quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Abecedário (Adelaide)

Tinha um jeito muito seu de olhar a vida e de enternecer com tudo. Aos trinta e cinco anos, cheia de esperanças desfeitas e ternuras por encontrar, Adelaide adiava as eventualidades, reclusando-se num tipo dois de águas furtadas e deitando-se sempre no mesmo dia em que se havia erguido. Não gostava nem desgostava em demasia daquilo que tinha de fazer e ia rodando os interesses ao som do desalento, teimosamente convicta de assim ter que ser.
Deixara-se ficar pela cidade assim que o diploma lhe certificou a conclusão do curso. Dezasseis valores, a antecâmara de assistente, que não era certidão para mais-valia alguma. Fez o estágio, agarrou-se dois anos ao escritório do patrono e, depois, numa tarde de primavera em que o tempo estava estranhamente nublado e fresco, disse-lhe que não queria sociedade, que tinha saber e coragem para se lançar a solo na selva das causas.
Continua a duvidar do acerto daquele intemperado propósito, mas, de quando em vez, mais ou menos semanalmente, quintas ou sextas, quando o descanso se achega, considera que fez bem, que foi suficientemente arrojada, tanto como as mulheres têm que ser.
O pai deixara há muito o seu convívio familiar, desaparecido num sofrimento patético que a medicina não sabia acautelar, e a mãe foi-se embora naqueles primeiros momentos de afirmação. Nenhum socorro esperava dela, já por então, mas a perda repentina, tão diferente do pai, foi a desculpa bastante para tomar como ordinários os primeiros fracassos.
A senhora doutora ainda anda pouco rotinada nisto; aquele prazo estourou-lhe nas mãos e o cliente não lhe vai perdoar; aquele juiz gosta de tudo, menos da sua mini-saia juvenil, que afasta a atenção dos depoimentos e o deixa com rigores de afirmação de zelo.
Diziam-lhe.
Foi deixando ficar a mini-saia por uma teimosia arrebatadora, acautelando um caso ou outro, mas exagerando aos fins de semana; foi consumindo os códigos anotados com devoção exacerbada e treinou-se em casa, vezes a fio, servindo-se do espelho da entrada para as posturas mais veementes; mais à frente, assinou um seguro de responsabilidade civil, não fosse outro prazo queimado nas mãos pedir-lhe responsabilidades maiores que as suas escassas poupanças.
E o que gostava das mini-saias! Não por vã glória de mostrar, como a têm os que mandam, não para patentear excessos de relevo, como mais pudicas construíam com as gangas cingidas. Nada disso; era um gosto de catraia que os anos não dissiparam: sentia-se bem a saltitar as pocinhas de água junto aos passeios e, quando podia – as condições, isso das circunstâncias o permitiam -, ainda se enfeitava com dois rabichos adornados com grandes pompons vermelhos.
O Eduardo não lhe suportava o ar traquinas, tão misturado numa sisudez desmedida: à noite, sem que alguém o visse, deitava-se aos códigos numa avidez de competência que esquecia o jantar ou o trocava por uma canja rápida; à luz de todos e à vista destes, cachopava como infantil, desligava-se do sério por inteiro. Era capaz de cantarolar uma pimba à porta da sala de audiências!
Fazes tudo ao contrário, Laidinha: pareces tola quando te vêm e tornas-te séria às escondidas; esqueces-te da mulher de César!
Dizia-lhe.
E a coisa foi dando para o torto. Não num repente, mas irremediavelmente. Começaram a arranjar desculpas para se verem menos, cada qual foi tendo trabalhos só seus, interesses indizíveis que deixaram de conciliar, assuntos muito próprios, dossiês pessoais.
Depois de uma incerteza de meio ano, o Eduardo decidiu-se a não mais a ver, precisamente na ocasião em que ela decidira o mesmo. Houve consenso, sem falarem nisso. E cada um pensou ter sido desmedidamente agreste para o outro. Ainda hoje carregam essa culpa putativa e as consequências dessa imaginação.
Assim, nos últimos cinco anos, desde que fez os trinta num Novembro ido, Adelaide têm-se mantido inviolável nos propósitos celibatários e tem construído, pedra a pedra, nega a nega, a muralha que a acautela de qualquer arremedo e da hipótese, ainda que remota, de poder vacilar nessa intensa certeza.
Ganhou-lhes medo ou quer assim pensar.
Mantém um olhar um olhar rasgado e cativo e ainda gosta de saltar diabruras e de sorrir com a cara cheia, como se os anos deixassem inviolável a expressão.
Além do mais, o corpo chega-lhe à idade final da gestação (relativamente, bem se vê, que os tempos são sempre outros) com um assombroso poderio de azouge, incomodando os homens e, normalmente em primeira via, as mulheres deles. Mas o propósito é para cumprir, é uma promessa mesmo sem santo beneficiado, e sequer se dá ao tempo de construir subterfúgios para atenuar as ânsias: deixou de as ter, conseguiu deixar de as ter.
Os apoderados dos tempos antigos assustaram-se nas censuras claras, aos primeiros arremedos, quando souberam que o Eduardo era um espaço vazio, um sofá sem corpo nas águas furtadas que avistavam a ponte sobre o Mondego. Um a um, foram recuando nos intentos e, por causa destes, desinteressaram-se de outros modos de partilha. Alguns restantes, sequer tentaram a sua volta, suspeitando dos recuos imediatos ou expressamente avisados de um resultado consabido.
Depois de uns tempos de completa abulia, colmatada com os comentadores que entretanto, de tanta teimosa leitura, acabaram imprestáveis por decorados, Adelaide entregou-se aos crepes de chocolate e mel e aperfeiçoou os dotes na culinária geral, mormente na portuguesa tradicional e num ou outro acepipe mediterrânico. Era o seu entretém, entre o vergar da tarde e a hora da pernoita.
Passou a acarinhar os legumes e as massas, os açucares e o cacau como nunca antes acarinhara as gentes. Sequer o Eduardo, sequer quando fora o seu Edu, justamente o ser vivo de quem mais se aproximara.
Chegaram a envolver-se de um modo além de físico, a magicar ideias de companhia permanente e até de sacramento.
O que a mãe não gostaria! Deus a tenha.
Pensava ela, pedia ela, compenetrada, em fileiras de dias aquecidos em lençóis de linho branco e frescos.
Hoje, porém, tudo aquilo era uma lembrança disforme, um borrão cada vez mais apagado. Que já só saltitava à ideia em monotonias teimosas ou na vista de um filme de lágrimas.
Os anos também haviam de passar, como os dos outros. Com baixos e altos, sempre de acordo com um certo modo de ver. Já sabia olhar o mundo com essa calma; com os olhos de além, mas a serenidade de agora.
Adelaide também gostava muito de cerejas. Daquela cor de pompom catraio. Daquela teimosia em se ligarem umas às outras.
E haveria de continuar a gostar. Mesmo teimosa em achar melhor não se ligar a coisa nenhuma.

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