quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Momentos (de #Natal)

"A lareira crepitava, num ritmo lento e compassado, trazendo ao espaço um calor que apenas era comparável àquele que os olhos de Luísa deixavam transparecer. Entre os seus dedos esguios rolava agora um copo de balão, onde um preguiçoso brandy era servido a uns lábios que, nessa noite, apenas conheciam os beijos quentes de uma paixão que tinha encontrado o seu porto de abrigo.
João, não sem algum prazer, notou que mal falavam e que nem disso precisavam. O encontro deles, ali, naquela mesma sala de há uns meses atrás, já falava por si.
Mesmo assim, João arriscou: «Já viste bem o caminho que nos trouxe até aqui?».
Luísa sorriu e respondeu-lhe:«Não foi por culpa minha que ele foi tão longo». Ele sabia que não tinha resposta.
«E agora, Luísa, que se segue?», perguntou João, enquanto lhe afastava uma madeixa de cabelo da testa, beijando-a suavemente.
«O que nós quisermos...» - respondeu ela.
Para esta noite, era tudo o que ele precisava de ouvir. Estavam juntos e o momento, mais um, era de Felicidade."

Alexandre Villas-Diogo, "Momentos"

Natal #3



Para agitar, antes de abrir... mas só um bocadinho que é #Natal!

A todos um

LLLL
B O M N A T A L

NATAL

Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma nova Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
JJJJJJJJJJJ
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
LLLLLLLLLLL
FERNANDO PESSOA

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

um dia inteiro sem

sem consolo certo da mão amante
- que enfeitava dedos a trautear carícias -
ganho cabelos alvos na manhã seguinte
logo que o sol relembra o teu espaço vaso
e os lençóis suplicam outra saudade;

já não há noites cândidas
deixando romper o escuro
- como antes d'agora-
com sopros do olhar tímido
brilho no espelho
onde desenho os contornos dos teus seios.

é que hoje
a ausência é feita de silêncio claro,
e as promessa esfacelam-se
em trilhos d'ideias solitárias,
em buscas, sulcos, caminhos,
actos por pisar
nos pés doridos com que percorro o dia.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Cálculos temerários

Conheço a distância exacta
entre os nossos peitos,
que numa álgebra de lábios
calculei em vírgulas de filigrana.

Há um instante futuro
que abre uma brecha imperceptível.
Mas tão futuro, tão futuro
que até lá te aperto, eternidade toda.

(9.06.09)

sulcos

tenho nas mãos o silêncio das terras
que ancestrais sulcaram d'adivinhas
linhas, quando lavraram pastos e vinhas
em outonos tristes e primaveris esperas

Neste momento todo o mundo
é tecido em branco d' algodão.
Num final alento (último segundo...)
perde sentido não te sentir a mão.
E por isso te peço, rainha dos dias
abençoa meu desejo mais puro:
Sei que não mereço outras alegrias
só perder o medo deste sítio escuro.

Consciência


Cada minuto uma questão
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso

Mário Dionísio
As solicitações e emboscadas, 1945

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

País da Tarde



País da tarde,
a que se deve esta demora?
Que luz é esta
que não vem de dentro nem de fora?
Que presença é esta
que está até chagarmos
depois vai embora?

Os meninos fechados
num ponto final
ou os olhos dos meninos
há muitos anos mortos
e ainda com brilho.

De tanto esperarem
são aquilo onde ficaram.
País da tarde,
em que direcção estamos parados?

Recitam distâncias
dantes eruditas
as luzes de néon enlaçados no corpo
e as avenidas alongam-se
até desaparecerem nas dunas.
País da tarde
a quantos metros estamos do deserto?

(...)

País da tarde,
quantos mais anos são precisos
para passar o que passou?

Há alusões e vestígios
que os comparam ao que são.
As ideias favoráveis
são lacónicas
e ensinam umas às outras
uma exactidão nova
portátil e breve.
A face sísmica do século
reduziu a memória
a um texto curto:
agora é só fazer como se escreve.

Boaventura de Sousa
Viagem ao Centro da Pele
Edições Afrontamento, 1995

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

JUSTIÇA

Mas acredita que um poema pode salvar alguém?

Penso que é possível o poema salvar, se num determinado contexto o poema for dito por um justo ou for lido por um justo. São os justos que salvam o mundo. Se o poema for uma forma radical de justiça, o poema salva. Se não, há-de ficar como um ornamento.

José Tolentino Mendonça,
Revista LER, Dezembro 2009

O infinito sempre nos fascinou...

Porque perdemos tanto tempo a tentar completar coisas que, de um ponto de vista realista, não se podem completar?

Nós temos uma limite, um limite muito desanimador e humilhante: a morte. Por isso gostamos de tudo o que para nós não tem limites e que, portanto, não tem fim. É uma fuga que nos distrai de pensar na morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer.

Umberto Eco,
Comissário da nova exposição (no Louvre) sobre listas
(a natureza essencial das listas!), entrevista à Der Spiegel (Jornal i)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Quarta-feira, 9 de Dezembro na RTP2 (trailer)

ESECTV no espaço UNIVERSIDADES da RTP2. Trailer do Programa nº151 da ESECTV. Emissão: 9 de Dezembro de 2009. SOBRE A MÚSICA EM COIMBRA
NESTA 1ª EMISSÃO INTERVENÇÕES DE RUI FERREIRA, DIOGO CABRITA E PAULO FURTADO....

A liberdade é só de fantasia

Vem deitar-te no leito
que meus braços te doam
e recuperar dos sonos antigos
(quando o frio te fingia de sonho
e acordavas debruçada nos passados
que a infância guardou em demasia)
Há agora um sol a visitar-nos nas noites mais escuras
e podemos sorrir tão d'alto
como os trapezistas espreitam o riso dos palhaços
Embalo-te nos acordes da canção recuperada
cheia de cerejas de Junho e de uvas de Setembro
- podemos fechar os olhos e ver o mundo um do outro
sem gestos excessivos
sem que a porta ronque uma dúvida
sem precisar de pecar
quando (des) fazemos as mesmas coisas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

"Alguém sonha"

Que terá sonhado o tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice? Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso. Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria. Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas. Sonhou os gregos que descobriram o diálogo e a dúvida. Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal. Sonhou a palavra, esse grosseiro e rígido símbolo. Sonhou a sorte que tivemos ou que agora sonhamos ter tido. Sonhou a primeira manhã de Ur. Sonhou o misterioso amor da bússula. Sonhou a proa do norueguês e a proa do português. Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, aquele que morreu uma tarde numa cruz. Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates. Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho. Sonhou o espelho em que Francisco López Merino e a sua imagem se viram pela última vez. Sonhou o espaço. Sonhou a música, que pode prescindir do espaço. Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável do que a música, porque inclui a música. Sonhou uma quarta dimensão e a forma singular que a habita. Sonhou o número da areia. Sonhou os números transfinitos, a que não se chega contando. Sonhou o primeiro que no trono ouviu o nome de Thor. Sonhou os opostos rostos de Jano, que não se verão nunca. Sonhou a lua e os dois homens que caminharam sobre a lua. Sonhou o poço e o pêndulo. Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinoza. Sonhou o jasmim, que não pode saber que o sonham. Sonhou as gerações de formigas e as gerações de reis. Sonhou a vasta teia que tecem todas as raanhas do mundo. Sonhou o arado e o martelo, o carangueijo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrêz. Sonhou a enumeração a que os tratadistas chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos. Sonhou a minha avó Frances Haslam na guarnição de Junín, a um passo das lanças do deserto, lendo a sua Bíblia e o seu Dickens. Sonhou que nas batalhas os tártaros cantavam. Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que depressa será uma onda. Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet. Sonhou os arquétipos. Sonhou que ao longo dos verões, ou num céu anterior aos verões, há uma única rosa. Sonhou o rosto dos teus mortos, que agora são esmaecidas fotografias. Sonhou a primeira manhã de Uxmal. Sonhou o acto da sombra. Sonhou as cem portas de Tebas. Sonhou os passos do labirinto. Sonhou o número secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha. Sonhou a vida dos espelhos. Sonhou os signos que o escriba sentado traçara. Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas. Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança. Sonhou o deserto. Sonhou a madrugada que espreita. Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes de água. Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido. Sonhou Alexandre da Macedónia. Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre. Sonhou o mar e a lágrima. Sonhou o cristal. Sonhou que Alguém o sonha.
hhhhhhhhhhhh
Jorge Luis Borges, Os conjurados, Difel

Na lição de Borges

Escrever um poema é sempre dar vida
A uma ilusão mais débil.
Onde a grandeza se exprime
Na ferramenta. Esse instrumento
É a palavra
E esta é, apenas,
Um bocejo da língua,
De todas as línguas.
E o homem, que todas esmerou
Que será?
Se não for, pelo menos,
O demiurgo mágico.
E, nesse Infinito,
Pode ser que ainda haja
Atrás do Início.
Além da barreira do entendível.
Com toda a certeza.

(usando as palavras, talvez a ideia, de J.L.B.
na Inscrição de Os Conjurados, 1985)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

palavras só respiradas

pensamos que o mundo nos ouve
só porque falamos
os silêncios que dão azul ao infinito
e que as aves conhecem
as nossas conversas ocas,
lá onde o som bate as portas dos fundos
sem uma palavra excessiva, sem
nenhum gesto perdido
sem um só beijo por corromper.

madrugada

antes d'a noite morrer
(no corredor de ziguezagues que se despedem
em louvor de escuro e dormência)
há uma luz que só se apaga aos teus olhos.

ao fundo da rua
(confundida nas acácias sem flor)
despejas a trança na camisa alva
e socorres do tédio
os lábios das manhãs.

vejo-te como um grito
- sereno de silêncio -
deixando mar na cidade por abrir

e sal que sulfure
as almas melancólicas
dos teimados.

lanças-me beijos de espuma
em papel de folhas de plátano, e voas
pedaço de nuvem
que guardei depois do olhar,
antes da memória.