quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

16.01.2005

“…Deixo
a mão correr sobre o papel tentando
captar o eco de uma palavra,
um sinal de quem em qualquer parte
cintila, e confia ao vento o segredo
da nossa precária eternidade”

Eugénio de Andrade, Alguns dias de Agosto (Os Sulcos da Sede)

Texto escrito há três anos, ao som de uma revolta que aos deuses pertence. E assim, tal e qual mantido (ainda com a mesma revolta, a da incompreensibilidade do mundo):


(a um amigo que partiu muito antes do combinado...)

Ainda estava a tarde a abrir, vagarosa, quando me disseram que a notícia era terrível. Ainda era pior!
Perguntei se era mesmo certo, depois de terem garantido que os médicos confirmavam e a notícia já era vinda de outro lado.
Mas que ridículo! Não! Não, ridículo era ser certo. Confirmado!
Assim: estavas bem, rebentou uma merda qualquer, e já nem estavas mal; não estavas!
Queria deixar-te uma notícia, fazer um conto em tua memória, rasgar um poema. Mas, pela primeira vez, tenho medo de escrever bem! Eu que sonhava ser escritor, agora tenho horror a que digam: bem escrito! Medo de me servir da tua morte! Só que já não tenho outra coisa para me servir! Não posso dizer que és um chato ou um teimoso; não posso dizer que és engraçado! Não te posso dizer nada!
É uma sorte ter a agora a sorte de escrever mal!
À noite não deu para ir ao Trianon: era o primeiro dia em que tinha a certeza que não estavas.
Na televisão, na reportagem do rali, despedem-se de um Fabrício que tombou para o lado, quando o coração não quis mais. Não morreu de acidente, num rali de acidentes. Não, caiu para o lado. Era muito simpático – dizem -, sorria aos jornalistas, ia sempre à sala de imprensa, contava como lhe corriam as provas. E garantia que este era o seu último rali! Acertou! P-o-r-q-u-ê?!
E tu nem tinhas feito intenções. E nós não somos jornalistas para te contar a simpatia!
Dou-me em perguntar a Deus em que falhou a tua prova, se querias continuar connosco?!
Apetece-me dizer que o uísque não presta, não é aquele sabor. Só pela memória, não pelo sabor.
Mas vou escrever na mesma. É mais por mim: outro favor que te devo!
Creio que não creio em Deus. Mas que existe, isso existe! Incoerente? – Uma boa merda, isso do incoerente numa hora destas. Também, quem é que acredita na bondade, na esperança, mesmo na vida? E não é que existem! A vida, então, como se pode acreditar?!
O que vou escrever chama-se assim:

As últimas horas de já não te ver.

Quando a Guidinha ligou eu quis-lhe dizer que podia não ser verdade. Queria dizer que podias ter morrido, mas por engano: no Hospital enganaram-se, espalhou-se a notícia errada, tinham trocado a identidade.
Eu tinha razões para pensar assim, nada tinha de anormal. Basta ver que não preenchias nenhum requisito. À cautela, ainda perguntei se tinha sido um acidente na estrada. Disseram que não: foi em casa! Afastada essa hipótese, eu tinha razão para duvidar. Comer, beber ou fumar não conta: ninguém morre por isso antes dos quarenta. Depois, ainda o ano passado se viu, aquele gajo do Benfica, as má formações notam-se aos vinte e já tinhas mais.
Ou seja, na tua idade, a natureza não tinha legitimidade para falhar!
Por isso, eu tinha de estar certo em duvidar. Claro que podia ser engano!
Dizem alguns que a morte não escolhe idade. É um modo de ver. Discordo. Escolhe as pessoas e toda a gente tem idade!

Aqui e além parece que estou a escrever mais ou menos bem: percebe-se o que quero dizer! Lamento a sensação. Não quero.
E não quero dizer nada disto que parece ser o que digo.
Só quero dizer que pode não ser verdade.
Mas isso mal consigo!

Depois, tive de pôr todas as hipóteses.
E há também essa, completamente parva, de já não ter oportunidade de te dizer até amanhã.
Era o que iria fazer, daqui a pouco. E mesmo com o Sporting a perder tu não levavas a mal em te dizermos que aquilo não vale nada.
Afinal, o que é que não vale nada?!

(no andar de cima, umas estudantes riem alto, convivendo uma qualquer alegria, naturalmente efémera. Devia ir lá censurá-las por se fazerem esquecidas do que aconteceu. Que interessa se não te conhecem? Deviam!)

E andei pela tarde toda com as hipóteses tresmalhadas. Sinceramente, à espera do engano ser desfeito!