quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Abecedário (Bernardo)

Bernardo saiu do cabriolet furibundo com o sistema automático.
Em menos de duas semanas, era a terceira vez que a capota rígida não recolhia por inteiro e o sistema fez-se surdo-mudo quando lhe explicou as razões de queixa, primeiro mansamente e, volvidos segundos, praguejando a marca, os mecânicos e até o bom Deus. O veículo, modelo up up grade, vinha munido de sistema manual de utilização rápida e simples, capaz de solucionar qualquer problema, mesmo aquele, mas havia sempre a hipótese de Bernardo ficar de mãos oleadas e, pior ainda, escancarar aos passantes a sua comprovada ineptidão manual.
Odiava um reles parafuso, abominava uma chave de fendas, desprezava qualquer livrinho de instruções. Mas pagava, tinha direitos! Pagava para manter essas estimações: o carro tinha sido caríssimo (não forçosamente para ele, mas numa análise objectiva de mercado e com o sentido de um bonus pater familiae), a garantia assegurava cinco anos inteiros de fiabilidade e o cartão de crédito prevenia qualquer irreverência dos automatismos, teimando em dar como certa a assistência nos próximos quinze minutos, em qualquer pedaço recôndito do mundo inteiro.
Os locais do embaraço eram sempre escrupulosamente escolhidos, parecendo que a Criatura lá de cima, em lugar de jogar aos dados, o tinha sorteado para exemplo da ridicularia.
Na primeira vez, há pouco mais de uma semana, tinha sido em frente da casa da futura sogra e conseguiu espreitar-lhe o sorriso trocista a enfeitar as pregas dos longos cortinados da janela da sala. Há cinco dias, se tanto, foi mesmo à porta do bar do Clube, quando a Mónica teve de ficar a fazer urgências e ia, ledo e pimpolho, mostrar às colegas todo o vermelho metalizado da sua recente aquisição.
Agora ali, precisamente à entrada da porta principal do Palácio da Justiça, precisamente quando tinha conseguido um lugar fronteiro, onde era completamente impossível – precisamente como se havia esforçado – passar despercebido ou sequer como um qualquer.
No segundo piso, na janela mais ao fundo, já se vislumbrava a senhora escrivã do terceiro juízo a chamar ao espectáculo todo o pessoal de apoio, auxiliares e eventuais incluídos, e quase se percebia o som do discurso unânime: tanto dinheiro e tão pouco jeito! Doutor Bernardo!
Espreitando no magote da coscuvilhice, a adjunta Sereia (Sereia de Souza e Silva no tratamento integral) não conseguia apartar o cómico do enlevo e disfarçava o olhar directo, acautelando a solidariedade, se a coisa viesse a dar para o torto, tal como estava em ver-se que sim.
Sereia era imensamente boa, até como pessoa, e o doutor Bernardo (Bernardo Siqueira no tratamento profissional) costumava repetir que adorava ser atendido pela menina. Sem outros avanços, por enquanto, mas estudando o caminho para que, chegada a hora deles, não parecessem importunos.
Cá fora, de todo inesperadamente, uma nuvem carregada veio-se juntar à pandega da assistência. Aproximou-se, sorrateira mas firme, deitou um chuviscado aviso de segundos e, imediatamente, sem qualquer mais, água vai: uma bátega tão forte, tão despropositada que até os cães precisavam de impermeável. Que carga!
Bernardo ficou pendurado entre o corre e o aguenta, mas não aguentou: correu, correu, mas era como se apenas caminhasse dentro de água.
A gravata Armani ensopada, o sapato Sebago, americano de gema, todo empapado, o fatinho Boss encharcado, a cuequinha Gucci (um boxer, claro) alagada. Tudo completamente molhado. Bernardo trazia uma pasta Monteblanc de mil e duzentos dólares, mas parecia um plástico de levar à pesca.
Quando passou o átrio e se abrigou continuou tempos infindos a pensar que chovia. Da cabeça aos pés era um rodilho a sair do balde das limpezas. Nada se aproveitava. Correu (nadou?) até à casa de banho mais próxima e tentou ligar do móvel para o terceiro juízo. O telemóvel respondeu-lhe no mesmo tom do veículo: agora não!
Salvou-o um colega que desanuviava a bexiga no intervalo do julgamento. Avisou-o que o magistrado estava saturado de o esperar, mas ia transmitir o sucedido: afinal, saturado era a melhor rima para Bernardo.
Bernardo rogou que no caminho suplicasse os favores de Sereia, aquela menina boa do terceiro juízo.
Claro!
Repreendeu-lhe o colega. Há nomes mesmo dados à água. Acasos!
Sereia escolheu a solidariedade, quando a contrapartida certa era o gozo dos colegas. Foi sensível ao dilúvio que tinha espreitado da janela. Mas, mesmo no despudor que as desgraças consentem, não lhe parecia correcto entrar sem mais pela casa de banho e deitar-se a socorrer o pingado, tanto que sem alguma ligação íntima a uni-los.
Falaram com a porta a apartar qualquer pouca vergonha, ainda que fruto da aflição inesperada, e Sereia prometeu-lhe um equipamento completo, mesmo que muito parco em marcas consagradas.
Assim fez, usando a preceito a por outros estafada máxima de quem promete cumpre: um casaquinho no primeiro juízo, uma camisola na segunda secção e umas sapatilhas que andavam perdidas na espera semanal do jogo de futebol entre comarcas. As calças, isso foi mais complicado e Sereia nunca quis dar muita explicação. Mas lá lhe serviram, com as ancas a sobrar de espaço e um palmo em falta para chegarem aos calcanhares.
Bernardo correu para casa de taxi, guardou no bolso seco o número particular de Sereia e o juiz aceitou uma desculpa manhosa para adiar a audiência.

Sereia foi brindada com dizeres estranhos quando regressou ao Windows para terminar a acta e preparar dois mandados. O colega mais novo julgou-se protegido pela circunstância e pela unanimidade e acrescentou ao sorriso uns dizeres mais afrodisíacos.
Se ela lhe tinha secado o corpo inteiro, que ele também se ia lançar a um dilúvio e esperava igual dedicação, tanto mais colegas.
Foi no que se aventurou.
Sereia resguardou-se no silêncio, depois de se desculpar com o estado calamitoso do advogado. Sabia que ele guardara o número no bolso seco. E sabia das suas potencialidades. Toda a gente sabia, todas as adivinhavam!
O doutor Bernardo ligou-lhe no mesmo dia, já noite. Impunha-se-lhe uma cortesia de agradecimento. Fez-lhe ver que ainda estaria a olhar o autoclismo, se a sua solidariedade não tivesse sido tão actuante. Fez-lhe sentir o quanto passava a ser sua credora.
Sereia concordou. Não com tantos excessos de reconhecimento, com tanta graça delicodoce, mas mostrando-se pronta a aceitar uma paga. Simbólica. Como bons amigos. Amigos a quem a desgraça dos céus uniram num companheirismo.
Marcaram encontro, longe do átrio desumano da comarca, fugidos ao sussurro troceiro de colegas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Que a Sereia não tenha sido vítima do infortúnio automobilístico. Caso contrário, "justo impedimento", que não de afectos, daria sempre lugar a condenação em custas de solidão ingrata.