terça-feira, 31 de março de 2009

Momentos

"Saindo do café, João encaminhou-se para a galeria. Esta seria mais uma tarde no meio de paredes que contavam estórias, em tons de um preto e branco que se queria poético, profundo e fiel à realidade captada pela objectiva.
Estórias que não eram dele, que não lhe pertenciam, mas que, ainda assim, se lhe impunham, trazendo o único sal possível para a espuma dos seus dias sempre iguais que, quais ondas, iam apagando os desejos gravados na areia de uma praia só por ele conhecida.
Ao chegar à loja, subiu a grade, abriu a porta e deu-se conta de um envelope no chão. Estava aberto... Dentro dele, (mais) uma fotografia... Uma recordação ainda há minutos recuperada pela saudade... A silhueta de um corpo desnudo à beira de uma janela, que se perdia a contemplar a imensidão de um desejo que, nessa altura, parecia não ter fim.
Lembrava-se bem daquele fim-de-tarde e como a chuva persistia em cair sobre o relvado da pousada onde se encontravam perdidos de tudo e de todos.
No verso, uma palavra apenas: 'Quero-te!'.
Ela tinha voltado."
Alexandre Villas-Diogo, "Momentos"

segunda-feira, 30 de março de 2009

contínuo


infinito de ponto
quarto de ponto
1/2 ponto. ponto
linha, traço
gesto
palavra
protesto.
e volto ao início.
infinito.

domingo, 29 de março de 2009

Desassossego

NNNNNHá muito - não sei se há dias, se há meses - não registo impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber que me não lembro é despertar.
NNNNNDesmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

sexta-feira, 27 de março de 2009

sonhando...

Sonhos antigos povoam-me o presente
E mais sonhando, vejo de repente
Ser a forma do teu rosto
Que me mantém o gosto

De confundir sonhar e viver.

Hei-de acabar por crescer.

Mas agora
A cada hora
Invento um pesadelo
Para que nesse novelo
Onde me enrolas de encanto
Só de ti o grande espanto
Seja a visão do mundo.

Nem que o seja um só segundo.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Autumn Sea

Emil Nolde
Autumn Sea VII - 1910
Oil on canvas
60 x 70 cm
Nolde-Stiftung Seebull

quarta-feira, 25 de março de 2009

The Return

See, they return; ah, see the tentative
Movements, and the slow feet,
The trouble in the pace and the uncertain
Wavering!

See, they return, one, and by one,
With fear, as half-awakened;
As if the snow should hesitate
And murmur in the wind,
and half turn back;
These were the "Wing'd-with-Awe,"
Inviolable.

Gods of the wingèd shoe!
With them the silver hounds,
sniffing the trace of air!

Haie! Haie!
These were the swift to harry;
These the keen-scented;
These were the souls of blood.
Slow on the leash, pallid the leash-men!

Copyright (c) 1926, 1935, 1971 Ezra Pound

terça-feira, 24 de março de 2009

Watchmen

A tarefa, nada fácil, de adaptar a BD do Genial Alan Moore está, na minha modesta opinião, muito agradável.

The Dark Side of the Moon


Spring time movie

Não sou muito fã de montagens. Contudo, a música está bem adequada ao filme que me faz sempre voltar a tempos de Primavera.

Doro Pesch, "Love me in Black"

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e nao estamos de maos enlaçadas.
(Enlacemos as maos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e nao fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as maos, porque nao vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixoes que levantam a voz,
Nem invejas que dao movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagaos inocentes da decadencia.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as maos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis

sábado, 21 de março de 2009

poema escrito num fim de tarde deste março

21 de Março: Poesia

SONETO

Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.

Carlos de Oliveira, Soneto, Cantata,
Trabalho Poético, Assírio & Alvim, 2003

MAR

Concha
escondida
entre os lírios da espuma
violada
como as portas da vida
que se cobrem
dos "roxos lírios"
do amor,
coalhaste
a praia solitária
de pérolas
e sal.
nnnnnnnn
Carlos de Oliveira, Cantata, Trabalho Poético,
Assírio & Alvim, Novembro 2003

quinta-feira, 19 de março de 2009


Parece-me que todo o mundo são
Asas de liberdade que abraçam o
Inefável. Obrigado.

quarta-feira, 18 de março de 2009

jPod



UI

HJK

NM

Eu respondi que não.

O Cowboy disse: - estou gelado ou coisa assim.

A Kaitlin, surpreendendo-nos por trás da sua parede do cubículo, fungou e disse (sem se levantar):

- Estás gelado porque não tens personalidade. Não passas de uma amálgama deprimente de influências de cultura pop e emoções reprimidas, arrastada pelo motor engasgado da mais banal forma de capitalismo. Passas a vida na sensação de estares mesmo à beira de te tornares obsoleto, obsoleto ao nível do mercado de trabalho ou fora de moda a nível cultural. E isso persegue-te. Vive-se e morre-se de acordo com um ciclo de desenvolvimento. És uma drosófila embelezada, e a empresa regula arbitrariamente os teus ciclos de vida. Se não é um período de dezoito meses de produção de um jogo condicionado pelo orçamento, é um período de cinco anos de obsolescência de hardwere. A cada cinco anos tens de deitar fora tudo o que sabes e aprender todo um novo conjunto de especificidades de hardwere e softwere, relegando o que um dia foi crucial para as nossa vidas para um monte de escória de dimensões cósmicas.

O Cowboy meditou nestas palavras.

- Sim, e então, qual é o problema?

- O problema é que isso é o mesmo que seres um trabalhador explorado de uma fiação no interior do Massachussetts do século XIX. É o mesmo que andares a coser Nikes num qualquer arquipélago asiático meio corrupto a troco de um dormitório mal arejado e $1,95 por dia.

Douglas Coupland, jPod, teorema, 2008

terça-feira, 17 de março de 2009

Momentos II

«Em movimentos circulares, João mexia o seu copo de brandy, assente sobre a mesa do café, onde se encontrava, perdido numa saudade que o consumia há mais de três meses.
Desde aquele último fim-de-semana passado com Luísa, ainda Inverno, nunca mais tinha tido notícias dela. Era demasiado tempo.
E embora pudesse até pensar que, no final de contas, era como o ditado dizia, o certo é que, neste seu triste caso, a distância apenas lhe trazia um sabor agridoce, juntamente com as recordações dos intensos momentos que partilharam.
João tinha mais que razões para acreditar que ficaria prisioneiro de tais memórias para o resto da sua vida.
A paixão que sentia por Luísa assim o ditava. Sem apelo, nem agravo. Levando o copo de balão à boca, procurou naquele sabor doce e quente o toque desses lábios, agora distantes.»

Alexandre Villas-Diogo, "Momentos"

domingo, 15 de março de 2009

raras camélias (digo eu...)
já estava com saudades

Time

Time is a river
the irresistible flow of all created things
One thing no sooner comes into view
than it is hurried past and another takes its place
only to be swept away in turn

vvvvvvvMarcus Aurelius - Meditations

sábado, 14 de março de 2009

Ficções 2.0

"Radio Free Albemuth" é um romance de ficção-científica, da autoria de Philip K. Dick, publicado em 1985. Brevemente resumido, o livro conta a história de Nicholas Brady, um indivíduo nascido e criado em Berkeley - mas que, a certa altura, se muda para Orange County -, e da sua luta contra uma América totalitária, entregue aos desmandos do tirano presidente Francis Fremont.
O propósito deste herói trágico começa a despontar no dia em que uma entidade extraterrestre entra em contacto rádio-telepático com ele, por via de um satélite que gira em órbita da terra há milhares de anos. Nestes seus diálogos com uma transcendência que nunca entrou "para as suas contas", Nicholas vê-se a braços com uma tarefa hercúlea: descodificar uma quantidade massiva de pistas que lhe são fornecidas, qual "download", por VALIS (Vast Active Living Intelligence System). Tudo com a finalidade de ele perceber qual o caminho mais certo para a tarefa que lhe foi cometida de libertar a América.
Ora, nesse mesmo processo, este protagonista, que contracena em discurso directo com o próprio autor da obra, confidencia-lhe que, na tentativa de compreender tudo quanto lhe é dito por essa voz oculta nos seus sonhos nocturnos, se viu obrigado a comprar a enciclopédia "Britannica".
Aparte o final dramático que se deixa à descoberta de todos os convivas da esplanada, este é o pormenor que me inspirou o presente post e relativamente ao qual esta pequena introdução apenas serve uma função contextualizante.
De facto, há já algum tempo que andava para lançar um même subordinado ao tema "antes do google". A analogia por ora proporcionada apenas me pareceu deliciosa. Passo a desenvolver.
Tendo em conta a data em que o romance foi publicado - 1985 - voltamos a uma época, não tão distante quanto isso, bem conhecida de todos com, pelo menos, 25 ou 26 anos, em que o processo pelo qual alguém adquiria informação era um pouco mais complexo do que clicar no botão do rato ou digitar uma entrada na barra de pesquisa do Google.
Com pelo menos duzentos anos de tradição, a bela da Enciclopédia sempre foi uma das ferramentas mais importantes para um conhecimento que se queria livresco, ainda que conciso, e mais ou menos rigoroso.
Uma espécie de mainframe de dados, em suporte de papel, dividida por grossos volumes que hoje se encontram compactados naquilo a que se veio a designar por "disco rígido".
Na verdade, e tomando como mero exemplo essa grande obra que era a "Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura", bastava saber procurar a entrada certa para adquirir um manancial de informação razoável acerca do tema que se pesquisava.
Mesmo quando não fosse esse motivo, a Enciclopédia dava sempre um toque decorativo ao lar de uma qualquer família que aspirasse a um suposto título de "gajos-cultos-até-têm-uma-enciclopédia".
Hoje nada é assim. Basta um laptop, uma ligação à net, e o problema está resolvido.
Não sei se me sinto muito bem com essa banalização, com a falta do ritual de ir à estante e procurar o tomo certo, procurar a entrada pretendida e ler... ler mesmo e não fazer um "scroll down".
Recordando, precisamente, com alguma nostalgia esses outros tempos, ainda recentes, não posso deixar de manifestar algum desagrado pelo desprezo a que foi votada a "Enciclopédia".
E quem diz a Enciclopédia, diz os livros ou qualquer outra forma escrita, em suporte de papel.
Será que não estaremos a perder dadas qualidades e a alimentar uma certa preguiça mental que nos faz apenas sentir apelo por aquilo que poderemos apreender quase por osmose - em contacto com um teclado, um rato e um monitor? Enfim, estupidamente rendidos às "tecnologias de informação".
De qualquer modo e à parte o toque vintage que me é querido,
Apenas quero, com este esboço de manifesto, que a Mariana, o Cachapa e o Ricardo falem, claro, de enciclopédias.
Originalmente publicado na esplanada.

Arte 2.0

"Atlântico"
Rabiscos.

sexta-feira, 13 de março de 2009

quinta-feira, 12 de março de 2009

Tour de Blog

Os leitores mais atentos verão, a partir de agora, na Coluna "Tinta Permanente" dois novos blogues adicionados. A escolha para a sua inclusão prendeu-se tanto com a excelência dos conteúdos como pela qualidade estética de apresentação.

O Blasfémias traz, por ora, considerações curiosas acerca do emprego das novas tecnologias na área mais importante da cidadania.

No que toca ao Ensaio Geral, este é um blogue de uma das esperanças mais promissoras do cinema luso. E digo isto porque, privando de perto com o seu Autor, noto-lhe rasgos de verdadeiro génio, tanto na escrita, como na criatividade, sem esquecer um verdadeiro bom gosto em tudo quanto de si e dos seus interesses dá a conhecer.

Aqui fica a sugestão. À minha confiança!

Vigo, Alvalade e Allianz Arena

Há cerca de dez anos atrás, João Vieira Pinto pediu desculpa e não deixou de ser motivo de troça por parte de alguns.

Anteontem, a Administração da SAD do Sporting pediu desculpa pela maior derrota registada, em termos de agregado de eliminatória - doze golos, contra um - na Liga dos Campeões Europeus.

Engraçado, não é?
"Agarrado pelos dentes à haste seca de uma árvore, um homem baloiça no vazio de um precipício; as mãos estão atadas e os pés não alcançam a face escarpada da falésia.Um amigo passa, abeira-se e pergunta-lhe: «O que é o Zen?» Se tu fosses aquele homem, que resposta darias?"
yyyyyyyyyyyyyyyyyyy
(José Eduardo, prefácio da edição portuguesa de
On the Open Way de Hôgen Daidô,
No Caminho Aberto, Assírio & Alvim)

como

fazes, mas o que quer que faças
fazes sempre o último instante
do teu nascimento

como se todas as palavras
fossem 1a

e
a energia do OLHAR
1
clarão infniiiiiiiiiiiiiiiiiito

sem

quando os sonhos secam
o mar da infância é poeira
e o teu rosto
o desgosto
que me impede

.......

nem newton
nem maçã
nem andorinha
o acaso só, de uma brisa inesperada
a resposta do mundo, tal a minha:
sorte ou não. é vida. é nada.

O que ele disse

Ó país de cristal, que longe eu estou,
dava um ano de ordenado por um momento
da minha inocência perdida

nnnnnnnnnnnnnnnnnnn(Molero, a páginas zero)

segunda-feira, 9 de março de 2009

sem noção

folheio-te o desejo inteiro
quando apago os olhos a cada noite
e misturo ao longo de permeio
tudo o que já não suporto ser
só meu como o mover
do lençol que te recorda
o dorso suplicante
o olhar fora de moda
porque teu
- ciumento do futuro eu me entrego
a esse jogo perigoso do medo –
acordo pela alvorada já perdido
sem noção do perigo

No dia seguinte...


Banho


domingo, 8 de março de 2009

Mulher

No dia internacional da Mulher só consigo, não sei porquê, pensar em determinadas "senhoras" que se deslocam no fim-de-semana ao "Ar d' Rato". É fácil reconhecer nos seus olhos o desespero, que se agarra à alma e ao corpo, de uma hipopotermia sexual, que caso não seja colmatada irá forçar a longas e completas transfusões sanguíneas.
As restantes mulheres que me perdoem, caso consigam, a minha mente.
Postado originalmente no saudoso Diamante de Talco

sexta-feira, 6 de março de 2009

Poema Patético

Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.

Que barulho é esse na escada?
É Guomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.

Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.

Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta do meu coração.

Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética, Relógio D'Água, 2007

quinta-feira, 5 de março de 2009