segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Estrela


yyyyy
kkkkk
hhhhh
kkkk
kkkk
kkkkkk
kkkkkkk
kkkk
kkkk
kkkk
kkkk
Adeus,
solitária viajante dos países frívolos
deixa que os meus dedos desenhem nas
maças do teu rosto
um beijo e o sinal da cruz,
deixa que os sinos toquem na outra margem
do rio,
por nós,
pela morte das dunas que incendiámos num
Verão de ventos loucos,
pela morte das cegonhas e dos lírios,
adeus,
doce amada do meu céu de Agosto,
deixa que sobre a tua pele de ternura e
fogo e luminosas cinzas,
eu escreva um último verso,
um verso de néctar e ouro,
sobre as páginas vazias do coração.
José Agostinho Baptista, Anjos Caídos, Assírio & Alvim, 2003

Gore Vidal



Ontem de manhã, ao entrar para a sala de aulas, fui interpelado por um estudante cristão que me perguntou com uma velhacaria mal disfarçada: - Já sabes do imperador Teodósio? Aclarei a garganta, pronto a investigar a natureza da pergunta, mas ele antecipou-se-me: - Foi baptizado. Não fiz comentários. Hoje em dia nunca se sabe quem é um agente secreto. De resto, a notícia não me surpreendeu tanto quanto isso. Quando Teodósio adoeceu, no Inverno passado, e os bispos se pousaram em cima dele a rezar pela sua cura, soube que, se recuperasse, eles haveriam de reivindicar a fama e o proveito de o terem salvo. Não morreu. Agora temos um imperador cristão no Oriente para fazer parelha com Graciano, o nosso imperador cristão do Ocidente. Era inevitável.

Juliano, trad. de Carlos Leite, Dom Quixote, 1990

(e até ao próximo Verão, que este está a partir)

"Meu Querido Mês de Agosto"

A chegar ao fim...

domingo, 30 de agosto de 2009

domingo, fim do mês.
e todas as cores são boas
para as saudades que nascem

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Vik Muniz

Não nos deixeis cair na curiosidade dos outros,
Na piedade dos outros ou, pior, de nós mesmos.
Livrai-nos de sermos eternamente jovens,
Mas também nados-velhos, mortos-vivos.
Livrai-nos sobretudo de nos jactarmos.
Não nos deixeis cair nas ciladas
Daqueles que só se desculpam ou nunca se desculpam.
Não nos deixeis cair na tentação de corrigir a vida
Quando tantas coisas nos morrem
E morrem às nossas mãos ou pela nossa memória.
Livrai-nos de falarmos em nome dos outros,
Dai-nos cada dia a lembrança de também sermos outros
E não nos perdoeis nunca se o esquecermos.

(primeiro poema de Últimos Poemas - edições quasi, Maio de 2009 - livro com prefácio de Joana Matos Frias e ilustrações de Rasa Sakalaite, onde se reúne a poesia de Nuno Rocha Morais, poeta nascido no último dia de 1973 e falecido em 8 de Junho do ano passado, ainda na idade em que morrem aqueles que os deuses amam)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Legendary Tiger Man "Life Aint Enough For You"

Em breve sai o novo álbum...

receita

Deita na trôpega gamela
a esfiapada revolta
dos dias mansos
(o mundo gosta de certeza
adora e louva os tansos)
e junta-lhe o sal sobrante
da adolescência
(o mundo gosta de velocidade
se for corrida em paciência)
esticando a mistura
até volver imponderável
(o mundo só arrisca no provável)
e aceita o tempero do escárnio.
Leva ao lume, em lume brando
(assim se revolta o mundo
e só de vez em quando)
até que a massa construa a palavra
que é o poema
(o mundo sempre acaba por não gostar de nada
mas nem tenhas pena)

revolta

revolto-me
quando deixas em passados
as palavras prometidas
- declaro-me credor de expectativas.
confundo as promessa
mas sem razão.
podia dizer
"vou com os pássaros"
mas as asas da frase
gastaram-se
nos imberbes voos da contumácia.
abusadas de repetição
trocaram o sentido à ousadia
e assim tolham
o modo de aceitar
um beijo silencioso.
sim,
tu não voltaste com as palavras d'outrora.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Playlist 2.0



Glass Candy, absolutamente sedutor. Pela cadência, pelos arranjos, pela sofisticação.

Comentário 2.0

A propósito disto escrevi o seguinte:

Não entendo porque só os grupos de risco, os mais evidentes, vão ter acesso à vacina que, por seu lado, tarda em chegar, quando noutros países estará pronta a usar já agora em Setembro. Em Espanha, por exemplo, oitenta por cento da população terá acesso à vacina. Por isso pergunto à Sra. Dra. Ana Jorge: Porquê a opção deliberada por tão reduzido lote, sabendo até que as farmácias não podem negociar ou reservar lotes - parece que o monopólio é do Estado, no que toca às reservas - que viriam a ser vendidos a cidadãos fora dos grupos de risco? Porquê a opção deliberada pelo discurso do "aguenta-te à bronca que és só mais um número das estatísticas para mostrarmos competência"? Porquê enfim, a escolha pelo entupimento das urgências e pela baixa maciça dos trabalhadores que, a serem vacinados, sempre veriam, no mínimo, os efeitos da vacina minorados? Porquê esta minha sensação que se NEGA AQUI UM DIREITO À SAÚDE - acesso a uma vacina - que até há quem esteja disposto a pagar na totalidade??? Já muitos de nós somos crescidinhos a não precisar de alguém a dizer o que devemos ou não tomar. Apenas esta a minha opinião.

AZUL (em memória de Sophia)

Cega-te a luz do sol - nunca te esqueças
deste dia sem fim:
no horizonte nascem as promessas
e hás-de ficar assim,
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
à espera de um milagre que te fale
com a voz de uma sereia
até te libertar de todo o mal
e deixar sobre a areia
bbbbbbbbbbb
o gesto inconsolável de algum deus
desfeito já na espuma
dos sonhos que algum tempo foram teus
ou das nuvens que fogem uma a uma.
jjjjjjjjj
Cega-te a luz do dia - sobre o mar
um azul que não sabes decifrar.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa, Dom Quixote, 2004

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Confarreatio



O vocábulo é latino e bem conhecido dos patrícios da primeira República do mundo.. Ora, tendo como ponto de partida esta proposta de leitura breve, convida a mesma a uma exegese sobre a notícia que hoje marcou a actividade política e bem, assim, a participação cívica de quem também, precisamente, vive numa República e tem o dever de reflectir sobre os assuntos que lhe dão forma e essência.

Um veto, considerandos pertinentes e a recordação que tenho dos Mestres, fizeram com que voltasse às fontes do Digesto, das Instituições e até mesmo das Pandectas... Tudo resumido no Corpus Iuris Civilis, entenda-se.

A ideia de casamento sempre se pôde traduzir, no mínimo, num contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente (eu sei que isto acarreta outras questões, mas, por economia de tempo ou de assunto sobre elas não falarei), gerador de direitos e obrigações tendentes a uma comunhão de vida.

Uma comunhão de vida com reflexos ao nível do regime de bens - saber o que é de um e de outro cônjuge, ou de ambos -, ao nível da representação - saber quem pode fazer o quê quando contrata com terceiros, quando tem de ir a tribunal, quando toma decisões sobre o futuro dos filhos - e ainda ao nível das próprias relações entre ambos - vejam-se os chamados deveres conjugais de respeito, fidelidade e débito conjugal.

Por aqui logo se vê que este institutol, enquanto figura contratual traz consigo um atributo que nunca poderá ser mitigado: a escolha pela responsabilidade, independentemente dos afectos que apenas dizem respeito à esfera da intimidade.

Qualquer cidadão, num Estado de Direito, tem a obrigação de saber que ao "contratar" assume para consigo e para com a sua contraparte e ainda indirectamente com terceiros, futuros ou eventuais interessados, uma determinada posição. Dele é esperado um certo comportamento, uma prestação, uma postura.

E se estamos já bem longe da submissão que à "uxor" estava destinada, havendo para ela somente ou em grande parte deveres, a verdade é que, nos dias de hoje sempre se espera de ambos os cônjuges uma atitude em conformidade com o contrato que celebraram e fizeram publicitar. Tudo nos termos já acima sumariamente enunciados.

Ora, nas uniões de facto há aspectos que, em termos legais, se desenrolam à parte deste regime de responsabilidade. Por exemplo, a representação e a legitimidade processual não conhece, tanto quanto sei, a figura do litisconsórcio necessário: a necessidade de ambos os cônjuges estarem em juízo, quando demandantes ou demandados. Por dívidas praticadas no exercício do comércio também não me parece que funcione a presunção de que as mesmas são comuns a ambos os unidos de facto.

Pelo que li, lança-se mão de conceitos como os da compropriedade e da solidariedade nas dívidas para dar a ideia de um "produto novo" que é tão bom como o antigo, mas só que mais moderno e sofisticado. É pouco na minha opinião e não se percebe o que realmente se pretende. Qual o sentido do "proto-casamento" se não o de ter vantagens, não discuto que devidas, sem ter encargos? 

Não obstante, considero importante a protecção das pessoas que optem por esta experiência de vida em comum, não se lhes devendo impor outra.

Casa morada de família, prestações por morte de um membro da união ou mesmo o reconhecimento do direito à ressarcibilidade de danos produzidos por terceiro, em sede de responsabilidade civil, são matérias que ainda hoje não receberam a regulamentação que a lei, em vigor, prometia ou fazia prever.

Contudo, o que mais me confrange, a título pessoal, relativamente a quem não concorda com o veto do Presidente da República, é poderem dificilmente responder a esta questão: se uma e outra coisa são o mesmo, então para quê o casamento?

Enfim, o casamento é uma figura contratual estável, assente e que funciona, devendo ser premiada - em exclusivo, por exemplo, ao nível fiscal - e nunca comparada a institutos que, embora a merecer a sua justa protecção constitucionalmente devida, nunca serão a mesma coisa.

A não ser assim, funcionará, parece-me, o princípio "trainspotting": "não há casados nem unidos de facto, apenas pessoas que estão juntas". Nada de bom, porque pouco sério, quanto a mim.

Quem está unido de facto, está para o bem e para o mal, como se costuma dizer. Mas não está casado. Porque realmente assim não o pretendeu...

Considerandos de esplanada.

Aeroporto San Martin

Férias com alguma emoção...

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O mais breve poema dedicada a uma mãe

Recebi da morte uma nota de crédito
Endosseia-a a quem devia a vida

Ademar Ferreira dos Santos, Inconfidências e Confissões,
Descansando do Futuro (Reserva de Intimidade), Edições ASA, 2003

Malcolm Lowry


A república é atravessada, mais ou menos de norte a sul, por duas cadeias de montanhas que formam entre ambas um bom número de vales e de planaltos. Sobranceira a um desses vales, o qual, por sua vez, é dominado por dois vulcões, ergue-se, a uma altura de seis mil pés acima do nível do mar, a cidade de Quauhnahuac. Fica bastante a sul do trópico de Câncer, ou, para falar com mais exactidão, no paralelo 19, quase à mesma latitude a que, a oeste do Pacífico, se encontram as ilhas Revillagigedo, ou, ainda mais a oeste, a ponta mais meridional do Havai e, para leste, o porto de Tzucox, situado na costa atlântica do Iucatão, perto da fronteira das Honduras Britânicas e, finalmente, muito mais para leste, na baía de Bengala, a cidade indiana de Juggernaut.
As muralhas da cidade, que se encontra edificada numa encosta, são altas; as ruas e os becos, tortuosos e arruinados; as ruas, coleantes. Possui uma bela estrada de tipo americano, que vem do norte e acaba por se perder em ruas estreitas, degenerando finalmente num verdadeiro caminho de cabras. Quauhnahuac possui dezoito igrejas e cinquenta e sete bares.
kkkkkkkkkk
Debaixo do Vulcão, tradução de Vigínia Mota
Edição Livros do Brasil, 2002

Jacuzzi



...Zola, a banhos no jacuzze...


Bela noite, assim!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Prata!



Bravo Herói!

Radiohead - How To Disappear Completely

Mar - e mundo - português

e, às centenas, invadiram as ondas como se fossem suas
pediram vento, ainda mais vento, e chamaram as luas;
em cada um deles ia um mundo inteiro, o da conquista,
a falar português, porque imenso, e até perder a vista.

Que não se perca...

Que não se perca o quanto que me perco
nem o silêncio rompa mais que o visto
fosse desejo vê-lo, da carência
de que revisto ainda se dispersa
mais: que nos olhos desse olhar sobeja,
subindo os braços, senda, sibilante,
confuso agrado. Desapertam laços,
se contendo na voz, no gesto nunca.

António de Almeida Mattos, Conjuntivo Presente,
Edições Afrontamento, 1991

Epígrafe

Agora que colocaste
em torno do meu pescoço
a tesoura dos teus dedos

e, ó profundo caroço,
minha carne te rodeia,
te nutre meu sangue insosso;

agora que, teu cavalo,
à custa do meu destroço,
te transporto a meu pesar -

me passeias pelo fosso,
ambos numa ira só,
como a água no seu poço.

A. M. Pires Cabral, como se Bosch tivesse enlouquecido,
João Azevedo Editor, Mirandela, 2003

47

Passo o teu nome da minha boca para este lugar de papel.
E assim tu vens, menina do rio,
louca e desastrada, nessa tua canoa de silêncios,
a entrar no poema.
Mãos em existência felina

e respirando sem pausas. Voltas a cabeça para o lado
da luz e abre-se devagar o talento incendidado
do teu rosto.
(...)
A minha alegria é um aroma de tangerinas nos dedos,
comer aos gomos a paisagem
e limpar depois
a boca
à manga do espanto.
Tu puxas-me
e somos duas crianças
nnnnnnnnn num trilho de mata,
nnnnnnnnnnnnn num banco de pedra,
nnnnnnnnnnnnnnnn num portão verde dividindo
o aqui e o ali.
Porque nós estamos aqui.
Aqui onde te entrego os meus bolsos,
e - repara - as tuas mãos cabem.

Nós estamos aqui.
(...)

Vasco Gato, 47, edição do autor, 2005

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Até à volta



O Sol sempre foi a matriz comum...

Postal de entusiasmos de Verão


Marguerite Yourcenar



Henri-Maximilien Ligre poursuivait par petites étapes sa route vers Paris.
Des querelles opposant le Roi à l'Empereur, il ignorait tout. Il savait seulement que la paix vielle de quelques mois s'effilochait déjà comme une vêtement trop longtemps porté. Ce n'était un secret pour personne que François de Valois continuait à guigner le Milanais comme un amant malchanceux sa belle; on tenait de bonne source qu'il travaillait sant bruit à équiper et à rassembler sur les frontières du duc de Savoie une armée tout neuve, chargée d'aller ramasser à Pavie ses éperons perdus. Mêlant à des bribes de Virgile les secs récits de voyage du banquier son pére, Henri-Maximilien imaginait, par-delà des monts cuirassés de glace, des files de cavaliers descendant ver des grands pays fertiles et beaux comme un songe: des plaines rousses, des sources bouillonnantes où boivent des troupeaux blancs, des villes ciselées comme des coffrets, regorgeant d'or, d'épices et de cuir travaillé, riches comme des entrepôts, solennelles comme des églises; des jardins pleins de statues, des salles pleines de manuscrits rares; des femmes vêtus de soie accueillants au grand capitaine; toute sortes de raffinements dans la mangeaille et la débauche, et, sur des tables d'argent massif, dans des fioles en verre de Venis, l'éclat moelleux du malvoisie.

Gabriel García Márquez



Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo. macondo era entonces una aldea de viente casas de barro y cañabrava construidas a la orilla de un río de aguas diáfanas que se precipitaban por un lecho de piedras pulidas, blancas e enormes como huevos prehistóricos. El mundo era tan reciente, que muchas casas carecían de nombre, y para mencionarlas había que siñalarlas con el dedo. Todos los años, por el mes de marzo, una familia de gitanos desarrapados plantaba su carpa cerca de la aldea, y con un grande alboroto de pitos e timbales daban a conocer los nuevos inventos. Primero llevaron el imán. Un gitano corpulento, de barba montaraz y manos de gorrión, que se presentó con el nombre de Melquíades, hizo una truculenta demonstración pública de lo que él mismo llamaba la octava maravilla de los sabios alquimistas de Macedonia. Fue de casa en casa arrastrando dos lingotes metálicos, y todo el mundo se espantó al ver que los calderos, las pailas, las tenazas y los anafes se caían de su sitio, y las maderas crujían por la desesperación de los clavos y los tornillos tratando de desenclavarse, y aun los objetos perdidos desde hacía mucho tiempo aparecían por donde más se les había buscado, y se arrastraban en desbanda turbulenta detrás de los fierros mágicos de Melquíades.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Teu nome

Podia chamar-te Verão...
Tu sabes disso.

Após o frio e as tormentas, vens de mansinho com cheiro de maresia, nuances de ar morno e aromas de pinheiro bravo a desflorar.

Em veladas formas nuas te insinuas, na promessa de um doce recordar, de um beijo que se quer breve, com aromas a pêssego e a morangos.

Em mornas noites de ondas lentas e compassadas, o teu canto inebria, ao sabor do mais puro suspirar, entre travos de um qualquer néctar quente e sedutor.

Nos raios dourados de um astro que míngua, abres o pano para estrelas confindentes, sobrando apenas um mapa aguado dos segredos que queres partilhar.

Por onde andas é mistério e a miragem do teu sorriso é o tesouro a descobrir.

E se no meio de finos grãos de rocha incongruente fica a certeza de um retorno, o suspiro da cósmica distância dá a esperança de uma rota, de um rumo...

No meio de tudo e no fim do instante, sais como entras, deslumbrante...

E, com as primeiras chuvas, o desejo...

O desejo de a ti voltar.

Nightline



Há três noites...

Entre as Duas e as Três


hhhhhhhhhhhhhh
nnnnnnnn
mmmmmmm
mmm
mmmmm
mmmmm
m
Queria falar do que não tem concerto:
as letras desenhadas e compostas
com que confundo o espaço do papel,
a angústia compassada no contar
e a súbita alegria de ser eu
penosamente, às duas da manhã
kkkkkkkkk
Queria escrever do que não tem lugar:
a branca, doce e sonolenta estrada
onde espaçadas as palavras crescem,
suavizadas pelo lento sono
que devagar percorre as coisas todas
penosamente, às duas da manhã
hhhhhhhhhhh
Queria dizer do que não tem conserto:
ou seja, eu; ou seja, o papel branco
sombrio agora por já ser demais,
as letras excedentes e sonoras
desmembrando o silêncio e a noite toda
penosamente, às duas da manhã
hhhhhhhhhhhhhh
Só então falarei do que ficou:
compassada alegria desenhada
na angústia de dizer sem me contar,
o papel confundido de impotente
e todavia prontas as palavras.
Quase às três da manhã. Penosamente.
hhhhhhhhhhhhh
Ana Luísa Amaral, entre as duas e as três, Coisas de Partir

Fotografia de Coimbra

Coimbra é a cidade e a esperança dos domingos à tarde.
Um calendário abandonado no bolso do casaco é Coimbra.
Coimbra são as fotografias reveladas de um rolo antigo,
esquecido numa gaveta. E, no entanto, enquanto falamos,
Coimbra existe e corre no recreio. Existe ar que é respirado
apenas por Coimbra. Existe um coração no seu peito a bater,
e esse é um milagre de deus que transcende deus.
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
José Luís Peixoto, Fotografias de Cidades, Gaveta de Papéis
Prémio Daniel Faria, 2008, edições quasi, Abril 2008

Quarto Crescente

Porque vejamos: uma lua destas
já nem lua é. A lua quer-se grande,
leitosa, apontável às crianças:
olha o homem da lua, os olhos, a
jjjjjjjjjjjjjjjjjj
vassoura. Mas uma lua destas,
desfazendo-se em sombras, um ar
de quem passou o dia em claro
já nem lua é. Que não exija então
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
o impossível, que não se finja
a sério a pedir versos e algum olhar:
o poeta não usa telescópio,
nem se vai acordar uma criança
por gomos de luar
jjjjjjjj
Ana Luísa Amaral, imagens, Coisas de Partir, Gótica, 2001

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Gripe, a espanhola

Agora vende-se a preço de saldos, porque entrou neles antes de tempo, ou o tempo se esqueceu que a história sempre se renova. Escrito por Reina James (cujos avós também morreram na epidemia), é o primeiro romance histórico sobre a última (então) pandemia na Europa. Escreve-se na capa que "se todos os mortos de gripe espanhola segurassem uma vela, a terra, vista do ar, era uma bola de fogo". Mas não é apenas um romance de desgraça ("- Está um homem azul caído na estrada! A princípio não o percebi, mas comecei a ver uma multidão a juntar-se. Por isso saí e fui espreitar. Quando me viram desviam-se. Acontece muito, onde quer que um corpo esteja: as pessoas vêem-me e afastam-se, recuam. O rapaz seguiu-me por entre a multidão. Apontou para o homem caído, meio atravessado sobre o passeio e a estrada. - Veja, está azul! E estava. lábios e orelhas eram de azul-arroxeado, cor de ameixa. a pele do rosto estava manchada e pálida, mas também tingida de azul, como se tivesse sido açoitado por um trapo azul sujo de tinta. teria uns trinta e cinco anos ou perto disso, estava descalço, sem meias nem sapatos, e também não vi nenhum chapéu, nem na cabeça nem perto dela"), mas de poesia ("O poema afectou-me muito. Encontro-me em bosques profundos/Entre dois crepúsculos/O que quer que eu seja ou possa vir a ser/Escrevam à Luz que existe em mim/Eu sou eu e estes são os meus actos/ Eu sei que os caminhos são escuros/ Entre os dois crepúsculos") e de paixão: Henry, um cangalheiro que repara no aumento diário dos seus clientes, é um homem sem mulher, dominado por mulheres e Allen uma mulher sem homem, num mundo de homens. nenhum deles está habituado a apaixonar-se. "Epidemia é um retrato do quotidiano durante uma pandemia - uma gripe para a qual a ciência não tinha resposta. é o retrato absorvente de uma época em que o medo de morrer e o desejo de acreditar na vida se misturam".
Afinal, está tudo na literatura!
nnnnnnnnnn
Epidemia, Um tempo para viver, Reina James, Dom Quixote, 2007

O Leilão do Lote 49, Pynchon



Thomas Pynchon é um escritor genial, que, por vontade própria, se esconde do mundo há décadas. Em 1963 foi publicado um dos seus mais aclamados romances, V, e logo considerado de um tipo inovador, como tinha sido a escrita de Joyce ou Beckett. Espera-se fervorosamente a publicação, em breve, de um novo livro. Entretanto, foi feita uma nova tradução portuguesa do seu "O leilão do lote 49" (Relógio D'Água), o romance em que Oedipa é feita testamenteira dos bens do seu antigo amante (um tal Pierce Inverarity) e em que, no cumprimento dos seus deveres do cargo, descobre estranhas revelações. No último suplemento do Expresso dá-se nota da contínua actualidade e beleza deste livro (texto de Rogério Casanova, pontuação cinco estrelas) e, além do mais, diz-se que "uma passagem (na pág. 10 desta edição) continua a parecer-me o naco de ficção mais bem pontuado de todos os tempos". Aqui fica a passagem: "Contudo, tinha acreditado nos carros. Excessivamente, talvez: e como poderia ter sido diferente, quando via dirigir-se-lhe toda aquela gente ainda mais pobre do que ele, pretos, mexicanos, brancos, uma multidão sete dias por semana, trazendo para troca as carripanas mais inverosímeis: verdadeiros prolongamentos metálicos e motorizados deles próprios, das suas famílias, reflexo do que haviam sido as suas vidas, que eles punham a nu, ali, diante de um estranho como ele, para que as examinasse, chassis amolgados, cheios de ferrugem, guarda-lamas com cores que as tornam invendáveis e para desencorajar Mucho, e o interior cheirando desesperadamente a crianças, a aguardente dos supermercados, a duas e a três gerações de fumadores de cigarros, ou simplesmente a pó - e, limpo o interior dos carros, era preciso examinar os resíduos destas vidas, e era impossível distinguir entre aquilo que tinha verdadeiramente sido rejeitado (e supunha que por medo se guardava o pouco que aparecia) e aquilo que muito simplesmente (talvez tragicamente) tinha sido perdido: talões agrafados oferecendo descontos de 5 a 10 cêntimos, bilhetes, propaganda de baixa de preços em supermercados, beatas, pentes desdentados, ofertas de empregos, páginas amarelas arrancadas de listas telefónicas, farrapos de roupa interior ou de vestidos fora de moda que serviram para desembaciar uma pára-brisas para que se pudesse ver o que havia para ver, um filme, uma mulher ou um carro que se cobiçava, um chui que talvez o levasse dentro porque não tinha mais nada para fazer, ninharias todas elas envoltas invariavelmente, como uma salada de desespero, num condimento cinzento de cinzas, de gases concentrados de escapes, de poeira, de desperdícios humanos - ficava doente só de olhar, mas tinha de olhar."

Água

Valery Anzilov

Lembranças, antes de rasgar o rio

as malas foram carregadas, o barco está pronto e a noite aguarda, mas ninguém
partiu sem pintar o rio no dourado da saudade que já se sente presa ao peito

Abecedário (Nuno)

Nuno Correia e V. L. de Albergaria sabia artes marciais e adora fazer puzzles com mais de mil peças. Passava noites a fio a juntar os pedaços, acompanhado por copos de leite magro e bolachas dietéticas. Deitava-se tarde, semi ensonado com as cores misturadas dos seus problemas recortados, mas enchia cem abdominais antes de se estirar na cama dura.
Tinha um curso desnecessário, um carro descuidado e uma namorada que teimava em adiar o enlace. Receava-lhe a teimosia das noites lúdicas em solitários magicares e a sua abstinência de convívios e outros prazeres mais mundanos, esquecido das gentes no encaixe das peças.
Vezes sem conta o encostou à parede. Umas vezes em razões físicas de volúpia; muitas mais com a ameaça de um alheamento definitivo, continuasse ele nas infantilidades daquela vida dividida entre o exercício e o recorte. Fazia-lhe espécie aquele desperdício muscular, aquela abnegação, sem oferta, aquela distância da carne, mais por ser sua. E se valia a pena! – Salientavam-lhe as colegas, mais turvando o seu espírito e permitindo, aqui e além, que uma descrença na assumpção do namorado se lhe instalasse na mente. Um atleta! Para quê um atleta?
Nuno andara pelo futebol juvenil e chegara a ser baptizado sucessor de Humberto: um corpo completo em metro e noventa de músculo, uma sagaz visão do campo, uma antecipação acutilante. Os avançados sofriam em vão para chegarem primeiro, baldadamente tentavam reviengas e ronhonhós e, quase sempre, levava a admiração de ser eleito o melhor em campo. Num dia qualquer, normal aos normais, decidiu apartar-se dos desportos colectivos e dedicou-se ao karaté a tempo inteiro, de laudes a completas. Ignorou os protestos dos colegas, a raiva do chefe de departamento e a estranheza do pai. Estava decidido. E no Nuno, por mais estranho que fosse o conteúdo da decisão, ela valia por si mesma: irreversível e inultrapassável. Com a dedicação desmedida, ultrapassou cintos a uma velocidade recorde e em poucos anos foi ao Japão certificar o terceiro dan.
Com tantas potencialidades, nunca se misturou numa briga, nunca aproveitou um momento de experimentação técnica. Sucessivamente, cada vez de modo mais persistente, foi ficando em casa à noite e nos quentes finais de tarde. Primeiro queimava o tempo em sôfregas recargas de televisão, deitado no sofá como um marasmo. Lia pouco, dormia muito, comia regular. Até que num Natal dos anos noventa, a Leonor lhe ofereceu um puzzle enorme, com a torre Eiffel estranpelhada em dois mil pedaços.
Achou a coisa inopinada, vinda da sua colega do último ano. Mal se conheciam, Nuno nunca lhe passara cartão e não havia notado qualquer atenção especial da parte dela.
Leonor era tudo menos pouco requisitada. Festas, convívios, mensagens furtivas e declarações mais claras. O filho do catedrático prometera-lhe uma média desusada por troca de número par em dois convívios africanos, nem pedia mais; o sobrinho do dono do Hotel Figueira deixava-a conduzir o descapotável sem carta, nas noites mais tépidas, afastados do bulício em desculpa dos olhares policiais, em troca de uns beijos languidos que só ele imaginou.
Leonor, afinal, gostava de ter a indiferença, o desleixo do tanto faz. Cuidou-se capaz de alterar caminhos de destino, de moldar e mudar, de pôr o Nuno a olhar para ela como quem vê ali o mundo inteiro. Enganou-se. Agora, acha apenas que foi teimosa.
Nuno agradeceu a oferta, mas teve a coragem de perguntar porquê. Leonor embasbacou-se e disfarçou a verdade. Sabia que ele juntava o aniversário ao de Cristo e disse-lhe que tinha de o conhecer antes dos trinta e três. Nem um nem outro percebeu a graça, se era mórbida ou festiva, mas essa ignorância foi o condão para de irmanarem num sorriso.
Os tempos seguintes foram desmontando a graça e construindo a desgraça. Ano a ano, como o mar que corrói a rocha dura, persistente, contumaz. Nuno não se descosia, Leonor achava-se cerzida, sem qualquer movimento além da insistência de o querer diferente.
Um dia qualquer, Nuno pegou no papelinho da cómoda pensando que era mais um recado para não esquecer alguma compra e foi ficando apático, de parágrafo a parágrafo. Leonor dizia-lhe que não queria saber de mais nada, ia deixá-lo, e não tinha como voltar atrás. Foram anos mudos, ele nunca sequer lhe sentira o gosto ou o interesse. Estava farta do nada.
Nuno quis falar-lhe e apresentar algumas razões. Desistiu, depois de quatro tentativas para um telemóvel desligado. Odiava deixar mensagens no gravador!
Andou apreensivo, mas não lhe notaram desgraça no rosto. Voltou aos treinos e intensificou os puzzles. Nos anos seguintes, e ainda hoje, continuou no leite magro e nas bolachas dietéticas.
barca de pesca na noite do rio Arade

Sur les côtes du Portugal

Du Havre nous n'avons fait que suivre les côtes
comme les navigateurs anciens
Au large du Portugal la mer est couverte de barques
et de chalutiers de pêche
Elle est d' un blue constant est d'une transparence pé-
lagique
Il faut beau et chaud
Le soleil tape en plein
D' innombrables algues vertes microscopiques flo-
tent à la surface
Elles fabriquent des aliments qui leur permettent de
se multiplier rapidement
Elles sont l' inépuisable provende vers laquelle accourt
la légion des infusoires et des larves marines délicates
Animaux de tout sortes
Vers étoiles de mer oursins
Crustacés menus
Petit monde grouillant prés de la surface de eaux tou-
te pénétrée de lumière
Gourmands et friands
Arrivent les harengs les sardines les maquereaux
Que poursuivent les germons les thons les bonites
Que poursuivent les marsouins les requins les dauphins
Le temps est claire le pêche est favorable
Quand le temps se voile les pêcheurs sont mécon-
tents et font entendre leurs lamentations jusqu' a la tribu-
ne du parlement

Blaise Cendrars, Folhas de Viagem
(e não será por acaso que, quando se é poeta, o que parece uma redacção sobre a pesca é efectivamente um poema)

sábado, 8 de agosto de 2009

Raul Solnado

Todos os dias são tristes ou alegres em cada memória que acendem. Mas o riso é a única - e, por isso - a maior conquista do Homem.
Em sua homenagem.

Com título dentro


Quero dar-te um nome de três letras
De Paz, de Amor e de Imensidão
E valha mais que o futuro dos profetas
O gesto simples da nossa dupla mão

1934.08.08

Nos restos de poemas
Que o sono roubou ao sonho
Havia um escrito em choro de menino
Pintado de azul e dentes
Tão perto como os poentes
Tão longe como a distância
E neste corpo que avança
Voltou-me à memória
O teu braço amigo
Que me deixava no cimo da vida
Onde o perigo
Era só limpar depressa as lágrimas
E não beber o horizonte.
Por muito que volte a sonhar
Sei que não vou estar
No berço do teu braço
Salvo em cada escuro que desfaço
E no beijo infinito
Com que sinto
O vagar sonâmbulo do mundo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Abecedário (Bernardo)

Bernardo saiu do cabriolet furibundo com o sistema automático.
Em menos de duas semanas, era a terceira vez que a capota rígida não recolhia por inteiro e o sistema fez-se surdo-mudo quando lhe explicou as razões de queixa, primeiro mansamente e, volvidos segundos, praguejando a marca, os mecânicos e até o bom Deus. O veículo, modelo up up grade, vinha munido de sistema manual de utilização rápida e simples, capaz de solucionar qualquer problema, mesmo aquele, mas havia sempre a hipótese de Bernardo ficar de mãos oleadas e, pior ainda, escancarar aos passantes a sua comprovada ineptidão manual.
Odiava um reles parafuso, abominava uma chave de fendas, desprezava qualquer livrinho de instruções. Mas pagava, tinha direitos! Pagava para manter essas estimações: o carro tinha sido caríssimo (não forçosamente para ele, mas numa análise objectiva de mercado e com o sentido de um bonus pater familiae), a garantia assegurava cinco anos inteiros de fiabilidade e o cartão de crédito prevenia qualquer irreverência dos automatismos, teimando em dar como certa a assistência nos próximos quinze minutos, em qualquer pedaço recôndito do mundo inteiro.
Os locais do embaraço eram sempre escrupulosamente escolhidos, parecendo que a Criatura lá de cima, em lugar de jogar aos dados, o tinha sorteado para exemplo da ridicularia.
Na primeira vez, há pouco mais de uma semana, tinha sido em frente da casa da futura sogra e conseguiu espreitar-lhe o sorriso trocista a enfeitar as pregas dos longos cortinados da janela da sala. Há cinco dias, se tanto, foi mesmo à porta do bar do Clube, quando a Mónica teve de ficar a fazer urgências e ia, ledo e pimpolho, mostrar às colegas todo o vermelho metalizado da sua recente aquisição.
Agora ali, precisamente à entrada da porta principal do Palácio da Justiça, precisamente quando tinha conseguido um lugar fronteiro, onde era completamente impossível – precisamente como se havia esforçado – passar despercebido ou sequer como um qualquer.
No segundo piso, na janela mais ao fundo, já se vislumbrava a senhora escrivã do terceiro juízo a chamar ao espectáculo todo o pessoal de apoio, auxiliares e eventuais incluídos, e quase se percebia o som do discurso unânime: tanto dinheiro e tão pouco jeito! Doutor Bernardo!
Espreitando no magote da coscuvilhice, a adjunta Sereia (Sereia de Souza e Silva no tratamento integral) não conseguia apartar o cómico do enlevo e disfarçava o olhar directo, acautelando a solidariedade, se a coisa viesse a dar para o torto, tal como estava em ver-se que sim.
Sereia era imensamente boa, até como pessoa, e o doutor Bernardo (Bernardo Siqueira no tratamento profissional) costumava repetir que adorava ser atendido pela menina. Sem outros avanços, por enquanto, mas estudando o caminho para que, chegada a hora deles, não parecessem importunos.
Cá fora, de todo inesperadamente, uma nuvem carregada veio-se juntar à pandega da assistência. Aproximou-se, sorrateira mas firme, deitou um chuviscado aviso de segundos e, imediatamente, sem qualquer mais, água vai: uma bátega tão forte, tão despropositada que até os cães precisavam de impermeável. Que carga!
Bernardo ficou pendurado entre o corre e o aguenta, mas não aguentou: correu, correu, mas era como se apenas caminhasse dentro de água.
A gravata Armani ensopada, o sapato Sebago, americano de gema, todo empapado, o fatinho Boss encharcado, a cuequinha Gucci (um boxer, claro) alagada. Tudo completamente molhado. Bernardo trazia uma pasta Monteblanc de mil e duzentos dólares, mas parecia um plástico de levar à pesca.
Quando passou o átrio e se abrigou continuou tempos infindos a pensar que chovia. Da cabeça aos pés era um rodilho a sair do balde das limpezas. Nada se aproveitava. Correu (nadou?) até à casa de banho mais próxima e tentou ligar do móvel para o terceiro juízo. O telemóvel respondeu-lhe no mesmo tom do veículo: agora não!
Salvou-o um colega que desanuviava a bexiga no intervalo do julgamento. Avisou-o que o magistrado estava saturado de o esperar, mas ia transmitir o sucedido: afinal, saturado era a melhor rima para Bernardo.
Bernardo rogou que no caminho suplicasse os favores de Sereia, aquela menina boa do terceiro juízo.
Claro!
Repreendeu-lhe o colega. Há nomes mesmo dados à água. Acasos!
Sereia escolheu a solidariedade, quando a contrapartida certa era o gozo dos colegas. Foi sensível ao dilúvio que tinha espreitado da janela. Mas, mesmo no despudor que as desgraças consentem, não lhe parecia correcto entrar sem mais pela casa de banho e deitar-se a socorrer o pingado, tanto que sem alguma ligação íntima a uni-los.
Falaram com a porta a apartar qualquer pouca vergonha, ainda que fruto da aflição inesperada, e Sereia prometeu-lhe um equipamento completo, mesmo que muito parco em marcas consagradas.
Assim fez, usando a preceito a por outros estafada máxima de quem promete cumpre: um casaquinho no primeiro juízo, uma camisola na segunda secção e umas sapatilhas que andavam perdidas na espera semanal do jogo de futebol entre comarcas. As calças, isso foi mais complicado e Sereia nunca quis dar muita explicação. Mas lá lhe serviram, com as ancas a sobrar de espaço e um palmo em falta para chegarem aos calcanhares.
Bernardo correu para casa de taxi, guardou no bolso seco o número particular de Sereia e o juiz aceitou uma desculpa manhosa para adiar a audiência.

Sereia foi brindada com dizeres estranhos quando regressou ao Windows para terminar a acta e preparar dois mandados. O colega mais novo julgou-se protegido pela circunstância e pela unanimidade e acrescentou ao sorriso uns dizeres mais afrodisíacos.
Se ela lhe tinha secado o corpo inteiro, que ele também se ia lançar a um dilúvio e esperava igual dedicação, tanto mais colegas.
Foi no que se aventurou.
Sereia resguardou-se no silêncio, depois de se desculpar com o estado calamitoso do advogado. Sabia que ele guardara o número no bolso seco. E sabia das suas potencialidades. Toda a gente sabia, todas as adivinhavam!
O doutor Bernardo ligou-lhe no mesmo dia, já noite. Impunha-se-lhe uma cortesia de agradecimento. Fez-lhe ver que ainda estaria a olhar o autoclismo, se a sua solidariedade não tivesse sido tão actuante. Fez-lhe sentir o quanto passava a ser sua credora.
Sereia concordou. Não com tantos excessos de reconhecimento, com tanta graça delicodoce, mas mostrando-se pronta a aceitar uma paga. Simbólica. Como bons amigos. Amigos a quem a desgraça dos céus uniram num companheirismo.
Marcaram encontro, longe do átrio desumano da comarca, fugidos ao sussurro troceiro de colegas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Febre de Sábado à noite

1000 Kms de Portimão (1/2 de Agosto de 2009)

Abecedário (Adelaide)

Tinha um jeito muito seu de olhar a vida e de enternecer com tudo. Aos trinta e cinco anos, cheia de esperanças desfeitas e ternuras por encontrar, Adelaide adiava as eventualidades, reclusando-se num tipo dois de águas furtadas e deitando-se sempre no mesmo dia em que se havia erguido. Não gostava nem desgostava em demasia daquilo que tinha de fazer e ia rodando os interesses ao som do desalento, teimosamente convicta de assim ter que ser.
Deixara-se ficar pela cidade assim que o diploma lhe certificou a conclusão do curso. Dezasseis valores, a antecâmara de assistente, que não era certidão para mais-valia alguma. Fez o estágio, agarrou-se dois anos ao escritório do patrono e, depois, numa tarde de primavera em que o tempo estava estranhamente nublado e fresco, disse-lhe que não queria sociedade, que tinha saber e coragem para se lançar a solo na selva das causas.
Continua a duvidar do acerto daquele intemperado propósito, mas, de quando em vez, mais ou menos semanalmente, quintas ou sextas, quando o descanso se achega, considera que fez bem, que foi suficientemente arrojada, tanto como as mulheres têm que ser.
O pai deixara há muito o seu convívio familiar, desaparecido num sofrimento patético que a medicina não sabia acautelar, e a mãe foi-se embora naqueles primeiros momentos de afirmação. Nenhum socorro esperava dela, já por então, mas a perda repentina, tão diferente do pai, foi a desculpa bastante para tomar como ordinários os primeiros fracassos.
A senhora doutora ainda anda pouco rotinada nisto; aquele prazo estourou-lhe nas mãos e o cliente não lhe vai perdoar; aquele juiz gosta de tudo, menos da sua mini-saia juvenil, que afasta a atenção dos depoimentos e o deixa com rigores de afirmação de zelo.
Diziam-lhe.
Foi deixando ficar a mini-saia por uma teimosia arrebatadora, acautelando um caso ou outro, mas exagerando aos fins de semana; foi consumindo os códigos anotados com devoção exacerbada e treinou-se em casa, vezes a fio, servindo-se do espelho da entrada para as posturas mais veementes; mais à frente, assinou um seguro de responsabilidade civil, não fosse outro prazo queimado nas mãos pedir-lhe responsabilidades maiores que as suas escassas poupanças.
E o que gostava das mini-saias! Não por vã glória de mostrar, como a têm os que mandam, não para patentear excessos de relevo, como mais pudicas construíam com as gangas cingidas. Nada disso; era um gosto de catraia que os anos não dissiparam: sentia-se bem a saltitar as pocinhas de água junto aos passeios e, quando podia – as condições, isso das circunstâncias o permitiam -, ainda se enfeitava com dois rabichos adornados com grandes pompons vermelhos.
O Eduardo não lhe suportava o ar traquinas, tão misturado numa sisudez desmedida: à noite, sem que alguém o visse, deitava-se aos códigos numa avidez de competência que esquecia o jantar ou o trocava por uma canja rápida; à luz de todos e à vista destes, cachopava como infantil, desligava-se do sério por inteiro. Era capaz de cantarolar uma pimba à porta da sala de audiências!
Fazes tudo ao contrário, Laidinha: pareces tola quando te vêm e tornas-te séria às escondidas; esqueces-te da mulher de César!
Dizia-lhe.
E a coisa foi dando para o torto. Não num repente, mas irremediavelmente. Começaram a arranjar desculpas para se verem menos, cada qual foi tendo trabalhos só seus, interesses indizíveis que deixaram de conciliar, assuntos muito próprios, dossiês pessoais.
Depois de uma incerteza de meio ano, o Eduardo decidiu-se a não mais a ver, precisamente na ocasião em que ela decidira o mesmo. Houve consenso, sem falarem nisso. E cada um pensou ter sido desmedidamente agreste para o outro. Ainda hoje carregam essa culpa putativa e as consequências dessa imaginação.
Assim, nos últimos cinco anos, desde que fez os trinta num Novembro ido, Adelaide têm-se mantido inviolável nos propósitos celibatários e tem construído, pedra a pedra, nega a nega, a muralha que a acautela de qualquer arremedo e da hipótese, ainda que remota, de poder vacilar nessa intensa certeza.
Ganhou-lhes medo ou quer assim pensar.
Mantém um olhar um olhar rasgado e cativo e ainda gosta de saltar diabruras e de sorrir com a cara cheia, como se os anos deixassem inviolável a expressão.
Além do mais, o corpo chega-lhe à idade final da gestação (relativamente, bem se vê, que os tempos são sempre outros) com um assombroso poderio de azouge, incomodando os homens e, normalmente em primeira via, as mulheres deles. Mas o propósito é para cumprir, é uma promessa mesmo sem santo beneficiado, e sequer se dá ao tempo de construir subterfúgios para atenuar as ânsias: deixou de as ter, conseguiu deixar de as ter.
Os apoderados dos tempos antigos assustaram-se nas censuras claras, aos primeiros arremedos, quando souberam que o Eduardo era um espaço vazio, um sofá sem corpo nas águas furtadas que avistavam a ponte sobre o Mondego. Um a um, foram recuando nos intentos e, por causa destes, desinteressaram-se de outros modos de partilha. Alguns restantes, sequer tentaram a sua volta, suspeitando dos recuos imediatos ou expressamente avisados de um resultado consabido.
Depois de uns tempos de completa abulia, colmatada com os comentadores que entretanto, de tanta teimosa leitura, acabaram imprestáveis por decorados, Adelaide entregou-se aos crepes de chocolate e mel e aperfeiçoou os dotes na culinária geral, mormente na portuguesa tradicional e num ou outro acepipe mediterrânico. Era o seu entretém, entre o vergar da tarde e a hora da pernoita.
Passou a acarinhar os legumes e as massas, os açucares e o cacau como nunca antes acarinhara as gentes. Sequer o Eduardo, sequer quando fora o seu Edu, justamente o ser vivo de quem mais se aproximara.
Chegaram a envolver-se de um modo além de físico, a magicar ideias de companhia permanente e até de sacramento.
O que a mãe não gostaria! Deus a tenha.
Pensava ela, pedia ela, compenetrada, em fileiras de dias aquecidos em lençóis de linho branco e frescos.
Hoje, porém, tudo aquilo era uma lembrança disforme, um borrão cada vez mais apagado. Que já só saltitava à ideia em monotonias teimosas ou na vista de um filme de lágrimas.
Os anos também haviam de passar, como os dos outros. Com baixos e altos, sempre de acordo com um certo modo de ver. Já sabia olhar o mundo com essa calma; com os olhos de além, mas a serenidade de agora.
Adelaide também gostava muito de cerejas. Daquela cor de pompom catraio. Daquela teimosia em se ligarem umas às outras.
E haveria de continuar a gostar. Mesmo teimosa em achar melhor não se ligar a coisa nenhuma.