríamos que sucumbisse sob o peso do amor agreste e que sentisse a rapidez da sua derrota. Cada injúria arrastava a seguinte até que o visado se calava. e ainda um pedaço mais. durante um pedaço ainda, as palavras caíam-lhe no rosto mudo como gafanhotos num campo devastado.
Imersos no medo, tínhamos olhado mais fundo uns nos outros do que era permitido. A longa confiança obrigava-nos a uma inversão que acontecia inesperadamente. O ódio podia aparecer e destruir. Na grande proximidade uns dos outros, ceifar o amor porque ele voltava a crescer como a erva alta. As desculpas retiravam a ofensa tão rapidamente como se consegue reter a respiração (...).
A mãe quer apanhar as últimas ameixas do jardim. Porém, a escada tem um degrau solto. O avô vai comprar pregos. A mãe fica à espera debaixo da árvore. Tem posto o avental de bolsos grandes. Escurece.
Quando o avô tira as figuras de xadrez do bolso do casaco e as coloca em cima da mesa, a avó-cantadeira diz-lhe: Tens as ameixas à espera e vais jogar xadrez com o barbeiro. O avô diz: O barbeiro não estava em casa, o que levou a dar uma volta pelo campo. Compro os pregos amanhã cedo, hoje fui strabanzen.
Kurt meteu, ao andar, os sapatos para dentro, atirou um pau à água e disse:
ffffffffffff
Todos tínhamos um amigo em cada pedacinho de nuvem
é o que acontece com os amigos onde o mundo é cheio de medos
até a minha mãe dizia que era normalíssimo
os amigos estão fora de questão
pensa em coisas mais sérias
ggggggggggg
Edgar, Kurt e Georg estavam sempre a recitar este poema. Na tasca, no parque desgrenhado, no eléctrico ou no cinema. Mesmo a caminho do barbeiro.
ggggggggggggg
Herta Muller (Prémio Nobel 2009)
A terra das ameixas verdes (Herztier)
Tradução de Maria Alexandra Lopes, Difel, 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Morrissey

Gavin Hopps, especialista em romantismo britânico e autor do livro Morrissey: The Pageant of His Bleeding Heart, afirmou recentemente que o trabalho de Morrissey pode ser comparado à obra de grandes nomes da literatura como Samuel Beckett e Oscar Wilde e também a grandes nomes da comédia britânica como Frankie Howerd e George Formby.

Morrissey - The Last Of The Famous International Playboys

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"todos nós falhámos na tentativa de corresponder ao nosso sonho de perfeição"

William Faulkner (1897 - 1962)
hhhhhhhhhhhhhhh
Sr. Faulkner, estava a dizer há instantes que não gosta de ser entrevistado.
A razão por que não gosto de entrevistas é o facto de eu parecer reagir de um modo violento às questões pessoais. Se as perguntas são a respeito do trabalho, tento responder. Quando elas são a meu respeito, posso responder ou não, mas mesmo que o faça, se a mesma questão me for colocada amanã, a resposta pode ser outra.
ggggggggggg
E em relação a si, enquanto escritor?
se eu não tivesse existido, alguém me teria escrito, a mim, a Hemingway, a Dostoiévski, a todos nós. A prova disto mesmo é o facto de haver uns três candidatos à autoria das peças de Shakespeare. mas o que é importante é o Hamlet e o Sonho de Uma Noite de Verão - não quem os escreveu mas o facto de alguém o ter feito. O artista não tem qualquer importância. Só aquilo que ele cria é importante, uma vez que já não há nada de novo a dizer. Shakespeare, Balzac, Homero escreveram tudo o que havia a escrever sobre os mesmos assuntos e se eles tivessem vivido durante mais mil ou dois mil anos os editores não teriam precisado de mais ninguém daí em diante.
hhhhhhhhhhhhhh
Mas mesmo que pareça já não haver nada para dizer, não será talvez importante a personalidade do escritor?
É muito importante para ele próprio. todas as outras pessoas deviam estar demasiado ocupadas com a obra para não se importarem com a personalidade.
ggggggggggggg
E os seus contemporâneos?
Todos nós falhámos na tentativa de corresponder ao nosso sonho de perfeição. Por isso, eu avalio as pessoas com base neste nosso esplêndido fracasso para realizar o impossível. Na minha opinião, se eu pudesse voltar a escrever agora toda a minha obra, estou convencido de que faria melhor, o que é a atitude mais saudável que um artista pode ter. por isso ele continua a trabalhar, tentando de novo; acredita, a cada nova tentativa, que dessa vez o fará, que vai conseguir. É claro que não consegue, e é por isso que essa atitude é saudável. No momento em que o conseguisse, no momento em que fosse capaz de fazer corresponder a obra à sua imagem, ao sonho, já só lhe restaria cortar o pescoço, atirar-se para o lado de lá do píncaro da perfeição, em direcção ao suicídio. Eu sou um poeta falhado. Talvez todos os romancistas desejem primeiro escrever poesia, percebam que não são capazes e tentem então o conto, que é o género mais exigente a seguir à poesia. E talvez, ao falharem também aí, só então se lancem na escrita do romance.
gggggggggggg
Entrevistas da Paris Review
Selecção e tradução de Carlos Vaz Marques
Tinta da China, 2009

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Uma Praça a ler e visitar

"Há sempre uma praça. Herdeira da ágora ateniense, do fórum romano, do rossio medieval, território comum, pausa no labirinto da malha urbana, largo onde convergem e desaguam as ruas da cidade, ponto de todos os encontros e de alguns desencontros. A minha praça nasceu no velho rossio, baldio e periférico, mas a cidade envolveu-a, aconchegante e protectora, à procura de um coração que nunca mais deixou de bater ali, nas pedras da calçada, ao ritmo meticuloso do relógio da torre.
No tabuleiro desta praça, fui peão do destino, cavalo, torre, bispo e, talvez, rei por alguns dias, de aquém e além ilusão, prisioneiro sempre do xadrez onde a vida é um jogo e a sorte pode ser mãe ou madrasta."
gggggggggggg
Carlos Querido, PRAÇA DA FRUTA
Prefácio de Álvaro Laborinho Lúcio
Corrida de Letras, 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009


Para lá da espuma das polémicas

"O que Deus propõe a Abraão - que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé - é absurdo e desumano segundo a ética dos homens. Mas não se trata de optar entre códigos de conduta ou escolher entre valores. Abraão é simplesmente colocado diante do incompreensível, ele é o homem perante o infinito. Nesse preciso momento não possui razões para avaliar qual deve ser a sua conduta. Tudo nele está suspenso, salvo a relação com Deus. Abraão ilustra a radical situação do homem religioso. A fé representa um salto, precisamente porque não pode haver transição racional estável, garantida entre o finito e o infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor. Existir é existir diante de Deus, habitar a incompreensibilidade da infinitude divina como os personagens da pintura de Gaspar Friedrich habitam escuridões e abismos."

José Tolentino Mendonça
Apresentação de o Nome e a Forma

Para a nossa correspondente em Lisboa

Deus das fronteiras da nossa idade,
dos rios que passam cumprindo
o seu destino de passar,
dá à nossa vida o teu braço verde
para o tempo das viagens que acabam
e dos caminhos que começam cada dia

dá o dom da doçura à nossa vida,
o conhecimento e o gosto das lágrimas
que melhor acolham a primavera
e o que a precede,
Deus como a aurora em cada idade,
Deus do louvor antigo e novo,
do que continua e se perde e se cumpre,
na alegria da água,
das planícies brancas do silêncio e da coragem,
Deus que invocamos nesta festa de irmãos hoje
e que estás em tudo
como a primavera está no nosso inverno
e tu em Jesus Cristo e no Espírito que renova tudo

José Augusto Mourão, DIA DE ANOS
O Nome e a Forma, Pedra Angular, 2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

noite salgada

Na minha noite de sombra invento o mar
e perco-me em insónias de navegante
a escutar os pássaros sem alento nem piar
e a sonhar rostos de sereias impotente
de só com um beijo de sal as abraçar

Palavras

"Estava na natureza do signo linguístico não poder permanecer muito tempo no estádio ao qual Babel pôs fim, quando as palavras eram ainda os bens essenciais da cada grupo particular: valores tanto quanto signos; preciosamente conservados, pronunciados com parcimónia, trocados contra outras palavras cujo sentido desvendado vincularia o outro...
Na medida em que as palavras se banalizaram e em que a sua função de signo suplantou o seu carácter de valor, a linguagem contribuiu, com a civilização científica (eu diria mediática), para empobrecer a percepção, a despojá-la das suas implicações afectivas, estéticas e mágicas, e a esquematizar o pensamento."
Claude Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté. Paris, Mouton, 1967. P. 569

terça-feira, 10 de novembro de 2009

sábado, 7 de novembro de 2009

Bendito Novembro

"Vieram ao mundo no mesmo ano, 1919. Separados, apenas, por quatro dias: ele, Jorge Cândido de Sena, nasceu a 2 de Novembro em Lisboa; ela Sophia (de Mello Breyner Andresen), mas para todos nós apenas Sophia, a 6 do mesmo mês, no Porto. Não há que ter medo das palavras: os dois são gigantes da poesia portuguesa do século XX.
Quis o destino, o acaso, o milagre - chamem-lhe o que quiserem... - que os seus espólios tivessem entrado, também por uma pequena diferença de dias, na Biblioteca Nacional de Portugal (BN). Ambos estão no expurgo, uma câmara especificamente destinada a desinfectar e matar toda a bicharada que corrói os documentos dos espólios dos poetas, escritores e ensaístas que eles ou a família por eles doam à BN.
O primeiro a escrever foi ele: a rosa para Sophia, de Jorge de Sena, apareceu em Peregrinatio ad Loca Infecta, em 1969. O título? «A Sophia de Mello Braeyner Andressen Enviando-lhe Um Exemplar de Pedra Filosofal».
hhhhhhhhhhhh
«Filho e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?
(15/12/1950)
hhhhhhhhhhhhhhhhh
O cravo para Jorge de Sena aparece em Ilhas (1989), já depois de o poeta ter morrido. Intitulado «Carta(s) para Jorge de Sena», é bem mais longo.
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
«(...)
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
hhhhhhhhhhhh
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nosssa vida
jjjjjjjjjjjj
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem -
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho mpródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talhares louças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
- Grandioso vencedor e tão margo vencido -
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grande amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
jjjjjjjjjjjjjj
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta»"
mmmmmmmmmmmmmm
Carlos Câmara Leme, Sophia e Jorge fariam 90 anos neste mês
Revista LER, Livros & Leitores, Novembro 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Grande País, the best

Ao certo, desconheço se as estimadas barbeiras mudaram de rua e nem esta me esclarece, que não recordo se era doutor (juiz) ou santo.
Ou ou quer dizer outra coisa (avenida, vg...). Enfim, fica o agradecimento a quem descobre estas pérolas de arrepiar cabelos, qualquer que seja a rua.

Todos o sabem...

E agora, vê esta quadrinha de folclore sertanejo que por cá encontrei perdida:

O coração é um marvado
que nem sabe o que sente.
O pió é a gente gostá
di quem num gosta da gente.

Malvados mesmo, estes caboclos, não te parece? O pior é que acertam...

Mário-Henrique Leiria, Depoimentos Escritos
contos, poemas e cartas de amor, Estampa, 1997

terça-feira, 3 de novembro de 2009

The Cure - A Forest: Stereo

A pensar no (já saudoso) António Sérgio.

As horas...


 


Tenho uma confissão a fazer. Nos meus tempos de estudante, passei apenas a sintonizar a Rádio Universidade de Coimbra, lá para o meu segundo terceiro ano. E era um ouvinte esporádico, preferindo os discos compactos, compilações em jeito de banda sonora para aguentar o queimar de pestana.


Nos primeiros anos, a telefonia "rádio-despertador" servia mais para ouvir relatos de bola ou então para amanheceres tardios, marcados por um alto volume fanhoso que saía da única coluna.


Contudo, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e aparecem novos gostos. Na verdade, lembro-me bem, foi durante uma dessas sessões de estudo, à volta do direito dos conflitos - conceitos-quadro e reenvio - que, ouvindo a Rádio Comercial, me dei conta de um programa que, nesse final de ano de 2001, lá passava, a partir da uma da manhã, até às três - "A hora do Lobo" de António Sérgio.


Tal como ele resumia, era um programa dedicado "ao pensar alternativo", fora da mainstream, com "unicórnios e ciborgues" - uma crónica em voz feminina, fantasias urbanas e textos de vanguarda - e repleto de música com conceito - algo que se poderá resumir ao label do indie, mesmo sem passar muito tempo a saber o que isso realmente pode ser.


Nessa altura, entusiasmado por ter encontrado algo diferente, dei-me até ao trabalho de fazer também algo completamente extravagante - gravei algumas emissões em cassete. A razão de ser de tal anacronismo prendia-se, por um lado, com esse ambiente de madrugada oculta que o António Sérgio para mim imprimia no programa, e, por outro, porque, para saber quem era a banda, o cantor, ou a música que tinha passado e me tinha agradado, tinha de ouvir tudo de novo. A voz grave do António Sérgio - longe de qualquer defeito de dicção, nada disso - não me facilitava o trabalho de apontar numa lista aquelas que eu queria que fossem as minhas aquisições musicais seguintes.


Entretanto, "A Hora do Lobo" acabou na sequência daquilo que, para mim, na altura, foi o grande erro da Rádio Comercial: a mudança para um formato mainstream, de um sofrível pop - rendição feita às massas, que, no final de contas, também é certo, geram indirectamente as receitas necessárias ao pagamento dos salários e à sobrevivência económica de qualquer estação.


Perdi o António Sérgio de vista, durante uns anos até o ter descoberto novamente na Antena1, se a memória não me falha, num programa que, mesmo sem ser do "Lobo", tinha "As Horas" bem preenchidas, cheias de boa música. E foi com o António Sérgio que descobri bandas como os "Gothic Archies" e outras do género.


Mas também por estes lados, foi um luar de pouca dura.


E, no fim de tudo, vejo que agora cheguei atrasado... Perdi-me nas horas e, nem de propósito, descubro, esta noite na Rádio Universidade de Coimbra, o último "Viriato 25" - o programa, que, a nível de rubricas e estilo, repete e me faz recordar a "Hora do Lobo".


Os desencontros são algo desagradável. E apenas lamento não ter dado conta por onde é que o António Sérgio andava nestes últimos tempos. Ao ter ficado a perder, só me comprometo com uma coisa:


Com a memória de um dos melhores locutores do nosso "som da frente".

domingo, 1 de novembro de 2009

A seda e o som do mar

entrado no mar um Homem perde os contornos com que se agarra teimosamente às mentiras do mundo e só então respira pulmões do profundo e bebe o sal das espumas onde outrora as sereias deixaram desejos de seda e cantigas de búzios que só a solidão merece ouvir

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A Insustentável Leveza da Ignorância

"(...) O que me traz ao aspecto mais perturbador e alarmante de toda esta tola controvérsia. Os jornalistas e os responsáveis religiosos portugueses de um modo geral tratam os comentários de Saramago como importantes! Graças a eles, os meios de comunicação deram-lhe mais tempo na televisão e mais espaços nos jornais do que a outras questões mais importantes. E alguns representantes da Igreja Católica atacaram-no com uma ferocidade emocional que revela bem que consideram tais opiniões sobre o antigo testamento como um obstáculo à fé. Mais uma vez, como salientai mais atrás, os comentários de Saramago não são chocantes nem novos. E apenas representam um obstáculo à fé para quem não tenha a menor ideia do que é que pretendia ser o Antigo Testamento. As críticas de Saramago são unicamente banalidades superficiais, que revelam uma profunda ignorância da filosofia e da religião ocidentais e uma total incompreensão da linguagem poética e narrativa de desde há mais de três mil anos. Só quem ignora tal herança, jornalistas e responsáveis religiosos incluídos, podiam tornar o patético desabafo do romancista numa tal polémica. E, para mim, essa foi a parte mais perturbante de toda esta “inventada” noticia: descobrir que na sociedade onde vivemos, entre os seus membros mais ilustres e cultivados, possa prolongar-se tão lastimosa ignorância de uma parte importantíssima do legado civilizacional da filosofia e da cultura ocidentais."


Richard Zimler
Jornal Público de 27 de Outubro de 2009
Tradução de José Lima

domingo, 25 de outubro de 2009

Passos no vai e no vem da busca, sempre ao encontro
de um farol que desvende a calma do céu e do mar

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

cor local



Para o Amigo Augusto, que sabe bem que o refúgio nas Beiras é certo e sempre seguro.

sábado, 17 de outubro de 2009

Bocage

Adamastor cruel! De teus furores
Quantas vezes me lembro horrorizado!
Ó monstro! Quantas vezes tens tragado
Do soberbo Oriente os domadores!
Parece-me que entregue a vis traidores
Estou vendo Sepúlveda afamado,
Co'a esposa e co'os filhinhos abraçado,
Qual Mavorte com Vénus e os Amores.
Parece-me que vejo o triste esposo,
Perdida a tenra prole e a bela dama,
Às garras dos leões correr furioso.
Bem te vingaste em nós do afoito Gama!
Pelos nossos desastres és famoso.
Maldito Adamastor! Maldita fama!

SONETOS
José Manuel Maria Barbosa du Bocage

Sem título, nome ou paciência

1

entrei “na noite pelo lado onde há menos gente”

porque o silêncio se esbate só contra

os rostos vagos dos granitos nas calçadas

e posso respirar o sereno olhar

do que não vejo.

a cidade, essa, a cidade

grita no reverso do meu passo

e engole o eco do que adivinho. lá longe

uma mulher de espuma, junto do mar,

retribui uma palavra que perdi há décadas

quando me açoitava

nas turbulências da multidão.


2.

“eu enlouqueço com a doçura

dos meses vagarosos”, este fevereiro tem

os mesmos 1000 anos como tinha há trinta,

exactamente quando enlouqueceste

o beijo que se partiu na minha boca

e nunca mais fui homem

de trincar outros desejos

(e nem)

de desejar bocas novas

perdido

sem me entregar

perdido

a esperar

sem esperar

só aceitar (apenas)

o aguardar da noite: que

a artificiosa luz me prenda de consolo.

(dois decalques de herberto helder, peço desculpa...) 16.02.2009

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Asterix


O desenhista Albert Uderzo e o editor Albert René publicarão em 22 de outubro ao redor do mundo a obra "L'anniversaire d'Astérix et Obélix, le livre d'or" ("O Aniversário de Asterix e Obelix, o livro de ouro", em tradução livre), o último álbum do herói gaulês, que completa 50 anos.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

O Jardim do Éden

"A caminho daqui vi coisas maravilhosas para pintar, mas nunca soube pintar. Sei de coisas maravilhosas para escrever e nem sequer consigo escrever uma carta que não seja estúpida. Nunca quis ser pintora nem escritora até chegar a este país. Agora, é como estar-se sempre esfomeado e não haver maneira de o remediar."

O Jardim do Éden
Ernest Hemingway
Colecção Mil Folhas
Julho de 2002
Tradução de Ana Maria Sampaio

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O meu voto? Eu é que o deposito!

Ainda no esmiuçar dos escrutínios - passe a referência ao programa da Sic - o tema desta posta "rouba" o seu mote a uma pequena discussão crítica que surgiu no Twitter, entre mim, @31daSarrafada e @ponteeuropa , a propósito de um apontamento deste último no blog homónimo.
De facto, de acordo com a lei eleitoral em vigor, para a Assembleia da República, após votar, o cidadão eleitor dirige-se à mesa e deve entregar o seu voto ao presidente, a fim de que ele, e apenas ele, insira o boletim dentro da urna - cfr. artigo 96º nº5.
Ora, ao que parece o nosso Presidente da República não o fez. Na verdade, a fotografia, tirada pelos órgãos de comunicação social, não deixa margem para dúvidas.
Nestes casos, a mesma lei já citada, prevê, no seu artigo 168º, o pagamento de uma multa - ou deveria ser coima? - que pode ir desde os mil aos dez mil escudos - a verborreia legislativa e a fúria gorilácea de quem a produz, poupou este diploma legal à modernidade, podendo ainda sentir-se a nostalgia pela moeda antiga...
Não parece que ao Presidente da República tenha sido aplicada aquela sanção. Não foi aplicada a Cavaco Silva nem a outro político qualquer que certamente já fez o mesmo, tendo todos nós a leve recordação disso mesmo - pose para a fotografia, sorriso, depósito do boletim pela própria mão, um "bacalhau" ao responsável máximo da mesa e um "bom dia, meus senhores, bom trabalho".
Contudo, este mesmo detalhe, legalmente consagrado, se pôde até agora passar-me despercebido, levantou em mim algumas inquietações. E deixo já aqui claro: não me interessa que seja o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, um qualquer deputado ou o "Manuel das Couves", o sujeito que possa vir a cometer a "infracçãozinha".
E digo justamente "infracçãozinha", porque a norma me parece ridícula e ainda herdeira de um paternalismo bacoco.
É que se, por um lado, aceito que ao presidente da mesa devem ser dados todos os poderes para a coordenação de um acto que se quer ordeiro, rigoroso e transparente, não aceito, por outro, que existam prerrogativas nascidas apenas em virtude da formalidade de um cargo. "Eu é que sou... o prrreeeesidente da mesa..." - já dizia o "boneco" do Herman, no sketch do "Parabéns", em Janeiro de 96, acerca das Presidenciais desse ano.
Na verdade, na entrega do boletim de voto ao presidente da mesa pode estar implicado um acto de transmissão da posse, ou até mesmo da propriedade, que me choca, porque contrário à ideia republicana da soberania popular.
Ou seja, um cidadão ao votar, exerce o seu direito, cumpre o seu dever, numa atitude que se quer inteiramente pessoal, soberana. Sem necessidade de quaisquer intermediários que efectivem aquilo que, para todos os efeitos, é o último passo dessa forma de expressão democrática.
E, depois, partir do princípio que tal intervenção do presidente é necessária para "impor uma certa ordem" é o mesmo que dizer que os eleitores são uma cambada de desordeiros que não sabem comportar-se em tão solene acto, aguardando a sua vez, depositando serenamente o seu boletim na ranhura.
Por tudo isto, defendo, como já se calcula, que urge mudar a lei eleitoral no sentido da revogação da norma e, já agora, na actualização das quantias da "multa" aplicável às (outras, mais importantes) infracções.
E como manifesto pessoal assumo a minha posição: o meu voto? sou eu que o deposito! E é já nas próximas! Como sempre!

E este o post do @31daSafarrada, desenvolvido no decurso de tão estimulante querela.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Richard Estes




34th Street, Manhattan, looking east

Oil on Canvas

91 x 91 in. / 231.1 x 231.1 cm.

1982
cidade de Tomar. jardim do hotel dos Templários. 26 de Setembro

Momentos

"Luísa tinha regressado de Veneza há quinze dias. Telefonara a João para se encontrarem no "Modernidades", o bar-refúgio de ambos. Brincando com os cubos de gelo dentro do seu copo de scotch, João assumia um ar pensativo, olhando para Luísa. Tinha imensas perguntas, um desejo de saber tudo sobre a viagem dela... Mas o receio de um sofrimento bem conhecido, abatia-se-lhe sobre o peito. Do outro lado da mesa, Luísa pressentia aquele estado de espírito que, a um tempo a deliciava e, a outro, a fazia perder a paciência, por completo. Sorvendo lentamente o seu gin tónico, num convite ao cliché da sedução, proporcionado por aquele gesto, tão batido, tão cinematográfico, Luísa ia perguntando, despreocupada:
- E tu? Que tens feito desde a última vez que nos vimos? Como vai a galeria?
- Vai como sempre. Novas colecções a chegar, agora para a próxima temporada. Uns miúdos novos com algum talento... Isto agora está difícil. Até o mercado da arte sente a crise. Sabes, tenho um cliente habitual que já disse que não ia pagar duas obras que comprou e levou, porque o banco lhe levou uns depósitos, ou lá o que foi... Meti o advogado... Mas não sei... Não vai dar em nada e vou ficar a arder com o dinheiro.
- A sério? Mas precisas de dinheiro? - perguntou Luísa, naquele seu semblante carregado, comprometido na solução dos problemas.
- Por favor, Luísa... Nada disso. Está tudo bem... Apenas são coisas que acontecem. Já cá ando há muito... Não me metia nisto se não soubesse como é. A sério. Está tudo bem. Não há problema. Enfim... Merdas...
- Bom... Se assim o dizes... Não me meto mais - disse, rindo-se, - E mais novidades? Conta-me mais... Coisas boas, alegres.
- Coisas boas, alegres... Não estou a ver assim nenhuma com especial destaque... - respondeu João, acrescentando - Passaram-se num instante, estes meses.
- Passaram... - disse Luísa, sem grande interesse.
- Sabes bem que a melhor coisa de todas foi teres voltado... - os dados tinham sido lançados, pensou João.
- Achas mesmo? - perguntou Luísa, deixando no ar as reticências habituais, neblina diáfana de todos os seus enigmas.
- Acho.
Luísa encontrava-se agora na mais cristalina das indecisões. Devia dizer-lhe? Devia calar-se? Caso optasse pela primeira opção, esta noite mudaria a vida dos dois, da forma mais dramática possível. Deixou-se ficar mais um pouco no silêncio, fitando João com um olhar neutro. A música embalava-a, roubando-a ao tempo presente e levando-a para outros sítios, longe dali. Uma vida a dois não lhe possibilitaria nunca mais a independência a que estava habituada e sentia que João, além de tudo o resto, por demais conhecido, poderia não estar preparado para tanto.
- Em que pensas? - perguntou João, bebendo mais um gole do seu scotch.
- Em nada. - atirou Luísa, peremptória.
- Não acredito.
- Então não acredites, quero lá saber - este tipo de respostas de Luísa, deixavam João perdido, sabia-o bem.
Contudo, ao acender um cigarro, ouviu os primeiros acordes da música de sempre. A música que os dois tinham ouvido, pela primeira vez, há muito tempo, naquele mesmo bar. "Estarás mesmo pronto para mim? Para sempre?" - interrogava-se, agitada. Olhou para João, para aqueles seus olhos que a faziam perder-se por completo, sem mais ser senhora de si mesma... Saiu-lhe, sem mais, nem menos:
- João, eu estou grávida de ti.
João não disse nada. Manteve-se calado... Olhando profundamente para ela. Nada a revelar qualquer nervosismo ou pânico. Um olhar compenetrado, mas a que não se conseguia adivinhar o sentido.
João agarrou a mão de Luísa, fixando ainda mais o seu olhar nela. Luísa deixava cair agora todas as suas barreiras e começava a sentir os olhos molhados - naqueles dois meses, a indefinição tinha sido angustiante.
- Vamos - respondeu João, num tom seguro, solene, o mesmo de sempre, que ela lhe conhecia para momentos de grande simbolismo.
- Para onde? - perguntou Luísa, meio atónita...
- Esta noite não te quero longe de mim... Quero que seja o início de algo diferente. Para sempre."

Alexandre Villas-Diogo "Momentos"

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

- Há uma data na varanda desta sala - disse Germana...

- É uma fatalidade que pesa sobre nós, as mulheres. Não sabemos viver sós, enquanto que o homem procura o isolamento, mesmo quando se dirige para a multidão - disse ela. Há raros momentos de clarividência, mesmo nas criaturas mais triviais, e é sempre o sofrimento que os provoca. Quina acrescentou um dos seus aforismos, que sublinhou com uma ironia, pois aquela mulher, vestindo, da casa Drecoll, um traje de cetim marinho e ratine branca que lhe dava o ar duma preceptora elegante, parecia-lhe uma princesa que brinca a ser desgraçada, que se diverte a fazer experiências amargas, para quebrar a monotonia.
..........................................
Esta moralidade indignava Germa, mais do que a prática dela. Era uma injúria às boas intenções, a esse recato virginal e defeso na alma até do homem mais vil, e que ele mantém como argumento de emergência, depois da queda e em face da morte. Se ela declarasse, diante do pai, que preferia o perigo embora o temesse, que odiava a dádiva embora a cobiçasse, que aceitar é ser vencido e que a luta seria para ela como que uma fatalidade, um apelo constante, uma necessidade absurda e inapelável, ele rir-se-ia na sua cara e havia de sentenciar, com a sua tenebrosa filosofia de mundano gasto, de velho a quem a vida adaptou à lei da gravidade, ao valor da inércia, ao poder da fraqueza:«Fala-me daqui a vinte anos, e mostra-me então o lucro das tuas teorias.»
nnnnnnnnnnnnnn
AGUSTINA BESSA-LUÍS, a sibila

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro.

... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face.

VERGÍLIO FERREIRA, aparição

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Art

"Art 'lives' through influencing other art, not by existing as a physical residue of an artist 's ideas.The reason why different artists from the past are 'brought alive' again is because some aspect of their work becomes 'useable' by living artists. That there is 'no truth as to what art is' seems quite unrealized."

Joseph Kosuth,1969

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

sábado, 19 de setembro de 2009

«Entre o Pinhão e a Régua»

Finjo tombar no sono
e arqueio sobre o cobre dos teus fios
as lágrimas encobertas
atrás das pétalas
dos meus olhos, a enxugar
sem reparar no rosto imóvel
do homem gordo que não repara
além do centeio
com que aplaca um flamengo pele-vermelha
e sonolenta a tarde, entre dentes. Se
for descoberto digo o rio a beber as vinhas
aceito a saudade translúcida. São
tão piegas os homens e
tu continuas a dormir
quando a Régua nos abraça as costas.
Antes disso,
evito que ganhe corpo de pensamento
um segredo que o coração bombeou na artéria
(te dissesse amor
enquanto sonhas
porque o sonho lacra os desejos)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Sonho de uma noite de Verão

Soletro as mãos em palmas:
mão ante mão, palmeio o branco do linho
até pousar no busto do teu silêncio.
Continuo a sonhar,
deixando enrolar os dedos nos
novelos de seara que desleixas
e sigo ao vermelho dos teus lábios
saltitando
cada textura que me enerva o sentido.
Não acordo a tempo
de confirmar uma ausência de décadas;
persigo esse corpo, que
cristalizou em forma de presente.
Antes de repartirmos, lençol e ele
- em tudo meeiros,
juraras concordar com
a minha certeza d’amor eterno,
este que dura
entre o decesso e a ressurreição do sol
e se completa
com o gesto eterno de um momento.
Prossigo o sonho
pressinto o dia,
alvorece.
E entrego-me a sombras
que te podem confundir com o desejo.
Quando desce à terra o onírico passo
é pesadelo de brusquidão de dia
e
se insisto no braço já dormente
dez anos são o tempo justo de um vazio no linho.
Adivinho
e
rogo que o sonho me apodere;
se Deus quiser, se eu souber
dormirei no teu uníssono a vida toda,
inteira medida
de não acordar a tempo:
por um momento a eternidade gela
e dormita junto do teu corpo.
Um beijo, bela.

(27.06.2009)

Tempo

Pouco importa o tempo que levamos para chegar; o que importa é se chegamos a tempo…

«Quanto Mais Se Vê, Melhor É!»

Como Distinguir as
Boas Coisas Snobs da Porcaria
ggagagag
Apesar de se orgulharem de ter um gosto estremamente
afinado, os Cinéfilos Snobs são também criaturas perversas
capazes de elogiar perdidamente alguns trabalhos de chapa
mais flagrantes, nna que os próprios realizadores não ligam
puto («É isso que os tornann tão brilhantes, tão audaciosos»).
Por vezes, os Snobs iludem-se e convencem-se de que aquele
estrume cinematográfico, ao qual dedicaram horas sem fim
e webzines pagas do seu próprio bolso, tem algum significado
cultural digno de uma dissertação doutoral e impossível de
ser apreendido pelos fãs de Tom Cruise. Segue-se um guia
do consumidor para a Snobeira fidedigna.
fffADSSSS
Dez Causas Célebres
dos Snobs Que Valem a Pena
FFFF
Robert Aldrich
John Cassavetes
Manny Farber
Freaks
Nouvelle vague
Expressionismo Alemão
Guy Maddin
Sam Peckinpah
Spaghetti Westerns
Wire-fu
FFFF
Dez Causas Célebres
dos Snobs Que São Fraudulentas
FFFFF
O Império dos Sentidos
Maya Deren
Dogma 95
Robert Downey Sr.
Peter Greenaway
L'Atalante
Tom Laughlin
Filmes de luta livre mexicana
O Insustentável Peso do Trabalho
Filmes de mulheres-na-prisão
FfFfFfa
Retirado, com devida vénia mas integralmente, do interessante livro "Dicionário de Cinema para Snobs", de David Kamp e Lawrence Levi e apresentação de Pedro Mexia, Tinta da China, Abril de 2009 (págs. 84/85)

Star Trek 2009

Absurdo

E a bordo diz-se: este comboio
é um absurdo.

Absurdo é estarmos sentados nele,
olharmos pela janela
e não vermos senão as costas da noite.

Absurdo
é haver absurdo.

- e nós, com água pela boca,
esbracejarmos nele.

A. M. Pires Cabral, Que Comboio É Este
construção da Estação Ferroviária da Régua (fotografia da CP, refotografada)

Pulsação

O comboio oscila nos desníveis
entre trilhos
impassível como um pêndulo
que se limita a cumprir
as leis da física.

E eu oscilo com ele.

Tentei uma vez a insurreição:
inclinar-me para o lado esquerdo
no momento em que o comboio se inclinava
para o lado direito,
e vice-versa.

Mas não consegui.
Está muito fundo em mim o jeito de oscilar
ao sabor do inimigo.

Como se fosse o seu par
numa dança brejeira.
Ou como se ele fosse
a minha pulsação.
Ou como estando eu já
no interior da morte.

E tão solidário me tornei
que mesmo que algum dia me apeasse
oscilaria sempre vida fora
com aquela cadência do comboio
inscrita nos passos.

(No sangue, em todo o caso,
talvez não.)

A.M. Pires Cabral, Que Comboio É Este
Poesia Portuguesa Contemporânea, teatro de vila real, 2005

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Trilhos

Depois ficávamos parados, exaustos de prazer, agarrando os corpos, roçando as dermes húmidas e momentaneamente ausentes, como o tempo que parecia flutuar.
“Quero ter uma filha contigo.” Dizia eu, sempre que sentia o tempo voltar ao seu trilho. Beatriz mantinha-se calada, aspirando o fumo do cigarro...

Compasso

Dizer que só com o tempo se curam feridas é emprestar ao presente um peso insuportável.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Estrela


yyyyy
kkkkk
hhhhh
kkkk
kkkk
kkkkkk
kkkkkkk
kkkk
kkkk
kkkk
kkkk
Adeus,
solitária viajante dos países frívolos
deixa que os meus dedos desenhem nas
maças do teu rosto
um beijo e o sinal da cruz,
deixa que os sinos toquem na outra margem
do rio,
por nós,
pela morte das dunas que incendiámos num
Verão de ventos loucos,
pela morte das cegonhas e dos lírios,
adeus,
doce amada do meu céu de Agosto,
deixa que sobre a tua pele de ternura e
fogo e luminosas cinzas,
eu escreva um último verso,
um verso de néctar e ouro,
sobre as páginas vazias do coração.
José Agostinho Baptista, Anjos Caídos, Assírio & Alvim, 2003

Gore Vidal



Ontem de manhã, ao entrar para a sala de aulas, fui interpelado por um estudante cristão que me perguntou com uma velhacaria mal disfarçada: - Já sabes do imperador Teodósio? Aclarei a garganta, pronto a investigar a natureza da pergunta, mas ele antecipou-se-me: - Foi baptizado. Não fiz comentários. Hoje em dia nunca se sabe quem é um agente secreto. De resto, a notícia não me surpreendeu tanto quanto isso. Quando Teodósio adoeceu, no Inverno passado, e os bispos se pousaram em cima dele a rezar pela sua cura, soube que, se recuperasse, eles haveriam de reivindicar a fama e o proveito de o terem salvo. Não morreu. Agora temos um imperador cristão no Oriente para fazer parelha com Graciano, o nosso imperador cristão do Ocidente. Era inevitável.

Juliano, trad. de Carlos Leite, Dom Quixote, 1990

(e até ao próximo Verão, que este está a partir)