domingo, 30 de novembro de 2008

entre as gargalhas e o choro

- Lançamos pernas e braços e as aranhas segregam suavíssimas teias opalescentes. pasmamos do terrível progredir das larvas: seu vulnerado gozo seu dramático instinto de bordar à superfície das folhas incríveis tortuosos itinerários. sabemos a voraz sede do húmus o crepitar das corolas nos vitrais da penumbra. impregnados de seiva debatemo-nos na cabeleira das paramécias ressuantes ao calor. deram-nos o desígnio dos líquenes ávidos o arrasante amor das trepadeiras contíguo ao espadaçar dos músculos. aos artelhos nos soldaram a pungência dos esporões a flora do sexo e das axilas em musgo tresmudada. e as gavinhas resultam das línguas enroscadas o sangue em linfa se precipita. uma orquídea desabrocha: pérfido lampejo entre as gargalhadas e o choro. enfim em nosso ventre a magnólia se espande de esperma cristalizada. contra as carótidas e a espadana nos atira suas lancvetas de incontida cólera.
hhhhhhhhhhhhh
Mário Cláudio, Novembro
as máscaras de sábado

Maravilha

Postado sem ouvir
(mas à confiança)
e com agradecimento
especial à G.

Por Amor

- Então, ande lá com isso, que eu tenho a boca seca. Mas depressa, se não leva outro enxerto!

“No dia a que se reportam os autos, estando a arguida na cozinha e o filho no quarto, preparou um chá, no qual deitou o conteúdo do frasco de Paratião, dizendo-lhe que bebesse porque lhe iria fazer bem”.

A ideia surgiu-lhe naquele instante. Preparou o chá e açucarou-o bem, como sabia que Pedro gostava. Depois, pegou no frasco do veneno e verteu-o na chávena. Misturou tudo e deu-lhe sabor com um cálice de Porto.
- Bebe, meu filho, bebe que te vai fazer bem! – disse-lhe, os olhos rasos de água.

“A arguida agiu com intenção de matar o filho”.

- Levante-se a ré – disse o juiz do meio. Maria do Rosário nem o ouviu.
Foi preciso o seu advogado chegar junto dela e abaná-la para que o espírito voltasse de novo à sala.
- Quer dizer mais alguma coisa em sua defesa? – tornou o juiz.
- Tanto se me dá ir para a cadeia como ficar cá fora. A vida para mim acabou. Faça de mim o que quiser, senhor doutor juiz. Gerei o meu filho por amor. E foi por amor que o matei.
gggggggggggg
J. Sousa Dinis, Por amor, A Fazer De Contos

(In)justiça

Levantou-se e sentiu-se, pela primeira vez, naqueles dois anos de espera, calmo e quase feliz. Ia falar. Iam ouvi-lo. Aquele homem ia ser julgado e condenado pelo acto cruel que cometera.
A sua filha olhou-o e disse-lhe "Isto vai finalmente acabar, não é pai?".
A sua mulher disse-lhe "Finalmente vamos ter paz!".
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
Confiante foi para o tribunal. O seu advogado, homem de poucas palavras, apenas lhe disse "Vamos ver se é desta que isto se resolve, mas, sabe como é, os tribunais têm tanto trabalho...".
Não o ouviu. Não quis ouvir. Hoje era o seu dia. aquele em que finalmente, após contar a sua história, e ver, pela última vez, a cara daquele homem, poderia descansar. Dormir. ter paz e tranquilidade. Aquela que lhe fora roubada por aquele homem ignóbil.
llllllllllllllll
No átrio do tribunal estava uma imensidão de gente. O burburinho que se ouvia era quase ensurdecedor.
lllllllllllllllll
Mal entrou, viu-o.
lllllllllllllllll
Paula Alexandra Cardoso, (In)justiça, A Fazer de Contos

Os disfarces de Arlequim

- "Para falar com franqueza, minha querida, quero que vás para o inferno!", não é assim que ele te diz, Scarlett? – perguntava, trocista, Isadora.
- Escusas de me estar sempre a lembrar isso! - notava-se que Scarlett não estava nada à vontade - Já vivi essa maldita cena mais do que mil vezes! A Maggie sempre podia ter-me dado um fim melhor!
- É isso, Scarlett. Nenhuma de nós é perfeita. Se temos uma ideia, se representamos uma ideia, outras nos hão-de faltar. Não somos criaturas completas, completamo-nos umas às outras. Por isso, concordei com Maria quando disse que estávamos todas de acordo. Eu luto pela condição feminina, a Florbela pela condição apaixonada, a Isadora pela condição corporal e a Scarlett pela condição patriótica.
- Sem terem uma pátria, não sentem o corpo, sem sentirem amor, não se sentirão femininas, sem serem femininas, não darão valor ao corpo, sem gostarmos de nós próprios, de que nos vale a paixão? Tudo se completa... - Era Florbela que rematara.
Maria estava confusa. Muita coisa ainda não percebera.
- Mas porquê eu?
Foi Isadora na sua precoce infantilidade que lhe respondeu.
- Porque tu, Maria Sklodowska, vais-nos suplantar a todas. Embora todas nós sejamos portadoras de ideias universais, todas nós somos, no fundo, umas egoístas, só pensamos em nós próprias ou naqueles que nos estão muito próximos. Eu cultivo o meu corpo, a Florbela inventa príncipes encantados para a sua desdita, a Simone combate pela causa feminina, excluindo portanto, os homens e a Scarlett luta pelo seu castelo de terra ali para o Sul do Novo Continente. Tu, não, Maria, tu vais construir uma obra verdadeiramente universal em proveito de um progresso tecnológico que, fatalmente, terá de acompanhar o fulgor das ideias e das emoções. Vai para o laboratório mas não te esqueças das lágrimas apaixonadas da pobre da Florbela, da garra e sentido patriótico da Scarlett, da força da militância da Simone que luta pelo que quer alcançar e da minha sensualidade improvisada, dos meus sentidos, dos meus saltos, do amor próprio, do orgulho em seres quem és. A Ciência sem isso, nada será, apenas fará perigar a nossa vida...
jjjjjjjjjjjjjjj
Paulo Guerra, Os disfarces de Arlequim, A Fazer De Contos

sábado, 29 de novembro de 2008

A justiça por um conto

Houve mesmo casos extremos, de homens chegados de novo, que pecando contra Deus e o mundo, se quiseram passar pelo dito, dizendo ser o bendito. Todos eles, sem perdão, foram na hora calados, com suas línguas cortadas e lançadas mesmo às feras.
Passados anos e anos, até séculos digo eu, ficou apenas a lenda, da justiça do Justino, aquele que por ser tão divino, um dia aqui haverá de voltar, para aquela fazer reinar.
E assim esperam sentadas as gentes tamanho milagre!
É que as pessoas, afinal, quando vão a tribunal, por quererem ganhar todas, querem ter para o seu caso solução em tudo igual à do jumento rosado.
É esta a moral da história, nos ensinava na hora, o tio Manuel da Ribeira, perdoando assim tal ideia.
A justiça, digo eu, assim vista pelas gentes, é igual ao centro da aldeia, desnudado pelo tempo e fustigado pelo vento, deixando cair as ideias, como folhas de carvalho sem vontade de criar.
Assim o queiram os homens!
hhhhhhhhhh
Nelson Fernandes, A justiça por um conto, A Contos Com A Justiça

Um ciclo da água

Foi então que o juiz achou que devia voltar ao local, porque 2havia uns pormenores de que precisava de se inteirar, agora que ouvira as testemunhas".
Tudo continuaria daí a oito dias - "tanto tempo ainda a remoer os nervos!" queixou-se o senhor João, com medo do fim, mas com uma pontinha de fé ainda.
Na véspera do dia marcado para "voltarem ao rio", já ao fim da tarde, o Dr. Edmundo até estremeceu com o estardalhaço da porta a abrir num safanão.
Era o senhor João, radioso de alegreia, agitando vigorosamente um papel na mão - nem conseguia falar, todo um sorriso!
- Então? Que é isso de tão importante que o faz vir aqui, a esta hora e interromper-me dessa maneira? - disse o Dr. Edmundo, com ar sisudo, mas num tom de voz a deixar contagiar-se por tanta alegria.
Foi então que o senhor João lhe contou tusdo.
Havia uns tempos atrás, no dia da festa, foi lá à aldeia um padre pregador muito letrado "só falava latim, a gente não percebia nada do que ele pregava, mas a voz dele convencia!", afiançava o senhor João.
Almoçou lá em casa, e durante o almoço, posto ao corrente da aflição da família, considerou que "se a água era tão antiga, e o direito tinha sido dado pelo Rei, havia de haver algum documento que o dissesse".
Como não o tornou mais a ver, esquecera-se destas falas, até ao julgamento.
gggggggggggg
Fernando Fernandes Freitas, Un ciclo da água, A Contos Com A Justiça

Males de Dirceu

A lua ia-se erguendo para os lados da Fortaleza de São Sebastião e a Ilha de Moçambique libertava-se, a pouco e pouco, do negrume que a envolvia. sá a sua tristeza, que se confundia com a pestilência que, não raro, devassava a ilha, teimava em não se deixar alumiar por uma réstia de luz.
Correra o ano de 1809, um ano em que fora presenteado com a nomeação para o cargo de Juiz da Alfândega de Moçambique. Após a sua chegada, em 1792, fora secretário de José da Costa Dias Barros, ouvidor geral, que o recebeu em sua casa, a ele que, então, não passava de um naúfrago, um despojo arremessado contra as rochas, condenado ao degredo, ao esquecimento, amputado, afastado, para todo o sempre, de quem amava, obrigado a percorrer milhas e milhas, mar e céu, céu e mar, do Brasil até àquele recanto do Império. Fora, depois, nomeado procurador da Coroa e da Fazenda e vinha exercendo a advocacia, sendo o único habilitado para tal naquelas paragens. Entrava, agora, em 1810 como Juiz da Alfândega.
Cansaço, desolação, vontade de desistir. se ao menos pudesse singrar sobre as águas como os dugongos que por ali passavam, qual Tritões, impantes, plenos de vida, e partir, talvez em busca de Letes, para que o esquecimento o dominasse e lhe varesse da mente a recordação da insídia, a insolente calúnia depravada, a venenosa espada da traição.
lllllllllllllllllll
Tibério Nunes da Silva, Males de Dirceu, A Contos Com A Justiça

A Luísa, o Marco e um pequeno apartamento

No Inverno passado, quando o vento e a chuva teimavam em entrar pelo respiradouro do tejadilho da Ford, munidas de papel em triplicado, duas senhoras da Segurança Social, acompanhadas de outros tantos polícias, vieram buscá-lo e levaram-no com elas.
Recorda-se ainda do choro da mãe e da raiva do pai.
Depois disso, voltou a vê-los apenas numa ocasião, duas semanas depois, quando já se encontrava naquela outra casa grande, cheia de senhoras e crianças.
De então para cá, o Marco já mudou novamente de casa, mas ainda não teve tempo para estudar química e os opiáceos.
Quando crescer, mesmo que não chegue a ser um bom aluno a química, vai acabar por perceber a razão da memória da imagem dos pais a queimarem pelo fundo a sua colher de papa, enchendo-a de uma água com que depois enchiam os seus braços.
llllllllllll
Paulo Correia, A Luísa, o Marco e um pequeno apartamento, A Contos Com A Justiça

O Senhor Fortunato

O último julgamento, há muito tinha caído a noite e na assistência apenas estava Fortunato, era de tráfico de droga e nele era protagonista um rapaz novo, ainda espigadote e na sua opinião, com a garimpa demasiado levantada.
Geração de mal educados, respondões, que não conheciam as regras mínimas de convívio comunitário, nos autocarros ou nos cafés, em qualquer lado, repetiam-se os comportamentos lamentáveis de jovens que não se levantavam nos transportes públicos, insultavam quem os repreendia, assaltavam velhinhas na rua, diziam impropérios a plenos pulmões, sempre numa atitude propositada de confronto e com permanente ar de desafio.
Era pois injustificável o comportamento deste arguido. a forma como, quase insolentemente, respondia ao Tribunal e Fortunato desejava que este agisse em conformidade, punindo-o na excata medida da sua culpa.
Ouvira esta expressão uma vez numa audiência e fixara-a porque lhe parecera que essa devia ser toda a essência de um julgamento criminal.
ççççççççç
Renato Barroso, O senhor Fortunato, A Contos Com A Justiça

A caminho de Santiago

O que realmente o angustiava, como agudo ferrete, era saber-se, ele próprio, perdido perante tantas proclamadas verdades, num labirinto infindável e sem saída, bússula inútil, descrente de si e da avaliação que dos outros já não alcançava fazer. e cada dia encontrava no cru olhar do cinismo um sedutor amparo.
Talvez por isso pusera pés à estrada, palmilhando o caminho de Santiago de Compostela, escolhendo, entre outros percursos, o mais árduo; alguém lhe falara em "lavar a alma", retornar às coisas simples e absolutas, recomeçar de um desejado zero para descobrir um destino.
Assim mesmo: um passo, depois outro, devagar. Ao longe, um dia, havia de vislumbrar Santiago. E depois, regressado ao Tribunal, confrontado ainda outra vez com o denso corrupio daquelas vozes plurais, passo a passo, com desejada lentidão, e, entre outras, escolheria a que falaria mais alto, perdurando para além do ruído e da incerteza. Talvez que o testemunho mais autêntico se refugiasse, afinal, na mais altiva das mentiras.
jjjjjjjjjjjjj
José Igreja Matos, A caminho de Santiago, A Fazer De Contos

Processo Tutelar n.º 37/01. Mariana

Mas, outra vez porquê
Será porque lêem tantos livros? Mas afinal de que lhes serve isso se não sabem o que vale um simples gesto de apertar quem se gosta, assim, juntinho ao coração...
Enquanto assim pensava, deu por si a apertar com muita força as suas mãos e os seus braços franzinos, sentindo o calor que vinha do peluche que encostava ao peito, para não deixar que este, com o seu poder mágico, transformasse aqueles intrusos em pó, ou mesmo em sapos, mas sem príncipes e fadas. E, por se não querer denunciar, Mariana percorreu com os seus olhos os cantos da casa, procurando em vão os trapos que em tempos se amontoavam naquele chão, mas que agora estava limpo pelas mãos renovadas da sua mãe. E sentiu-se repentinamente tão injusta, mesmo em pecado de crucifixo, por estar a pensar nela assi,m, sim, apenas assim, como se tivesse sido algum dia apenas mais que um trapo.
lllllllllllll
Nelson Fernandes, Processo tutelar nº 37/01. Mariana, A Fazer De Contos

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

W. B.


William Blake, pintor e poeta inglês, nascido em Londres a 28 de Novembro de 1757

No tempo da semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta. Conduz teu carro e teu arado por sobre os ossos dos mortos. A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria. A Prudência é uma solteirona rica e feia, cortejada pela Impotência. Quem deseja, mas não age, gera a pestilência. O verme partido perdoa ao arado. Mergulha no rio quem gosta de água. O tolo não vê a mesma árvore que o sábio. Aquele, cujo rosto não se ilumina, jamais há de ser uma estrela. A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo. A abelha atarefada não tem tempo para tristezas. As horas de loucura são medidas pelo relógio; mas nenhum relógio mede as de sabedoria (…)

William Blake, Provérbios do Inferno

memória refeita nas folhas tombadas (variação I)

Ainda trago os flocos de saudade
(além da idade... -
envoltos nos trapos de
um coração ausente)
e, de repente,
cirzo as lembranças
esfiapadas
dos retalhos de um sorriso antigo
- é contigo;
ele que me faz das memórias
um arco-íris.
Foi quinta-feira e
choveu oiro
nas cores sobrantes do verão indiano
(não é assim, contigo, todo o ano?)
que te espelha o brilho no da terra.
Gosto é dos amarelos.
Só para não ter que sonhar
os teus cabelos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

102 (24.11.1906)

Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;
outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;
outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,
fluidez sem transparência.
Presente, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.
Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece.

ANTÓNIO GEDEÃO, Tudo é foi

domingo, 23 de novembro de 2008

Dá cá uma raiva...

1.
Estás deitado na tua cama; luz apagada, olhos bem fechados e perguntam:
- Estás a dormir?
- Não! Estou a treinar para morto.

2.
Levas um electrodoméstico para reparar e o técnico pergunta:
- Está avariado?
- Não! Ele estava aborrecido de estar por casa e eu trouxe-o para passear.

3.
Está a chover e percebem que vais sair à chuva. Perguntam:
- Vais sair com esta chuva?!
- Não! Vou sair com a próxima.

4.
Acabas de tomar banho e alguém pergunta:
- Tomaste banho?
- Não! Está a chover no WC.

(com agradecimento a j.f.p.)

sábado, 22 de novembro de 2008

Máquina

Três sílabas - arestas -
desenham a palavra
sua parente desumanidade

Como metáfora porém a utilizas
nomeando a teia desse mundo
que os deuses amam e odeiam

João Pedro Mésseder, Ordem alfabética

Magnolia

Homenagem aos vizinhos do lado e o contínuo matar saudades deste fantástico filme

existe um arritmia ténue
no coração de quem recusou
o amor de outrém, um coração
ténue que se sobrepõe ao que
já se tem

valter hugo mãe, três minutos antes de a maré encher

Melancholic Ballad

Lindo

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

a raiz do teu gesto


a raiz do teu gesto
encontrei-a naquela barca à vela
mas foi a nau catrineta
que me disse onde não estavas
por isso fui
sempre
levado pela maresia
quando sabia
que tu eras menos do que gesto

francisco d'eulália, A raiz do teu gesto, poemas

Lisboa, um "dia desses", logo ao nascer da noite


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Com estados de alma

Há também, nestes contos, auto-ironia e humor: "De qualquer forma, não sou como alguns juristas, pois o que mais me desagrada após aqueles infindáveis e frequentes julgamentos, é a companhia dos que se apressam a permanecer nos corredores. (...) E depois de decidir um conflito, julgar uma prostituta, um deputado, um ministro, um chulo, um administrador de empresa ou director de hospital, nada mais tem sentido nesta direcção, desde logo porque se é trabalho, fatiga, e se é conversa, é inútil."
Gosto desta lista e da sua sequência sarcástica. Acho saudável a atitude discreta e profissional do juiz-narrador. Mas do que eu gostava mesmo era desse dia em que deputados e ministros e grandes empresários chegassem a tribunal. Lugar comum: a certeza de que um dos principais problemas de Portugal, talvez o pior, é a demora e, por arrastamento (literal), a ineficácia da justiça. Mas um lugar-comum é também o sítio em que todos nos revemos.
É possível julgar sem estados de alma? Talvez. Escrever é que não.
gggggggggggggggg
Rui Cardoso Martins, do Prefácio, A Contos Com A Justiça

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Carta

Caro Francisco:

Não, comecei mal. É absurdo usar contigo o mesmo tratamento a que recorro quando quero assinar uma revista, escrever aos clientes ou mesmo reclamar de um serviço.
Tu, cujo nascimento significou para mim um mundo de novas possibilidades – saberias jogar à bola e brincar aos polícias e ladrões? Conseguirias, ainda que daí a mais tempo do que eu gostaria de admitir, ler os livros que eu começava a espreitar, ou fazer pistas de carros no nosso infinito corredor, cheias de pontes e túneis?
Nesse momento, tudo me pareceu muito confuso (e tu, muito vermelho e enrugado…). Mas sei, ainda, com que bonecos brincava quando o Pai me veio dar a notícia, e não me poderia nunca esquecer que foi na minha direcção que andaste sem ajuda pela primeira vez.
Por isso, e muito mais que não conseguiria dizer, tenho de recomeçar, desta vez com o único vocativo digno de ti.

Meu irmão:

Preciso de desabafar. Confissão rara num primogénito, que mais se assemelha a uma fortaleza inexpugnável: preocupado com o crescimento dos seus irmãos, pronto a resolver os sarilhos deles, quase se sentindo responsável se algo corre mal, acaba por não ter sequer tempo para admitir os seus próprios problemas, quanto mais para os resolver.
Só que, tendo os outros irmãos muito mais perto, porquê logo tu? É simples.
gggggggggggg
Cristina Xavier da Fonseca, Carta, A Fazer De Contos

Manhã de Júbilo

A fidelidade é um desporto da alma: começa por eliminar toda a pulsão natural e por instituir como regra de vida um artifício que só sobrevive à custa do esforço em ambiente inóspito, como não raras vezes sucede com o viver conjugal. À cessação do esforço, activam-se o ciúme e o remorso, como impulsos para a reposição daquele estado, nisto se esmifrando as energias dos organismos, as vontades e os afectos. É pois pura norma e sacrifício, capaz, por isso, de levar um juiz ao mais puro estado de levitação.
Convivi mal com a minha infidelidade. Faltava-me a destreza, que só com o hábito se adquire, para relegar o remorso para as rápidas orações do fim do dia. Por outro lado, o meu casamento, ao contrário dos das grandes fortunas, não tinha por pressuposto essas curvas do caminho, que se aceitam até com alívio, por significarem que a ordem natural das coisas continua a funcionar. Nesses grandes contratos, regados a champanhe francês nos jardins dos solares da família, sabe-se que o prazer não faz parte do dote, pelo que se aceita com a dignidade do cumprimento de uma cláusula, que cada um se governe como muito bem entende. Quem se vincula por uma dessas festas sabe que um valor vale se prosseguir um fim, sendo que a manutenção dos casamentos, como forma de sobrevivência das castas, é, sem dúvida, um fim indiscutível. Mas a fidelidade, nessas esferas, não é estritamente essencial à manutenção dos casamentos, que sobrevivem à custa de outros esforços e expedientes.
gggggggggggggg
João Felgar, Manhã de júbilo, A Fazer De Contos

Renascer

O avião acabara de levantar voo.
Ana tentou descontrair um pouco. Não era fácil. Ainda sentia a euforia póstuma dos momentos vividos com intensidade.
Revia mentalmente os acontecimentos da última semana. A conferência Ibero-Americana, sobre violência doméstica, na qual participara, superou as suas melhores expectativas. Havia sido magnificamente acolhida pelos colegas brasileiros. Nada que devesse constituir factor de surpresa, porquanto, em todas as viagens de férias que fizera aquele país, sempre se havia sentido em casa.
Agora, apenas oito horas de travessia atlântica a separavam do marido e filhos, que a esperariam em Lisboa.
Havia que voltar à rotina diária: lidar com os conflitos simbolizados e corporizados pelos processos que, inapelavelmente, se amontoavam no seu gabinete de trabalho.
Enfim, retomar as responsabilidades adiadas, por uma semana que primara pelo contraste com o frenesim do seu quotidiano pessoal e profissional.
Apesar de tudo, considerava-se afortunada e nem por um momento punha em causa a escolha profissional que havia feito, ainda era uma criança.
Veio-lhe à memória essa época.
Em especial, o dia em que a pretexto de um trabalho escolar, pediu aos pais fotografias da sua infância.
Já por diversas vezes havia estranhado o facto de aqueles nunca terem relatado o seu nascimento, nem terem feito referência aos seus primeiros passos.
E foi nesse dia, que os pais, emocionados, lhe revelaram não ter acompanhado o período em relação ao qual não havia registo fotográfico na sua casa.
ffffffffffffffffffff
Marília Fontes, Renascer, A Fazer De Contos

A Senhora Sem Nome e a Outra Senhora

- Teorias, doutor Almeida! Teorias: essa coisa de crimes continuados e de concursos... teorias. A realidade era outra: eu estava ali pela primeira vez, com uma ré sem nome, a ser julgada por não ter querido dizer... o nome! Ia-me pôr com teorias, doutor Almeida?... Não – respondeu quem perguntava -, isso só ia complicar: então eram crimes por aí fora, parecia champanhe em cascata! Sabe... olhei para o meu mestre e ele havia perdido o entusiasmo, só me sussurrou que nunca lhe tinha acontecido; olhei para o defensor e não ouvi som... e só disse: estou feito. Então, entre desânimo e silêncios, o senhor delegado permitiu-se tomar a palavra e chegou-se mais junto da cidadã, a meia distância comigo. Olhou-a com uma bonomia terna e disse-lhe, a senhora deve ter um documento em sua casa, todos nós nos esquecemos onde pomos as coisas; talvez se procurasse um bocadinho... nós esperávamos... porque sabemos que não quer tratar mal ninguém.
Os olhos do juiz mais novo esbugalhavam uma surpresa que emparelhava com a admiração de uma prematura ruga, a franzir-lhe na testa: o atrevimento do delegado! O juiz-presidente arrastou ninguém até ao silêncio. Mas logo alteou o tom, de peito cheio:
- Foi magia, doutor Almeida: a senhora, era assim que se chamava e tinham-se esquecido, disse que às vezes deixava a identidade na mesinha de cabeceira, não fosse perdê-la no ruedo, e a autoridade não lhe permitira ir à sua cata. Claro que eu interrompi o julgamento, doutor Almeida... deixei as teorias lá onde devem ficar e, passado nem cinco minutos, a senhora tinha nome, tinha os demais adereços e até tinha cartão de identidade... e tudo se resolveu. Sei lá se contra a lei!
- Sei lá! – mal se ouviu ao mais novo.
- Sei lá... – nem se ouviu ao doutor Fernandes.
- Como vê, doutor Almeida, a surpresa atacou-me na ocasião mais frágil, mas a solução -... e aí é que quero chegar – reforçou-me o entendimento: cada dia é um caso, cada caso é um olhar; depois, há sempre gente... atrás das teorias.
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
José Eusébio Almeida, A senhora sem nome e..., A Contos Com A Justiça

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Trilogia Breve

A queda breve do corpo, essa, fora amenizada pelo macio cobertor de relva que o recebera. Foi contrariado que se apercebeu como, segundos passados, dois ou três, nada prolongava aquele momento de vertigem; apenas teimava, sorrateiro, o sobressalto incomodado daquele estranho vulto, deitado no jardim fronteiro à casa onde, há vários anos, ocupava sonolentos fins-de-semana.
O som da noite retornara: o ruído continuado das cigarras, a insistência hipnótica de um grilo e o vago deslizar da brisa do verão que se anuncia.
Dentro de si, perante o vazio dos sinais exteriores, crescia rápida a evidência que o que ocorrera não acontecera afinal.
A realidade desmentia-se e já não apetecia ignorar os minutos de tranquila apatia que, devagar, se somavam.
A custo, acabou por sacudir o torpor, desfazendo-se da arma e decidindo enfim levar o corpo inerte para longe dali, largando-o mais adiante num pequeno ribeiro, ainda veloz.
Olhou como a corrente das águas arrastava o rapaz para longe.
Regressou, pressuroso, a casa. Apercebeu-se ao entrar na sala que o filme que acompanhava na televisão recomeçara havia pouco, após um longo intervalo publicitário.
ggggggggggggg
José Igreja Matos, Trilogia breve, A Contos Com A Justiça

Testemunho

Já nem valia a pena gritar.
O silêncio de cada um era, ali, um grito permanente de socorro.
O silêncio dos dois começou a unir-se num só grito, que já não conseguiam controlar, que tinha cada vez mais força e os empurrava para longe das memórias felizes, tornando-as vagas, confusas, irreais.
No entanto, à volta deles estava tudo igual.
Só eles tinham mudado.
Acusavam-se mutuamente, sem repararem que não eram mais os mesmos.
Dentro de cada um tinham crescido as dúvidas sobre tudo o que não foram as suas vidas.
Essa dúvida cresceu até fazer parecer insignificantes os pedaços de felicidade dos últimos anos.
Mais e mais insignificantes, até se tornarem invisíveis.
essa dúvida, que pode chegar mais cedo ou mais tarde, que pode surgir repentinamente e desaparecer, sem estragos, ou pode instalar-se definitivamente e imepedir a vida, acompanhada da vantagem própria daquilo que pode ser preenchido com o sonho.
E o sonho ganha sempre à realidade.
iiiiiiiiiiiiiiii
Elisabete Valente, Testemunho, A Contos Com A Justiça

Mishima



03-11-2008 a 30-11-2008
CICLO MISHIMA UM ESBOÇO DO NADA

“A 25 de Novembro de 1970, o mundo era surpreendido com a notícia e as imagens do suicídio ritual do escritor Yukio Mishima (nascido em 1925 como o nome de Hiraoka Kimitake). Mishima, um dos mais notáveis escritores japoneses do pós-guerra, desenvolvera durante um quarto de século uma prolífica actividade como romancista, dramaturgo, actor e realizador de cinema, e assumira-se como uma das vozes mais críticas da modernização acelerada do Japão, que se tornara particularmente notória durante os anos sessenta. O seu suicídio foi uma forma de protestar contra aquilo que ele considerava a descaracterização da milenar civilização nipónica. Com o Ciclo Mishima, Um Esboço do Nada, o CCB evoca a figura e a obra de Yukio Mishima nas suas diversas vertentes: como dramaturgo, como romancista e como actor/personagem de cinema. Uma exposição construída pelo desenhador Tiago Manuel visita três obras fundamentais do autor de Confissões de Uma Máscara e Ko Murobushi, expoente da dança butô, apresenta-se no Pequeno Auditório.”
http://www.ccb.pt/sites/ccb/pt-PT/Programacao/Ciclos/Pages/CICLO%20MISHIMA.aspx

Um Tiro na Nuca, Porque Sim

O meu fortim foi sempre o gabinete onde descarno processos até à medula para encontrar a solução justa ou a que - quem faz as leis chama de justa - aquela que os honestos esperam e os vigaristas detestam. E embora o meu desvendar ou desnudar não importe a mais ninguém que a mim, e não faça, assim, parte das coisas importantes que aos outros interessaria saber, tenho de revelar (mais como fim último de catarse, nunca de exibicionismo, e muito menos, para alimentar a curiosidade de quem lê ou escuta) que um facto porventura vulgar, alterou o meu ritmo, os meus horários, influenciou as minhas inibições, agigantou os meus segredos, aumentou os meus medos, acelerou o meu ritmo cardíaco, e não sei se algum prazer ou gozo me deu ou dá (o que me faz duvidar desde já da sua importância, porque utilidade não tem).
Esse facto é tão simples e vulgar que se traduz no que os filmes, a escrita, as imagens, e a imaginação dos homens já esgotou: traduz-se numa mulher nua na janela, que às cinco e meia da tarde, (já noite quando inverno), invariavelmente a essa hora, abre as portadas da casa onde mora, embora distante, mas em frente ao meu gabinete, e muda de roupa sempre nos mesmos gestos, no memo ritmo.

António Sampaio Gomes, Um tiro na nuca, porque sim, A Contos Com A Justiça

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Os Pássaros e as Penas

De repente, a persistência na evocação dos melros deixava de ser um engano da zoologia e mais sentido fez ainda quando o barulhar das asas saiu do painel, levantou as folhas do processo aberto sobre a mesa, apagou de vez as três lâmpadas tremelicantes do tecto e ele, por dentro daquela suspensão do tempo, fixando a sua atenção onde ela era agora reclamada, consentiu que de onde antes houvera a cerimoniosa veste de um ritual propiciatório, se desprendesse agora um enorme melro que abrindo as asas voou na direcção da janela, passou por ela sem a partir, para o lado de lá, onde o adocicado do ar fazia luzir um bater de penas azeviches.
Sentou-se de novo, olhando uma e outra vez, o esboço daquela sombra solta sobre a manhã e, sabedor de que liberto é o homem que consegue chegar ao dia seguinte com os olhos lavados do anterior, respondeu à incredulidade do procurador a quem a realidade surpreendera na explicação das suas contas, que não se apoquentasse, que ele ficava ali, ali mesmo, esperando que o sr. juiz regressasse do seu voo, para que como de todas as outras vezes, o zumbido das orelhas passasse, o formigueiro dos pés desaparecesse e a tremura da gargante se descomovesse.
ggggggggggggggggggg
Manuel Capelo, Os pássaros e as penas, A Contos Com A Justiça

Beleza Americana



Para alguns, mais bela agora?...

O Ladrão das Penas

A falésia entrava-lhe pelos olhos dentro, sem piedade.
A maré daquela água mais do que azul tocava-lhe, como réstia de seda, no coração, amaciado pela ventania anónima que, naquele fim de dia, se fez indiscretamente convidada.
Sempre venerara as tempestades, sempre olhava as fúrias da Mãe Natureza com extrema indulgência e com uma vontade indómita de as seguir e com elas desfazer-se em ar e ruído, voando para outros continentes de olhos bem vendados e com apenas o poder de estremecer as folhas mais altaneiras das árvores.
Oito horas de uma noite desusadamente estival, em Cascais.
Era um pedaço de dia cheiroso, pleno de buganvílias, recheado de passageiros sem rosto e sem passado, espalhados pelas esplanadas da prais, pelos bares de estrangeirados, pelas complacentes praças...
Como preces, Tomás ouvia, junto à Boca do Inferno, os sussurros das gaivotas e entendia-os, decifrava-os.
rrrrrrrrrrrrrrrrrr
Paulo Guerra, O ladrão das penas, A Contos Com A Justiça

E os outros não?

OS FUMADORES MORREM PREMATURAMENTE

(anúncio visível em maços de cigarros, mesmo hoje, dia dos não fumadores)

Um Inverno em Lisboa

"Tenía una sumaria dignidad vertical. Más tarde me di cuenta de que yo siempre había notado en él esa cualidad inimitable de quienes viven, aunque no lo sepan, con arreglo a un destino que probablemente les fue fijado en la adolescencia. Después de los treinta años, cuando todo el mundo claudica hacia una decadencia más innoble que la vejez, ellos se afianzan en una extraña juventud a la vez enconada y serena, en una especie de tranquilo y receloso coraje. "

Antonio Muñoz Molina
Un invierno en Lisboa (fragmento)
www.epdlp.com

Estudo em Vermelho

Chapter 2
The Science of Deduction
We met next day as he had arranged, and inspected the rooms at No. 221B, Baker Street, of which he had spoken at our meeting. They consisted of a couple of comfortable bedrooms and a single large airy sitting-room, cheerfully furnished, and illuminated by two broad windows. So desirable in every way were the apartments, and so moderate did the terms seem when divided between us, that the bargain was concluded upon the spot, and we at once entered into possession. That very evening I moved my things round from the hotel, and on the following morning Sherlock Holmes followed me with several boxes and portmanteaus. For a day or two we were busily employed in unpacking and laying out our property to the best advantage. That done, we gradually began to settle down and to accommodate ourselves to our new surroundings.
Holmes was certainly not a difficult man to live with. He was quiet in his ways, and his habits were regular. It was rare for him to be up after ten at night, and he had invariably breakfasted and gone out before I rose in the morning. Sometimes he spent his day at the chemical laboratory, sometimes in the dissecting-rooms, and occasionally in long walks, which appeared to take him into the lowest portions of the city. Nothing could exceed his energy when the working fit was upon him; but now and again a reaction would seize him, and for days on end he would lie upon the sofa in the sitting-room, hardly uttering a word or moving a muscle from morning to night. On these occasions I have noticed such a dreamy, vacant expression in his eyes, that I might have suspected him of being addicted to the use of some narcotic, had not the temperance and cleanliness of his whole life forbidden such a notion.
As the weeks went by, my interest in him and my curiosity as to his aims in life gradually deepened and increased. His very person and appearance were such as to strike the attention of the most casual observer. In height he was rather over six feet, and so excessively lean that he seemed to be considerably taller. His eyes were sharp and piercing, save during those intervals of torpor to which I have alluded; and his thin, hawk-like nose gave his whole expression an air of alertness and decision. His chin, too, had the prominence and squareness which mark the man of determination. His hands were invariably blotted with ink and stained with chemicals, yet he was possessed of extraordinary delicacy of touch, as I frequently had occasion to observe when I watched him manipulating his fragile philosophical instruments.
Arthur Conan Doyle
A Study in Scarlet

sábado, 15 de novembro de 2008

Sob Escuta

- Estou esmagado, absolutamente esmagado... (risos)
- Mas ouve lá, agora falando a sério, quem vê de fora e eu, como sabes, numa fase da minha vida já estive próximo dos juízes, conheci muitos e sei como a maioria deles pensa, eh pá... quem vê de fora... ouve o vosso discurso sobre a justiça e depois confere-o com as vossa medidas... e é quase inevitável não pensar que vocês, deliberadamente, quiseram confrontá-los!
- Mas porque dizes isso?
- Então olha lá, quem estiver atento e fizer a retrospectiva dos factos... então faz algum sentido que a primeira medida anunciada para a área da justiça tenha sido a alteração das férias judiciais?
- Bom...
- Sabes bem que tenho razão, ambos somos licenciados em direito e já trabalhámos na área da justiça e dos tribunais...
- Tempo já passado felizmente e ao qual, se Deus quiser, não voltarei!
ggggggggggggg
Renato Barroso, Sob escuta, A Fazer De Contos

O Passo do Anjo

A Maria Eugénia, por seu lado, também não se sentia nada tranquila, vivia com um aperto no peito como se estivessem a querer arrancar-lhe o coração, a filha estava cada vez mais distante, quase pareciam duas estranhas.
E por isso a Maria Eugénia tomou a decisão de ir falar com o padre, nos seus momentos de aflição virou-se sempre para a Igreja e este não seria excepção.
O padre era um indivíduo curioso, que tinha conseguido naquela pequena paróquia perdida no meio das frágas mobilizar os jovens com uma postura muito alegre e comunicativa, e após alguma desconfiança inicial venceu todas as resistências dos mais velhos, que acabaram por acolhê-lo.
Deus, dizia ele, tem um projecto de felicidade para cada um de nós.

Sónia Alexandra Moura, O passo do anjo, A Fazer De Contos

Cavalos Árabes

E o meu olhar diluiu-se no mar e, numa fracção de segundos, regressei a uma sala de Tribunal onde havia alguns anos se contara um conto de fadas como tantos outros iguais aquele e imaginei-me a escrever-lho.
Era uma vez num local não muito distante, logo aqui ao lado... ao alcance de um sorriso, ou de uma palavra, ou de um gesto, uma rapariguinha de cerca de nove anos, chamava-se Ana e tinha quatro irmãos. Era filha de sua mãe e de um homem desconhecido de quem não sabia o nome.
Os dois irmãos mais novos, eram do seu padrasto. viviam todos numa casa em que havia dois quartos e uma cozinha que servia de casa de jantar. A casa de banho, se assim se podia chamar, era na rua do lado de fora da casa, fosse dia ou noite, Verão ou Inverno.
Essa casa estava situada dentro de uma grande quinta de um senhor rico que tinha muitos cavalos. Alguns, diziam, eram puro-sangue árabe e ela não percebia porque lhes davam tanto valor se até eram mais baixos que os outros cavalos, embora percebesse que iam a concursos e ganhavam muitos prémios.
Diziam também que eram os cavalos de raça mais antiga e que reis e faraós (que ela não sabia o que eram), desejavam ter muitos, ou pelo menos conseguir um. também lhe contavam que havia reis nas arábias que estendiam sedas para os seus cavalos árabes se deitarem.
Não percebia a pequena Ana como podiam dar tanta importância a cavalos a ponto de os deitarem em sedas! Coisas de Reis! Mas gostava deles, dos cavalos.
ggggggggggggg
Adelina Oliveira, Cavalos árabes, A Fazer De Contos
(foto fotografada do Jornal Público)

É sempre tempo


de voltar às flores


2.

Quando me perguntas se a aurora
é constante
(querendo assim dizer que
a persistência te justifica o som)
só porque,
na idade que tens por tua,
te dá o esporádico medo da noite fria;
só porque,
se não adormeces no instante do desejo,
o devaneio apodera-se do escuro
que te envolve
(e é ele que decide - acrescentas)
- ...
quando o perguntas
(quanto o perguntas!)
queres uma resposta que não tenho.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O Lugar do Vivo

- Já ninguém se mata à beira-mar, junto do farol. Saiu-me da boca, mas não fui eu a falar.
O medo continuou, agora num sussurro fechado, só comigo: "Que havia de dizer, se não uma graça? Ele é medonho, repara bem!"
Na terceira semana de Novembro, desde há dez anos, conseguia aconchegar dias dispersos e ia respirar o mar. Sozinho, apartado da cidade, escondido em invisibilidade incógnita. As pegadas do Verão tinham desaparecido e o São Martinho não tem quentura para contrariar o ritmo das estações. Preciso de arrefecer e só o ar do mar me ajuda a retomar o desgosto do trabalho, a reinventar o fôlego. Todos os anos, era este o pedaço de Outono que me rejuvenescia. Fugia à família e esvaziava-me no som das ondas, nas réstias de Sol e nas longas caminhadas pelo areal lavado.
Todas as vezes, como numa destinação astrológica, temendo que o olvido fosse agoiro, percorria o pontão na noite anterior ao regresso. Caminhava da fortaleza ao farol e enchia o peito daquela terna brisa fresca. Chovesse, ventasse forte (houve uma noite, vão lá seis anos, que uma trovoada medonha me escolheu e tive de avançar em gatas, enquanto a ventania me fazia de trapo sacudido). Regressava do farol, peito cheio, percorrendo o quilómetro de volta. Sempre sem um parceiro, sempre sem vivalma que visse, e sempre com o descanso de nem polícia nem bombeiro se inquietarem com a minha ousadia, impotentes na imaginação de haver um louco a percorrer o frio escuro de Novembro.
Foi a três curtos passos do farol, num escuro salpicado de bagos de reluzente espuma, que vi o homem.
"Vai atirar-se dali, mesmo á tua frente, ou não, pode é estar à tua espera".
oooooooooooooo
José Eusébio Almeida, O lugar do vivo, A Fazer De Contos

A Inutilidade da Lide

Sou um processo de divórcio e a minha história simples conta-se em meia dúzia de articulados.
Nasci no longínquo ano de 1990, era então uma frágil ,petição inicial de 66 artigos, nos quais a minha autora acusava o marido de coisas terríveis, como maus tratos e adultério.
Sofri uma violenta contestação de 132 artigos e, a partir daí, a minha vida tornou-se um inferno.
Engordei com incidentes processuais, reclamações e recursos, e tornei-me caro e pesado com custas e multas que têm recaído em idênticas proporções sobre os meus dois litigantes.
Já depois da contestação, criei uma vasta prole a que me ligam estranhos atilhos umbilicais: primeiro foi o arrolamento intentado pela minha autora, a que se seguiu o processo de embargos - e vão dois; depois veio o arrolamento intentado pelo meu réu, a que se seguiu outro processo de embargos - e vão quatro; a seguir veio a providência cautelar de alimentos provisórios e mais tarde a acção de alimentos - e vão seis; nasceu depois o incidente de atribuição da casa de morada de família e, decorrido algum tempo, a execução de alimentos - e vão oito; finalmente a minha autora zangou-se com o advogado que me subscreveu a petição inicial e pronto, lá nasceu a acção de honorários - e vão nove apensos, já todos felizmente bem nutridos com certidões, documentos vários, incidentes, recursos, custas e multas.
Mas, voltando à minha história simples...
kkkkkkkk
Carlos Querido, A inutilidade da lide, A Fazer de Contos

O Tempo das Promessas

O tempo não se desembrulha em horas nem em minutos, e tão pouco tem a forma circular que enganosamente os relógios sugerem. São os nascimentos e as mortes que lhe dão a substãncia de que é feito. Epifanias ou eclipses da existência, separados por intervalos mais ou menos longos, dispostos por ordem cronológica numa linha delirantemente recta que se prolonga, com tédio ou deslumbramento, na direcção da finitude ou da eternidade.
Desde que por exercício de função a possibilidade de julgar os outros passara a ser nele o dever de sentenciar, numa idade quase ainda intacta de baptismos e funerais, tinha-lhe nascido e morrido tanta gente, que quase sem se dar conta deu por si feito adulto, a caminho de velho, e com as imperatudes de ter de deixar o lugar que durante anos lhe conhecera os dias, para se mudar, também ele, para aquela dimensão da realidade dos tribunais em que a justiça para lá de ser cega é, em simultâneo, invisível aos olhos de quem dela se serve.
jjjjjjjjjjjj
Manuel Capelo, O tempo das promessas, A Fazer De Contos

O Gato Borralheiro

Lembro-me, como se tivesse acontecido há momentos, aqueles olhos enormes, negros como a noite do lugar de onde provinha, o seu rosto aluado e corte de cabelo à "Amélie", mudo pela imponência do espaço, a que, transitoriamente, por necessidade de pintura do gabinete, me vira obrigado a utilizar mesmo para aquele tipo de diligências.
- Tens a certeza que já sabes ler, Miguel?
A sala era, ainda assim, pequena de mais para conter tantos odores. O corpo e a roupa do Miguel, cheiravam-se, já não viam sabão há um bom par de semanas.
Ainda bem que me lembrara de trazer aquelas bandas desenhadas que o meu "puto" tinha em duplicado (demasiadas festas de aniversário é no que dá).
O Miguel contava então com oito anos de idade, feitos dias antes.
Se, além da idade e da descrição do rosto, lhes disser que o Miguel vivia num barracão, de tábuas negras encortiçadas, com o chão térreo coberto por um oleado que as águas barrentas de Inverno iam tingindo de "laranja", fica mais fácil imaginar o Miguel?

Paulo Correia, O Gato Borralheiro, A Fazer De Contos

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Bunnyranch















Depois da edição de "Teach Us Lord" , primeira parte do registo, os Bunnyranch vão mostrar "How To Wait" com a co-produção de Boz Boorer, o fundador dos Polecats, que tocou com Adam Ant e é, desde 1992, guitarrista e director musical de Morrisey (The Smiths).
Concertos agendados para este Mês:
13 Ar d´Rato (Coimbra) - 23h30
15 Fnac Mar Shopping (Matosinhos) - 17h00
16 Fnac Norte Shopping (Matosinhos) - 17h00
21 Music Box (Lisboa) - 23h00

1.

Perguntas se é possível reconstruir
a ALMA
com os escombros de um poema
- perguntas porque divisas luz
entre a poeira do asfalto (o ritmo
solene do indizível
que permite baixar o infinito
às nossas pequenas coisas)
Grato-te,
comovido de choros pretéritos,
gritante de alegrias vindoiras:
porque o perguntas.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Nocturnas Portas

Portas, imensas e nocturnas portas, quando o que desejamos é um rasgão luminoso.

Mário Rui de Oliveira, O vento da noite

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Fiódor Mikhailovich


Dostoiévski nasceu em Moscovo a 11 de Novembro de 1821 e faleceu em S. Peterburgo a 9 de Fevereiro de 1881. filho de um médico que se tornou nobre e jovem de saúde precária, vem a ser um dos maiores romancistas da literatura russa, autor de vasta obra que explora e desvenda o mais profundo da alma humana. Bem, Mal, Amor, ciúme, traição são estados e sentimentos inconfessáveis dos homens que o grande romancista - autor que ombreia com Tolstoi ou Tchekov - trata melhor que ninguém, explorando a alma profunda e mostrando as suas tragédias e contradições.

Dostoiévski


Peças de Música

No dia em que a SIC deu destaque à PLUG, aproveito para deixar aqui nota de um conjunto de fotografias, no mínimo, geniais. Só para fãs de música e de legos.

De qualquer modo sempre direi - "eu é mais naves e legos do espaço, não é?"

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quando tudo arde

Que farei quando tudo arde?
SÁ DE MIRANDA

mmmmmo olhar que ao ir-mos embora nos segue até à porta e desiste, e escurece, e fica para ali
mmmmmum objecto sem lugar

António Lobo Antunes, Que farei quando tudo arde

Que farei no outono quando ardem
as aves e as folhas e se chove
é sobre o corpo descoberto que arde
a água do outono

Que faremos do corpo e da vontade
de o submeter ao fogo do outono
quando o corpo se queima e quando o sono
sob o rumor da chuva se desfaz

Tudo desaparece sob o fogo
tudo se queima tudo prende a sua
secura ao fogo e cada corpo vai-se

prendendo ao fogo raso
pois só pode
arder imerso quando tudo arde

Gastão Cruz, As Aves, Transe (antologia 1960 - 1990)

domingo, 9 de novembro de 2008

O poema e o desejo

oooooo"Falei do corpo mas poderia
igualmente falar do desejo.
oooooO desejo não morre na poesia,
como o atesta o maravilhosa frase de
René Char: o poema é o desejo de
amar que se mantém desejo."
oooooooo
oooooo"Se a ausência ou o vazio e o in-
compreensível são constantes da
minha poesia, será unilateral e falso
considerar que esse carácter não é
também o da realidade nas suas
contradições."
000000
ooooo"Penso numa linguagem descon-
certantemente simples, falsamente
transparente, um pouco tosca /
Térrea e pétrea / E aí brilha uma lâm-
pada, uma pedra, o ar / Uma lingua-
gem de restituição."
000000
ooooooooooAntónio Ramos Rosa
(na contracapa d'A Intacta Ferida, Relógio D'Água, 1991)

sábado, 8 de novembro de 2008

Coliseu dos Recreios, 2004

Desconhecerei - para sempre? -
essa arte de tornar presente
a mais pura e inesperada ausência.
Não sei explicar melhor.

Horas depois, na penumbra
de um bar fechado, alguém
me obrigou a escrever o seguinte:
"os nossos filósofos e historiadores
(raiz quadrada) são os
nossos compositores e intérpretes".

talvez seja isso - a pior manhã
que nos encontrou vivos,
a morte que não se diz

quando apenas o cavaquinho sabe
que nenhuma voz regressa.

Manuel de Freitas, Cretcheu Futebol Clube

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Nascido a 7.11.1913

Tragicamente desaparecido no percurso de uma carreira sempre ascensional, galardoado com o Nobel três anos antes, continua a ser uma figura do maior relevo nas letras mundiais. A sua obra é um depoimento vibrante e veemente sobre o homem do seu tempo, mas igualmente sobre o homem de hoje, e é servida de uma estética ímpar. Os mais agudos problemas existenciais encontram-se traçados, pela sua arte, com beleza e lucidez.

Albert Camus

Nasceu em Mondovi, Constantina, na Argélia, no dia 7 de Novembro de 1913 (há precisamente 95 anos) e morreu num acidente de viação em Janeiro de 1960, quando regressava a Paris de uma digressão na província. Em condições difíceis efectuou os seus estudos na Faculdade de Argel, recorrendo a diversos empregos para custear a vida de estudante: vendedor de acessórios para automóveis, metereologista, empregado de escritório e empregado da polícia. Enquanto isso, dedicava-se ao desporto e animava um grupo teatral, o L´Équipe.
Licenciado em Filosofia, a doença impediu de levar mais além a sua carreira académica de professor. Tornou-se jornalista e, com a invasão da França ingressou na Resistência. Quando se dá a Libertação ele é o redactor do jornal Combat. Entretanto, o seu nome subiria ao mais alto patamar das letras francesas e mundiais e, em 1957, a consagração dá-se com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura.

CAMUS