quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Carta

Caro Francisco:

Não, comecei mal. É absurdo usar contigo o mesmo tratamento a que recorro quando quero assinar uma revista, escrever aos clientes ou mesmo reclamar de um serviço.
Tu, cujo nascimento significou para mim um mundo de novas possibilidades – saberias jogar à bola e brincar aos polícias e ladrões? Conseguirias, ainda que daí a mais tempo do que eu gostaria de admitir, ler os livros que eu começava a espreitar, ou fazer pistas de carros no nosso infinito corredor, cheias de pontes e túneis?
Nesse momento, tudo me pareceu muito confuso (e tu, muito vermelho e enrugado…). Mas sei, ainda, com que bonecos brincava quando o Pai me veio dar a notícia, e não me poderia nunca esquecer que foi na minha direcção que andaste sem ajuda pela primeira vez.
Por isso, e muito mais que não conseguiria dizer, tenho de recomeçar, desta vez com o único vocativo digno de ti.

Meu irmão:

Preciso de desabafar. Confissão rara num primogénito, que mais se assemelha a uma fortaleza inexpugnável: preocupado com o crescimento dos seus irmãos, pronto a resolver os sarilhos deles, quase se sentindo responsável se algo corre mal, acaba por não ter sequer tempo para admitir os seus próprios problemas, quanto mais para os resolver.
Só que, tendo os outros irmãos muito mais perto, porquê logo tu? É simples.
gggggggggggg
Cristina Xavier da Fonseca, Carta, A Fazer De Contos

1 comentário:

Anónimo disse...

Toda a estranheza começa quando o nosso mundo se acrescenta de alguma coisa que já não conhecemos.
Nascemos na quasitude do reconhecível e vai-se a ver, em certa altura, somos mais o que já não reconhecemos que aquilo que ainda tem a afabilidade de um reflexo de nós.
Quando aprendemos a escrever quem conhece a nossa letra é a professora, o pai e a mãe que fazem o escrutínio do elogio, ou para repasso da alma, algum irmão mais velho que no excesso do zelo reune em si a severidade de que todos os outros abdicaram.
Mais tarde, já de escrita lisa e desarvorada, sentenciadora que seja, as palavras ainda têm o sortilégio de um segredo, seja porque sejam cartas ou mails, que são cartas sem envelope e selo, seja porque sejam elucidários de fórmulas de suplício ou de alívio, lidos na solenidade das grandes escutações.
Mas depois há um momento in-grato em que jogamos tão alto e tão longe as palavras que aceitamos o risco de nunca virmos a saber o rosto daqueles que nos leêm, acreditando que essa leitura nos não esgote pelo atrapalho da vaidade ou pelo quebranto da nostalgia.
Como o barbeiro do príncipe com orelhas de burro descobri aqui este buraco onde o que deixo escrito é apenas dito, lá para dentro. Um segredo que não tem forma de carta, decisão avulsa ou de despacho de aclaração mas que acredita que os murmúrios deixados nos ouvidos de quem nos escuta podem ter o poder de fazer crescer canavios, de que se podem fazer pífaros; de que se pode tirar som; de que se pode tirar alguma alento ao reconhecer no assobio de um transeunte uma palavra que eu lhe confifenciei , sem que ele soubesse quem sou.