quinta-feira, 31 de janeiro de 2008


FGL. poesia com histórias


A alegria da cidade acabara de desaparecer e era como a criança recém-chumbada nos exames. Tinha sido alegre, coroada de trinos e marginada de juncos até há poucas horas, quando a tristeza que afrouxa os cabos eléctricos e ergue as lajes das arcadas invadira as ruas com o seu ruído imperceptível de fundo de espelho. Comecei a chorar. Porque não existe nada mais comovente que a tristeza nova sobres as coisas festejadas, embora pouco densas, para impedir que a alegria se deixe adivinhar no fundo, cheia de moedas furadas.

Frederico Garcia Lorca, Santa Luzia e São Lázaro
(Anjo e Duende, Assírio e Alvim,
trad. Aníbal Fernandes)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

a cauda da composição

Vogámos a Coimbra, cumprindo promessa pretérita de largar os miúdos no Portugal Deles, agora nomeado “dos pequenitos”. A empresa tardia permite-lhes, agora, que a liberdade de pronúncia coincida com a da vista. Riem de gozo ou a gozar; choram de rir, de saudade, ou de pena. A Dulcineia avançou a necessidade de complexos semelhantes clonarem a Expo, o Cultural de Belém, ou espelharem as Amoreiras. O Felisberto, meia hora depois de voar da taciturnidade, repetiu o seu refrão dos últimos dias: “Deus foi muito machista na distribuição do juízo!” Gasto o dia, quase por inteiro, avançámos a Coimbra B (uma estação pardieiro do século 20, primórdios…) onde ouvimos o sublime poema que repito: “… as carruagens da classe conforto circulam na cauda da composição”. Num enlevo, palavra a palavra. A composição, as carruagens a circular(em) e, exponencial máximo, a cauda, a cauda da composição. Cauda enorme que, todos juntos, ficámos sem saber onde tomava início.

No início eram os "Warsaw"

As boas estórias são sempre contadas a preto e branco. "Control" de Anton Corbjin é, certamente, uma delas.

A vida de Ian Curtis foi breve e certamente não por obediência ao antigo brocardo que diz que morrem jovens aqueles que os deuses amam. De facto, tenho para mim que o vocalista e a verdadeira âncora dos Joy Division não queria nada com os deuses.

O seu duelo era outro... era com a vida que sempre conheceu, não suportando a cidade em que vivia, rejeitando a rotina institucionalizada pela escola, os modelos pré-estabelecidos - de que cedo se separou -, enfim, tudo o que lhe era dado por um ambiente claustrofóbico de horizontes curtos e sem espaço para outros sonhos, esses, produtos da combinação de tal cinzentismo com uma débil imagem de esperança.

A Ian Curtis juntou-se toda uma geração que procurava a fórmula perfeita de exteriorizar esse desespero provocado por uma sociedade convencional que, na altura (finais dos anos setenta), conhecia um dos seus mais cruciais momentos de agonia. Lá está, o que veio depois foi a sua lenta falência, ainda hoje em marcha e com resultados pouco promissores.

E será precisamente mercê deste circunstancialismo baseado na analogia histórica, que o filme "Control" vem assumir relevância e pertinência, espalhando o romantismo e a nostalgia suficientes para eventualmente (r)estabelecer a esperança na certeza de que haverá sempre uma maneira de quebrar, de romper com o que está de errado, ainda que não se proponha a quem governa qualquer mudança para todo um Estado, Povo ou Classe. A falta de crença na bondade de quem se elege é um borrão de tinta difícil de apagar.

Na verdade, a onda de revivalismo que por estes tempos se vive, explica bem o desejo de ir procurar no passado as soluções certas para ultrapassar mais uma crise social e cultural. O punk, por exemplo, voltou a estar na moda, se bem que mais artificial. Um artificialismo querido por quem é mais sensato, mas também mais fútil. Certamente que a geração dos morangos (entenda-se essa tribo dada pelo nome de "betos") não sabe o que é casar-se aos dezasseis, não sabe o que é começar a trabalhar sem ter curso superior ou parte dele, não sabe verdadeiramente o que é não ter dinheiro.
Mas de qualquer forma, sempre entendi que os momentos de ruptura, apesar de gerarem muita bagunça e desorganização, são inspiradores, únicos e que merecem ser vividos. E ainda que com alguma dose de higiene ou assepticismo materialista, possamos deles tirar o melhor, em termos criativos.
Em cenários industriais, de tijolos escuros e paisagens de um verde que não se vê, o percurso interior de um indivíduo perturbado, epiléctico, mas acutilante - que escrevia poemas em folhas de papel com linhas e marcador preto, em vez de um asséptico teclado de portátil com wireless - reflecte uma certa coragem ingénua de todos aqueles que encontraram, precisamente, as tais soluções que se procuram agora recuperar para sobreviver na incerteza.
As letras e os poemas continuam actuais e profundos. O som ocluso dos concertos e da banda sonora (a recuperar o melhor da voz e dos arranjos musicais em temas como "Radio" ou "Love will Tear us Apart"), como que saído de alguma sala exígua, intima qualquer um e obriga a olhar para dentro.
A vanguarda queria-se assim, sombria, metida consigo e entregue aos excessos, denunciando, claramente, uma única regra: a ausência de quaisquer outras. Em tempos de ruptura, o espaço é caótico, a geometria desordenada. A tal coragem ingénua repercutir-se-ia, certamente, na tomada de consciência da realidade circundante de que se não pode fugir. Qualquer caminho a tomar seria, forçosamente, um trilho sem retorno. Com tudo o que isso trouxesse. Embora não optando pela gratuitidade de qualquer escolha tida por menos boa ou mesmo má, há um certo fascínio que se partilha: eles não se importaram - escreveram e criaram algo, assente em tais parcos pressupostos.
E se para Ian Curtis e outros, tal devia-se à sua angústia, não tendo outra escolha, para os fãs nada mais resta se não tirar o melhor de todo esse conflito: um bom som e bons poemas com significado e estilo próprio.
Tal como a certa altura é dito pelo guitarrista: "Vocês são o público, nós os Joy Division" - a fronteira está traçada. E as tropas querem animação.

No início chamavam-se Warsaw. No fim de tudo, Ian Curtis morreu novo. Foi pena.

Sam Riley está nomeado para o Bafta de melhor actor em ascenção (Orange Rising Star Award).
Também na Esplanada e devendo a boa sugestão ao Paulo.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

em louvor do gesto

O simples acto de descascares a maçã
Faz de ver-te um poema em concreto:
Que louva o gesto e não a idade anciã;
Que faz do modo seu louvado objecto.

Dizem que é bem pouco a forma ou nada
E interessa o de dentro, o seu conteúdo.
Mas não há movimento na coisa parada,
Como se a voz fosse o trejeito do mudo.

Só que interior sem forma, não o creio
Digo que só o gesto te justifica o braço
E mesmo que o não enfeites em volteio
Parado nunca te servirá qualquer abraço.

cansados de brilhar...

Quando dizias que a vida arrasta irremediavelmente algum cansaço pensava que era o calor do Verão ou a chuva de Outubro que te abatiam. Às vezes penduravas o pescoço (a toalha felpuda, desleixada no regaço do sofá, quando saias do banho) na súplica de uma massagem rápida e fingias-te recomposta. Os anos que me trituraram até entender que o cansaço era imaterial, que era o espelho do desânimo dos olhos terem deixado de brilhar ao som de um beijo.

domingo, 27 de janeiro de 2008

tinhas razão...

Disseste – num inesperado repente, quando a intensidade do Sol te obrigava a piscar os olhos e o azul que sobrava ganhava traços de mosaico – que a minha paixão não fora suficientemente avassaladora, rebelde, irrequieta… Descia-te a garganta o último travo do chá verde da Gorreana e o mar da Caloura abraçava-nos em fundo. Querias dizer que eu estava mundanamente conformado, que não daria passos, muito menos arrastaria montanhas para perseguir uma ideia carinhosa que, há tão pouco tempo, se havia fingido de esperança. Tinhas razão…

tontos...

Quando percorríamos o molhado da areia, deixando-nos salpicar pelas grainhas da espuma indolente, imaginávamos que o pensamento do outro era tão transparente como a água sem limos que nos albergava o horizonte. Não duvidaríamos, um segundo que fosse, do desejo que as mãos enlaçadas recusavam alheio. Descobrimos, vezes sem conta, as diferenças das nossas suposições; e, de novo, sempre, jovens e temerários, voltaríamos a jogar esse exercício de adivinhação, defendendo que era a distracção de uma gaivota, nunca a liberdade, que nos impedia de acertar em cheio. Tontos…

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

frio

(na lembrança de um poema de João
Miguel Fernandes Jorge em que,
“suceda o que suceder”, pedia um
xaile para o frio de Agosto)


Sentimos frio só quando nos apetece
e pronto. Normalmente se o encanto
arrefece e, logo a seguir, nos esquece
os risos que dissimulavam o pranto

quando escondíamos fingimentos
vários, deixando as nossa vidas,
as esperanças, tantos pensamentos
parecerem-se coisas perdidas

naquilo que não sabem ser.
Perguntas se valia mais morrer.
E digo-te, pleno de convicção,
q’esquecer é morte por aproximação.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

esplanada de mar

Estava sentado na esplanada
quando o azul me trespassou
e lá deixou um traço de nada
do olhar que me (en)levou.

O mar picado ali tão perto
quase a salpicar-me os pés
e tão morto, nem desperto
para saborear quem tu és.

Não sei quanto é um segundo
na história da humanidade,
mas já sei, oiço-o no fundo,
que não podes ser de verdade.

Talvez um dia: cá regressas
e trazes canções de embalar.
Vós, mulheres, é só promessas,
eu estou-me sempre a enganar.

para quê sonhar o azul do mar se ele já é azul?

(levantando as pegadas deixadas num
poema aprendido do mestre Borges)


Quem sonhou o azul do mar
só para o pintar de azul?
Quem sonhou o azul do mar
só para ser azul?
Quem sonhou o azul do mar
só para sonhar?
Quem sonhou o azul do mar?
Quem sonhou o mar?
Quem sonhou o azul?
Quem sonhou? Quem?
Sonhou?

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

"Control"


Disorder

I've been waiting for a guide to come
and take me by the hand
Could these sensations make me feel
the pleasures of a normal man
New sensations bear the innocence -
leave them for another day
I've go the spirit, lose the feeling
take the shock away

It's getting faster, moving faster now,
it's getting out of hand
On the tenth floor, down the backstairs
into no-man's land
Lights are flashing,
cars are crashing,
getting frequent now
I've got the spirit, lose the feeling, let it
out somehow

What means to you,
what means to me -
and we will meet again
I'm watching you, I watch it all
I take no pity from friends
Who is right and who can tell,
and who gives a damn right now
Until the spirit, new sensation
takes hold - then you know
I've got the spirit, but lose the feeling
Feeling

Ian Curtis


Só para relembrar os mais distraídos que no dia 28 do corrente, vai estar em exibição no teatro Académico Gil Vicente o filme "Control", realizado pelo aclamado fotógrafo Anton Corbijn. Este conta a história de Ian Curtis, líder e vocalista dos míticos Joy Division, até ao momento do seu trágico suicídio. Uma história que se confunde com a do som que mudou a face da música. Com interpretações de Alexandra Maria Lara e Samantha Morton, protagonizado por Sam Riley, banda sonora dos New Order e músicas dos Joy Division.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

confuso

Cai uma tarde de Inverno rouco,
como as palavras que não te diga,
perdendo a voz, pouco a pouco
e o em mim ter-te, minha amiga.
E nem já te digo, conformado
que o risco de perder-te é abafado.
Que, afinal, era perder-te por aí,
igual a te não ter em pensamento:
viver sem pensar é não pensar em ti
e confundir o infinito no momento.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008


16.01.2005

“…Deixo
a mão correr sobre o papel tentando
captar o eco de uma palavra,
um sinal de quem em qualquer parte
cintila, e confia ao vento o segredo
da nossa precária eternidade”

Eugénio de Andrade, Alguns dias de Agosto (Os Sulcos da Sede)

Texto escrito há três anos, ao som de uma revolta que aos deuses pertence. E assim, tal e qual mantido (ainda com a mesma revolta, a da incompreensibilidade do mundo):


(a um amigo que partiu muito antes do combinado...)

Ainda estava a tarde a abrir, vagarosa, quando me disseram que a notícia era terrível. Ainda era pior!
Perguntei se era mesmo certo, depois de terem garantido que os médicos confirmavam e a notícia já era vinda de outro lado.
Mas que ridículo! Não! Não, ridículo era ser certo. Confirmado!
Assim: estavas bem, rebentou uma merda qualquer, e já nem estavas mal; não estavas!
Queria deixar-te uma notícia, fazer um conto em tua memória, rasgar um poema. Mas, pela primeira vez, tenho medo de escrever bem! Eu que sonhava ser escritor, agora tenho horror a que digam: bem escrito! Medo de me servir da tua morte! Só que já não tenho outra coisa para me servir! Não posso dizer que és um chato ou um teimoso; não posso dizer que és engraçado! Não te posso dizer nada!
É uma sorte ter a agora a sorte de escrever mal!
À noite não deu para ir ao Trianon: era o primeiro dia em que tinha a certeza que não estavas.
Na televisão, na reportagem do rali, despedem-se de um Fabrício que tombou para o lado, quando o coração não quis mais. Não morreu de acidente, num rali de acidentes. Não, caiu para o lado. Era muito simpático – dizem -, sorria aos jornalistas, ia sempre à sala de imprensa, contava como lhe corriam as provas. E garantia que este era o seu último rali! Acertou! P-o-r-q-u-ê?!
E tu nem tinhas feito intenções. E nós não somos jornalistas para te contar a simpatia!
Dou-me em perguntar a Deus em que falhou a tua prova, se querias continuar connosco?!
Apetece-me dizer que o uísque não presta, não é aquele sabor. Só pela memória, não pelo sabor.
Mas vou escrever na mesma. É mais por mim: outro favor que te devo!
Creio que não creio em Deus. Mas que existe, isso existe! Incoerente? – Uma boa merda, isso do incoerente numa hora destas. Também, quem é que acredita na bondade, na esperança, mesmo na vida? E não é que existem! A vida, então, como se pode acreditar?!
O que vou escrever chama-se assim:

As últimas horas de já não te ver.

Quando a Guidinha ligou eu quis-lhe dizer que podia não ser verdade. Queria dizer que podias ter morrido, mas por engano: no Hospital enganaram-se, espalhou-se a notícia errada, tinham trocado a identidade.
Eu tinha razões para pensar assim, nada tinha de anormal. Basta ver que não preenchias nenhum requisito. À cautela, ainda perguntei se tinha sido um acidente na estrada. Disseram que não: foi em casa! Afastada essa hipótese, eu tinha razão para duvidar. Comer, beber ou fumar não conta: ninguém morre por isso antes dos quarenta. Depois, ainda o ano passado se viu, aquele gajo do Benfica, as má formações notam-se aos vinte e já tinhas mais.
Ou seja, na tua idade, a natureza não tinha legitimidade para falhar!
Por isso, eu tinha de estar certo em duvidar. Claro que podia ser engano!
Dizem alguns que a morte não escolhe idade. É um modo de ver. Discordo. Escolhe as pessoas e toda a gente tem idade!

Aqui e além parece que estou a escrever mais ou menos bem: percebe-se o que quero dizer! Lamento a sensação. Não quero.
E não quero dizer nada disto que parece ser o que digo.
Só quero dizer que pode não ser verdade.
Mas isso mal consigo!

Depois, tive de pôr todas as hipóteses.
E há também essa, completamente parva, de já não ter oportunidade de te dizer até amanhã.
Era o que iria fazer, daqui a pouco. E mesmo com o Sporting a perder tu não levavas a mal em te dizermos que aquilo não vale nada.
Afinal, o que é que não vale nada?!

(no andar de cima, umas estudantes riem alto, convivendo uma qualquer alegria, naturalmente efémera. Devia ir lá censurá-las por se fazerem esquecidas do que aconteceu. Que interessa se não te conhecem? Deviam!)

E andei pela tarde toda com as hipóteses tresmalhadas. Sinceramente, à espera do engano ser desfeito!

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

na espuma dos dias

Continuo o caminho para velho
e não apareces em berma alguma;
nem quando na onda faço d'espuma
e o azul do mar serve de espelho.

dia de chuva

Cansado de um dia como outro mais,
gesto e palavra imitados do anterior,
picando os segundos as horas em ais
e chuvisco a que nada podemos opor.

Boquiaberto de guardar tanta paciência
ao aceitar marasmo em modo de estar
deu-me então em rezar a uma ciência
que permita esta forma de perguntar:

inventaremos um dia oco de tempo?,
como quem diz vazio ou exaurido,
podendo pensar sem pensamento,
cumprindo em completo o incumprido…

sentindo o que não sente o sentimento
agastado de gastar o gosto são
que lhe dá a promessa do momento,
insatisfeito do pouco que lhe dão.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Antes do GPS...


Johannes Vermeer, "O Geógrafo", Delft, 1668-69
Uma ideia que passou numa mesa da Esplanada.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

(belos)

Na tradução de Jorge de Sena
(Ed. ASA, Poesia do século XX)
Segue mais que um poema:
O primeiro repete o espanto
De umas postagens ao fundo;
E belo também o segundo:
Silente canto de encanto.


WILLIAM B. YEATS

“When you are old…”

Quando grisalha e velha e mais de sono cheia
Cabeceares à lareira, pega nestes versos
E lê-os devagar, e lembra os universos
Do teu olhar de outrora, tão profunda teia;

E quantos tanto amaram teu alegre encanto,
Como tua beleza em falso ou vero amor,
E um só foi quem amou de tua alma o ardor
E do teu rosto a mágoa do mutável pranto.

Curvada então ao lado das ardentes brasas
Murmura um pouco triste que o Amor se afastou.
Nos sobranceiros montes vagueante andou,
E seu rosto escondeu na multidão dos astros.


RAINER MARIA RILKE

“O Sage, Dichter…”

Que fazes tu poeta? Diz! – Eu canto.
Mas o mortal e monstruoso espanto
Como o suportas, como aceitas? – Canto.
E que nome não tem, tu podes tanto
Que o possas nomear, poeta? – Canto.
De onde te vem direito ao vero, enquanto
Usas de máscaras, roupagens? – Canto.
E o que é violento e o que é silente encanto,
Astros e temporais, como te sabem? – Canto.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

bem queria...

eu queria ter um blog só p'ra mim
p'ra cantar os prantos que te tenho
queria ser sempre bom, mesmo assim...
e lembrar o que perdeste no meu ganho.
eu queria andar pelo mundo inteiro
tal e qual como anda um vagabundo
e que fosse eu sempre o primeiro
a atingir o fundo do teu mundo.
eu também queria, como o Manuel
chamar-te gosto meu, pátria minha
dissolver no teu açúcar o meu fel
sonhar-te até a morte ser vizinha.
e queria dar-te um nome bem bonito
um nome apenas nosso, de boa amiga
confundir-te o sabor com fome, e aflito
teimar-te ter-te sem olvidar a briga.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Ananás

“Sempre que como Ananás penso no Anjinho”, escreveu a Carolina no seu diário pouco tempo antes de morrer. E eu passei dias a pensar porque razão pensaria ela em mim quando comia Ananás. Até que me lembrei de almoços e jantares em minha casa, onde, por norma, havia Ananás em calda como sobremesa.

Originalmente publicada em estranhoanjo

passos perdidos no murmúrio d'água,

teimando vontade em direcção ao mar;

deixando atrás, sem esquecer, a mágoa

que é tanto azul e não t'o poder dar.



e quando as gaivotas trazem no bico

os riscos de sol com que acendem o dia,

sabendo-me dos instantes que junto a ti fico,

Querida: enchem-me o peito d'alegria.

olhamos os dois o azul do mar,

tal como gaivotas que debicam e voam,

conjugando as teclas de dizer amar

ao som das ondas que em nós soam.

um segundo ou dois é eternidade

no simples rasgo do olhar trocado

e esse tempo inteiro não chega a metade

do sabor que dá ter-se por amado.


é tentador pensar que podia outro ser o mundo
e por artes mágicas, de varinha, num segundo,
regarmos o Saara com o fresco caudal do Reno
e aquecermos a Islândia com um simples aceno.

domingo, 6 de janeiro de 2008

E piu se muove!

Porque à evidência o continua a ser...

Ao toque continua quente e reconfortante...

Ao cheiro, aromatizado...

Ao sabor, o que cada um, LIVRE nos seus sentidos, puder apurar!

Também n' A Esplanada

Mais ia por diante o monstro horrendo,
Dizendo nossos Fados, quando, alçado,
Lhe disse eu:"Quem és tu? Que esse estupendo
Corpo, certo, me tem maravilhado!"
A boca e os olhos negros retorcendo
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:

"Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Polo Antárctico se entende,
A quem vossa ousadia tanto ofende!"

Camões (Lusíadas, Canto V, 49,50)

sábado, 5 de janeiro de 2008

Tempo

Era a primeira vez em anos que se viam…
O tempo, como qualquer outro curso de água, deixa as suas marcas de uma forma tão lenta que se torna quase imperceptível.
- Estás mais gordo. – Disse Eva com um sorriso malicioso.
- E tu continuas bonita, como sempre… - Disse o Paulo, com uma incapacidade de fixar o olhar e uma estranha entoação na voz. As palavras não eram falsas, mas demonstravam uma estranha falta de convicção, como se os sentimentos não acompanhassem as memórias e os processos cognitivos. Era tão estranho ter a consciência que os dois já tinham partilhado o tempo e o espaço e que agora ela era pouco mais que uma estranha, que lhe causava incómodo por estar tão próxima.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008





Um novo ano abre-se em aurora aqui
sobre o mar, e as gaivotas regressam
da festa, cansadas. Não lembram de ti
nem com esforço, nem do q'interessam
aquelas coisas que prometíamos nos idos
quando jurávamos por valores perdidos.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

A tertúlia





"Nos cafés dou de beber à poesia..."
Couto Viana


Onde ficará agora o tempo em que, no fumo de um cigarro, o ligeiro discorrer e a cúmplice partilha fraterna de motes e glosas, de ideias e impressões marcavam as notas indeléveis de uma boa tertúlia?

Ficámos certamente mais higiénicos e a respirar um ar dito mais "puro", mas perdemos definitivamente o toque e o engenho de uma liberdade que marcou uma geração de pensamento livre, cuja imagem de marca residia, precisamente, nesse gesto de acender um "Definitivo" ou um "SG Ventil".

Abram agora alas para galões e bolos fat-free, porque já nem a cerveja será de bom tom pedir! Abram agora alas para gente saudável que apenas bebe suminhos de fruta, com um semblante de falsa santidade e insólita virtude.

A poesia, essa, procurará outros lugares onde beber, onde correr.

2008


já se sabia... era só uma questão de tempo!

(1.01.2008)