quarta-feira, 30 de abril de 2008
Elogio ao Amor
É uma noite quente e calma de Primavera. As estrelas e a lua nada nos dizem; limitam-se a acompanhar o nosso lento passeio. Embora as ruas estejam desertas os seus cabelos louros brilham de uma forma envergonhada, sempre que passamos pela luz de um candeeiro. Eu sinto a sua mão bem junto à minha e saboreio todos os pormenores daquele momento.
O silêncio que se partilha sem desconforto é algo de maravilhoso…
O silêncio que se partilha sem desconforto é algo de maravilhoso…
De outro modo não haveria...
É assim porque, como bem sabemos, os poetas não escrevem sobre aquilo de que detêm o conhecimento, mas sobre aquilo de que não possuem a última palavra; não o fazem porque não sabem mais, mas porque querem a todo o custo saber com mais precisão. É este conhecimento imperfeito, é este sentimento de profunda estranheza que os leva a pegar no cinzel, na pena ou na lira. (A cólera, o luto, a exaltação, o dinheiro, etc. são completamente secundários.) De outro modo não haveria poemas, romances, peças de teatro, etc., mas tão-só comunicados. – Patrick Suskind, Sobre o amor e a morte.
POEMA do DIA
Não sei descrever o caminho das palavras,
volteadas nos mistérios do mundo.
Não sei descobrir as sinas,
antever os princípios, por isso
não vejo a intenção das asas nos mastros do mar,
por cima das ilhas.
(Aposto que os navios morreram no mar,
aposto que os navios lutaram diante
da raiva das ostras num abrir e fechar de conchas,
intercalado, por zumbidos tenebrosos
de batimentos de cascas;
deixaram-se levar no ondear das
águas como quem foge aos bocados.)
E eu não dei por nada.
Não dei por eles.
Por isso,
Já não sei dobrar os versos das palavras,
escrever-lhes na contracapa os nomes,
silogismos e acentos.
Esqueci-me do golpear dos versos, das mãos cheias
da gente, dos rostos nas fotografias.
Têm-me tirado mãos. Têm saído da minha vida,
Aos bocados, as mãos, os abraços, os colos e
as palmas.
Aposto as estrelas nas margens das folhas,
os papéis dispersos na linha da frente,
entrelaçados nas luzes,
nas sombras da malabarista, palhaça, caída em rede
falsa em cima do rombo do casco, dito coração,
das pessoas, do meu.
Dou a volta á metafísica numa finta descarada,
vou por cima, vou por baixo, dobro as mãos,
subo as escadas, à procura de (me) ver
nos meus navios; ganhar às ostras, terrivelmente
mecânicas, abrindo e fechando as conchas
num batimento infernal de cascas.
Mas
Perco as sombras, dobro os passos, apresso e escrevo:
Esta manhã, aqui, o mar
E os ecos dele rasgando a calçada da avenida,
Esta manhã, aqui, o mar
E a gente de há anos correndo nos mastros,
dos meus navios.
A minha vida toda
Já não é inteira.
Eles também não.
MARIANA MATOS
Poema para os meus navios, magma, 2006
volteadas nos mistérios do mundo.
Não sei descobrir as sinas,
antever os princípios, por isso
não vejo a intenção das asas nos mastros do mar,
por cima das ilhas.
(Aposto que os navios morreram no mar,
aposto que os navios lutaram diante
da raiva das ostras num abrir e fechar de conchas,
intercalado, por zumbidos tenebrosos
de batimentos de cascas;
deixaram-se levar no ondear das
águas como quem foge aos bocados.)
E eu não dei por nada.
Não dei por eles.
Por isso,
Já não sei dobrar os versos das palavras,
escrever-lhes na contracapa os nomes,
silogismos e acentos.
Esqueci-me do golpear dos versos, das mãos cheias
da gente, dos rostos nas fotografias.
Têm-me tirado mãos. Têm saído da minha vida,
Aos bocados, as mãos, os abraços, os colos e
as palmas.
Aposto as estrelas nas margens das folhas,
os papéis dispersos na linha da frente,
entrelaçados nas luzes,
nas sombras da malabarista, palhaça, caída em rede
falsa em cima do rombo do casco, dito coração,
das pessoas, do meu.
Dou a volta á metafísica numa finta descarada,
vou por cima, vou por baixo, dobro as mãos,
subo as escadas, à procura de (me) ver
nos meus navios; ganhar às ostras, terrivelmente
mecânicas, abrindo e fechando as conchas
num batimento infernal de cascas.
Mas
Perco as sombras, dobro os passos, apresso e escrevo:
Esta manhã, aqui, o mar
E os ecos dele rasgando a calçada da avenida,
Esta manhã, aqui, o mar
E a gente de há anos correndo nos mastros,
dos meus navios.
A minha vida toda
Já não é inteira.
Eles também não.
MARIANA MATOS
Poema para os meus navios, magma, 2006
terça-feira, 29 de abril de 2008
Sentir
É terrível sentir
Que tudo é, de certa forma,
Relativo;
Que não há nada de concreto,
A que nos possamos
Agarrar.
É terrível sentir
Que nada é, na sua essência,
Definido,
Que tudo – mas mesmo tudo –
Se altera,
Independentemente da nossa
Vontade.
Mas se tudo é
Relativo
Também o é este
Poema;
Se nada há definido
Também me altero
E nego tudo
Que acabei de escrever.
Que tudo é, de certa forma,
Relativo;
Que não há nada de concreto,
A que nos possamos
Agarrar.
É terrível sentir
Que nada é, na sua essência,
Definido,
Que tudo – mas mesmo tudo –
Se altera,
Independentemente da nossa
Vontade.
Mas se tudo é
Relativo
Também o é este
Poema;
Se nada há definido
Também me altero
E nego tudo
Que acabei de escrever.
E continuas?
E continuas à espera que o Infinito caia de um postigo adormecido?
Tento. Só assim espero.
Anónimo, Séc. XXII
Tento. Só assim espero.
Anónimo, Séc. XXII
Nem sequer...
Nem sequer sabes voar. Porque teimas em olhar as estrelas como iguais?
Teimosia. Sonho.
Anónimo, Séc. XXII
Teimosia. Sonho.
Anónimo, Séc. XXII
POEMA do DIA
E agora aqui estou sobre esta página
em pousio de Sol, à espera da Palavra
que desperte a tarde e acenda o lume
dos afectos ausente.
Longas são as sílabas deste exílio,
deste longo inverno lusitano
de ânforas vazias, estrelas apagadas
sobre o charco dos dias.
Tenho a alma dorida como o vento
quando rasga a sombra do seu corpo:
remorso de partir e não chegar
onde meus versos me chamam.
ANTÓNIO ARNAUT
As Sílabas Deste Exílio, Foro das Letras 9/10
em pousio de Sol, à espera da Palavra
que desperte a tarde e acenda o lume
dos afectos ausente.
Longas são as sílabas deste exílio,
deste longo inverno lusitano
de ânforas vazias, estrelas apagadas
sobre o charco dos dias.
Tenho a alma dorida como o vento
quando rasga a sombra do seu corpo:
remorso de partir e não chegar
onde meus versos me chamam.
ANTÓNIO ARNAUT
As Sílabas Deste Exílio, Foro das Letras 9/10
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Posso até...
Posso até isentar-me do poder da morte. É verdade que não consigo afastar a ideia que ela se me cola constantemente aos calcanhares. Muito menos sou capaz de lhe negar realidade. Mas posso aniquilar a sua ameaça, evitando escorar a minha vida em pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória. - Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.
POEMA do DIA
Da granada deflagrada no meio
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
armada pelo meu silêncio,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)
melhor dirá o que aqui fica por dizer.
RUI KNOPFLI
O Preto no Branco, Mangas Verdes com Sal
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
armada pelo meu silêncio,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)
melhor dirá o que aqui fica por dizer.
RUI KNOPFLI
O Preto no Branco, Mangas Verdes com Sal
domingo, 27 de abril de 2008
Um amigo
Num daqueles dias de outono, em que nos queima a vermelha labareda das folhas, um amigo pedia que lhe contasse uma história. "Salva-me a vida, conta-me uma história". E eu recordei aquela mulher das Mil e Uma Noites, que encadeava, com doçura e desespero, uma história na outra, pois só a história infinita nos permite escapar à maldição da morte.
Um amigo é uma história que nos salva.- Mário Rui de Oliveira, O Vento da Noite
POEMA do DIA
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verdes claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…
EDMUNDO DE BETTENCOURT
Poema de Amor, Poemas de Edmundo de Bettencourt
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verdes claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…
EDMUNDO DE BETTENCOURT
Poema de Amor, Poemas de Edmundo de Bettencourt
sábado, 26 de abril de 2008
POEMA do DIA
Vejo esta grafia e o seu inexorável
nestas frias margens que por letras
partem à conquista de outras laudas:
as que aqui se erguem bem no centro
onde um planador – ou um avião de corda,
com as suas asas frágeis, vagarosas –
procura sobre a água um arco de platina,
procura entre as nuvens todo o azul
da absoluta liberdade, o caos possível.
Vejo o invisível (paradoxo, eu sei)
que escorre sobre o banco das viagens
ou dos arredores de tantos animais:
os de piscos lépidos, de cegonhas alçadas
nos outeiros ou de serpentes mágicas
que a memória transforma em pesadelos.
Também vejo o grafismo de quais dedos
navegam à deriva por lampejos
e sombras de outros corpos
- reais ou imaginários;
ou o dos lábios que vão no beiral
de outras línguas, de outro mosto,
de outra memória quente
que nos baste.
JOÃO RUI DE SOUSA
Grafismos, Fulgurações
nestas frias margens que por letras
partem à conquista de outras laudas:
as que aqui se erguem bem no centro
onde um planador – ou um avião de corda,
com as suas asas frágeis, vagarosas –
procura sobre a água um arco de platina,
procura entre as nuvens todo o azul
da absoluta liberdade, o caos possível.
Vejo o invisível (paradoxo, eu sei)
que escorre sobre o banco das viagens
ou dos arredores de tantos animais:
os de piscos lépidos, de cegonhas alçadas
nos outeiros ou de serpentes mágicas
que a memória transforma em pesadelos.
Também vejo o grafismo de quais dedos
navegam à deriva por lampejos
e sombras de outros corpos
- reais ou imaginários;
ou o dos lábios que vão no beiral
de outras línguas, de outro mosto,
de outra memória quente
que nos baste.
JOÃO RUI DE SOUSA
Grafismos, Fulgurações
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Liberté
Sur mes cahiers d'ecolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orange
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom
Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom
Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunies
J'écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écri ton nom
Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir san souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour connaître
Pour te nommer
Liberté.
PAUL ÉLUARD (1895-1952)
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orange
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom
Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom
Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunies
J'écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écri ton nom
Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir san souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour connaître
Pour te nommer
Liberté.
PAUL ÉLUARD (1895-1952)
POEMA DO FERIADO
Primeiro as árvores cobri-
ram-se de folhas depois
de pássaros e depois de
homens.
JORGE SOUSA BRAGA
Uma Fotografia do 25 de Abril, Porto de Abrigo
ram-se de folhas depois
de pássaros e depois de
homens.
JORGE SOUSA BRAGA
Uma Fotografia do 25 de Abril, Porto de Abrigo
POEMA do DIA
Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós… Também nós… E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
Sepultos, insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.
MIGUEL TORGA
Flor da Liberdade, Orfeu Rebelde
Também nós… Também nós… E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
Sepultos, insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.
MIGUEL TORGA
Flor da Liberdade, Orfeu Rebelde
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Dulcineia vê o mundo nos dois homens
Há muito a luz do sol partira, havia largado os vales, os ermos da Andaluzia
Dulce olhava-os numa ternura mansa, sem saber se por gosto se em desgosto
O Capitão, Mestre, grande valente Quixote, sempre em prontidão e composto
O bonacheirão, redondo, prático, de encosto numas ripas, julgava-o que sorria
O sono tardava-lhe, e reparava naqueles dois como se no mundo
Cada qual a confundir-se entre real da vida e sonho da realidade
Um imaginando as quimeras das conquistas no dormir profundo
Outro roncado leve, e deixando, parecia-lhe, o sonho por metade
Ouvira às almas destemperadas da taberna, atrás num outro dia
Quando comentavam tudo o que a carne do tempo lhes ensinou
Que um bom homem era um homem forte e bêbado de fantasia
Com algum troco, é certo, mas sem uma cabeça que tresmalhou
E pensava se, em hora bera, poderia ser audaz num para tanto
De trocar o estilo, a elegância nobre de uma armadura luzidia
Por um fogacho trôpego de volúpia, num passageiro enquanto
Só para confirmar em si aquela dita inaudita lembrada alegria
É uma mulher sempre – sempre – o quem que escolhe!
Certificou-se, ao jeito firme duma irrecorrível sentença
É ela quem reparte, ela quem aparte, só assim os acolhe
Passando a ser sua, mais que ser a deles, toda a pertença
Mas no seu sim escolhe mesmo ou vai no arrasto do acaso?
Dulcineia duvidou-se, ao jeito duma substituível conclusão
Querendo perguntar-se se, em quaisquer casos, faz de caso
A mera hipótese de dizer sim aqui, e logo ali dizer que não
A noite já os devolvia, os firmes escuros em troca de sombra
O sono, teimoso, teimava em chegar-se-lhe lento, a destempo
O Mestre aprumou dum vagueio que lhe picou no pensamento
O escudeiro, sentindo o Capitão, revirou-se na enxerga romba
Pensamentos da noite…, que só a risonha aurora corrige
Mas há é que largar amarraras e atacar veloz os moinhos
Assim longe voarão com as aves as ideias em torvelinhos
E sossegará qualquer frouxo coração que em vão se aflige
Dulcineia viu erguer-se o nobre Sancho, bojudo e pisco
Acolitando seu Capitão, já em severo e honrado aprumo
E de olhos lavados em luz manhã, salvou-se desse risco
De confundir o lume do coração com o seu próprio fumo
Dulce olhava-os numa ternura mansa, sem saber se por gosto se em desgosto
O Capitão, Mestre, grande valente Quixote, sempre em prontidão e composto
O bonacheirão, redondo, prático, de encosto numas ripas, julgava-o que sorria
O sono tardava-lhe, e reparava naqueles dois como se no mundo
Cada qual a confundir-se entre real da vida e sonho da realidade
Um imaginando as quimeras das conquistas no dormir profundo
Outro roncado leve, e deixando, parecia-lhe, o sonho por metade
Ouvira às almas destemperadas da taberna, atrás num outro dia
Quando comentavam tudo o que a carne do tempo lhes ensinou
Que um bom homem era um homem forte e bêbado de fantasia
Com algum troco, é certo, mas sem uma cabeça que tresmalhou
E pensava se, em hora bera, poderia ser audaz num para tanto
De trocar o estilo, a elegância nobre de uma armadura luzidia
Por um fogacho trôpego de volúpia, num passageiro enquanto
Só para confirmar em si aquela dita inaudita lembrada alegria
É uma mulher sempre – sempre – o quem que escolhe!
Certificou-se, ao jeito firme duma irrecorrível sentença
É ela quem reparte, ela quem aparte, só assim os acolhe
Passando a ser sua, mais que ser a deles, toda a pertença
Mas no seu sim escolhe mesmo ou vai no arrasto do acaso?
Dulcineia duvidou-se, ao jeito duma substituível conclusão
Querendo perguntar-se se, em quaisquer casos, faz de caso
A mera hipótese de dizer sim aqui, e logo ali dizer que não
A noite já os devolvia, os firmes escuros em troca de sombra
O sono, teimoso, teimava em chegar-se-lhe lento, a destempo
O Mestre aprumou dum vagueio que lhe picou no pensamento
O escudeiro, sentindo o Capitão, revirou-se na enxerga romba
Pensamentos da noite…, que só a risonha aurora corrige
Mas há é que largar amarraras e atacar veloz os moinhos
Assim longe voarão com as aves as ideias em torvelinhos
E sossegará qualquer frouxo coração que em vão se aflige
Dulcineia viu erguer-se o nobre Sancho, bojudo e pisco
Acolitando seu Capitão, já em severo e honrado aprumo
E de olhos lavados em luz manhã, salvou-se desse risco
De confundir o lume do coração com o seu próprio fumo
Apesar
apesar de todos os problemas
da lentidão
da irritação
existem sempre alguns poemas
desligo e volto a ligar
aguardo pacientemente
que algo se torne imanente
até conseguir acordar
da lentidão
da irritação
existem sempre alguns poemas
desligo e volto a ligar
aguardo pacientemente
que algo se torne imanente
até conseguir acordar
POEMA do DIA
Escrever assim…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
entender
o delgado, esfiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…
Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.
Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…
Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
Vestidos de verão,
leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também o que receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos
fala-me do corpo,
engana-me…
Mas também me diz,
tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.
Ai que podem os vestidos,
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas.
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todos o pior,
é esperar,
sempre esperar.
IRENE LISBOA
Outro Dia, Um dia e outro dia…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
entender
o delgado, esfiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…
Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.
Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…
Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
Vestidos de verão,
leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também o que receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos
fala-me do corpo,
engana-me…
Mas também me diz,
tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.
Ai que podem os vestidos,
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas.
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todos o pior,
é esperar,
sempre esperar.
IRENE LISBOA
Outro Dia, Um dia e outro dia…
quarta-feira, 23 de abril de 2008
POEMA do DIA
Queria a brisa
outra vez nos teus cabelos
Os olhos queria vê-los
outra vez fechados
nas dunas sob a luz limpa
de Junho cheio de barcos
Queria a tarde
outra vez no teu colar
Os lábios queria mordê-los
outra vez assim de mar
nas dunas sob a luz lenta
do poema tranquilo
Queria a névoa
outra vez no teu vestido
O corpo queria senti-lo
outra vez assim tão nu
Queria a brisa
outra vez nos teus cabelos
Quem mudou
fui eu ou foste tu
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
Queria a Brisa, Repórter do Coração
outra vez nos teus cabelos
Os olhos queria vê-los
outra vez fechados
nas dunas sob a luz limpa
de Junho cheio de barcos
Queria a tarde
outra vez no teu colar
Os lábios queria mordê-los
outra vez assim de mar
nas dunas sob a luz lenta
do poema tranquilo
Queria a névoa
outra vez no teu vestido
O corpo queria senti-lo
outra vez assim tão nu
Queria a brisa
outra vez nos teus cabelos
Quem mudou
fui eu ou foste tu
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
Queria a Brisa, Repórter do Coração
Insight
Credits: Wallpaper
D. art, de-art = Design Art
De-art may be the best concept expression to describe the way how design de-composes and merges with art, re-presenting it in a whole new trendy, fashionable and fresh look.
Uma ideia escrita também, em traços suaves, numa mesa da esplanada.
terça-feira, 22 de abril de 2008
POEMA do DIA
Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirenéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
É a casa do mundo:
desaparece em seguida.
LUIZA NETO JORGE
A Casa do Mundo, O Seu a Seu Tempo
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirenéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
É a casa do mundo:
desaparece em seguida.
LUIZA NETO JORGE
A Casa do Mundo, O Seu a Seu Tempo
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Catita Pastry shoppar, avsluta. Das Ende
(La nuit a été chaud. La noche estaba ayer al arder. It was a hot night, of dreams.
Era una notte completa dei sogni. Così bella)
Naquele dia, quando o dia abriu as persianas da aurora, trazia um inesperado riso de criança e salpicava as janelas de Abril com a luz em pingos. Predilecta cuidou-se ainda a sonhar, quando o espelho lhe devolveu um olhar diferente. Não se quis querer, mas aceitou de dádiva, e penteou os cabelos negros, a única coisa que parecia manter a cor.
Desceu a Rua do Salitre a cumprimentar os restos da revista e foi-se embrenhando na algazarra. Junto ao Carmo, já as pessoas faziam de pássaro nos varões das árvores. Acha, mais de trinta anos depois, que foi aquele olhar rabino do camuflado o que lhe traduziu o sonho. Trocou com ele um olhar igual.
Quando viu o engenheiro Calisto nos fundos da outra rua, o pedaço dele que da multidão sobrava, Rosarinha tinha já trocado o receio pela alegria. O senhor Calisto enviou-lhe um beijo que, saltitando as cabeças da multidão, se lhe pegou na réstia alva que os negros cortinados de cabelo abriam.
Também o engenheiro se tinha compreendido.
Há dias, a sua filha Vitória conheceu o rapaz do engenheiro.
POEMA do DIA
Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.
Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só de fulguração
do seu olhar. Dourado.
Música, música, música e a explosão de cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjugação com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
Gôngora empalidece, como os grifos,
Agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada –
ANA LUÍSA AMARAL
O excesso mais perfeito, Às Vezes o Paraíso
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.
Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só de fulguração
do seu olhar. Dourado.
Música, música, música e a explosão de cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjugação com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
Gôngora empalidece, como os grifos,
Agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada –
ANA LUÍSA AMARAL
O excesso mais perfeito, Às Vezes o Paraíso
domingo, 20 de abril de 2008
Boa noite, cidade
Invento uma insónia nova
para o corpo desabrigado.
Obrigo-me à prova
de alertar a cada trinta minutos.
Puxo o adereço que me aperta o pescoço
e, antes de sufocar, tresmalho
em relâmpagos de vida.
Na partida,
ergo-me e vagueio
quinze minutos
pelo corredor profundo,
antes de espetar a caneta no papel branco
e redigir mais um diálogo
de surdos.
Sei que elas não me compreendem.
Sonham, de quando em vez.
Se acordam,
cuidam-se prenhes de razão.
Ora, ora…
É tempo de esconder as persianas,
de encobrir as gelosias.
Tempo de inventar dúvidas.
Entre mim e eu, será um poema
a separação?
Ou um embuste?
A carga de uma perplexidade
ou um anjo de glória?
Haverá distâncias
na perplexidade que nos toca?
Ou só inventamos pertenças alheias?
O que somos:
Uma castidade de ânsias
ou uma devassidão de promessas pias?
Boa noite, cidade.
Entrego-me à cama sem
absoluta esperança de dormir como justo.
Reconforto-me na tentativa.
Amanhã, deu lo queira,
o sol recompensará os audazes.
Saborearemos um, sempre diferente,
brilho igual.
Boa noite, cidade.
e. u. m., Poemas Impublicáveis
para o corpo desabrigado.
Obrigo-me à prova
de alertar a cada trinta minutos.
Puxo o adereço que me aperta o pescoço
e, antes de sufocar, tresmalho
em relâmpagos de vida.
Na partida,
ergo-me e vagueio
quinze minutos
pelo corredor profundo,
antes de espetar a caneta no papel branco
e redigir mais um diálogo
de surdos.
Sei que elas não me compreendem.
Sonham, de quando em vez.
Se acordam,
cuidam-se prenhes de razão.
Ora, ora…
É tempo de esconder as persianas,
de encobrir as gelosias.
Tempo de inventar dúvidas.
Entre mim e eu, será um poema
a separação?
Ou um embuste?
A carga de uma perplexidade
ou um anjo de glória?
Haverá distâncias
na perplexidade que nos toca?
Ou só inventamos pertenças alheias?
O que somos:
Uma castidade de ânsias
ou uma devassidão de promessas pias?
Boa noite, cidade.
Entrego-me à cama sem
absoluta esperança de dormir como justo.
Reconforto-me na tentativa.
Amanhã, deu lo queira,
o sol recompensará os audazes.
Saborearemos um, sempre diferente,
brilho igual.
Boa noite, cidade.
e. u. m., Poemas Impublicáveis
Sancho, suando e sonhando
Meu Capitão, é noite, e sonho alto
Ataca-me a lembrança do moinho.
Viro-me na enxerga em sobressalto
E não tenho das donzelas o carinho
Seria pedir muito a vós, ó Mestre
Que no sono, sem risco de apetite
Vossa bondade Dulcineia empreste
Só ao modo dum respeitoso convite
- Falas tonto e alto, Sancho, sem saberes
Esqueces os dislates que já eu te esqueci
Outro foras tu, bem mais valera morreres
Mas finjo-me surdo e que teu suor não vi
Sancho escondeu-se, parado, na amargura
De atentar assim contra a raiva do Capitão
E temeu que o sonho gritasse, a dada altura
O dulci nome que lhe atravessava o coração.
Ataca-me a lembrança do moinho.
Viro-me na enxerga em sobressalto
E não tenho das donzelas o carinho
Seria pedir muito a vós, ó Mestre
Que no sono, sem risco de apetite
Vossa bondade Dulcineia empreste
Só ao modo dum respeitoso convite
- Falas tonto e alto, Sancho, sem saberes
Esqueces os dislates que já eu te esqueci
Outro foras tu, bem mais valera morreres
Mas finjo-me surdo e que teu suor não vi
Sancho escondeu-se, parado, na amargura
De atentar assim contra a raiva do Capitão
E temeu que o sonho gritasse, a dada altura
O dulci nome que lhe atravessava o coração.
POEMA do DIA
O que foi atado
na terra
continua atado
no Céu
e o que foi desatado
na Terra
continua desatado
no Céu
(no Inferno
é ao contrário)
mas o que não chegou
a ser atado na Terra?
penso em ti
meu marido
não vivemos
no mesmo século
nem na mesma cidade
nunca nos cruzámos
porque não pudemos
procurámo-nos
um ao outro
lavados em lágrimas
a ver os outros
namorarem-se
às três pancadas
eu li o Yoga para grávidas
e o Vou ter um bebé
eram a ficção científica
que eu mais apreciava
não aceitei o bolo
em forma de coração
que os rapazes
dão às raparigas
no Tirol
até porque não mo deram
as nossas mãos
no escuro do cinema
e no escuro da noite
não eram para ser
partilhadas
imagino-te morto
cheio de sex-appeal
e eu viva
sem sex-appeal nenhum
um dia morro
como tu
a vida não era isto
nós sabíamos
no Céu há muitas moradas
(para nós um duplex certamente)
ADÍLIA LOPES
Dois Ciprestes, Florbela Espanca espanca
na terra
continua atado
no Céu
e o que foi desatado
na Terra
continua desatado
no Céu
(no Inferno
é ao contrário)
mas o que não chegou
a ser atado na Terra?
penso em ti
meu marido
não vivemos
no mesmo século
nem na mesma cidade
nunca nos cruzámos
porque não pudemos
procurámo-nos
um ao outro
lavados em lágrimas
a ver os outros
namorarem-se
às três pancadas
eu li o Yoga para grávidas
e o Vou ter um bebé
eram a ficção científica
que eu mais apreciava
não aceitei o bolo
em forma de coração
que os rapazes
dão às raparigas
no Tirol
até porque não mo deram
as nossas mãos
no escuro do cinema
e no escuro da noite
não eram para ser
partilhadas
imagino-te morto
cheio de sex-appeal
e eu viva
sem sex-appeal nenhum
um dia morro
como tu
a vida não era isto
nós sabíamos
no Céu há muitas moradas
(para nós um duplex certamente)
ADÍLIA LOPES
Dois Ciprestes, Florbela Espanca espanca
sábado, 19 de abril de 2008
Trocadilhos
POEMA do DIA
ninguém te sonha o oiro do cabelo
na tela da manhã à beira-rio
impúbere ninfazinha o tornozelo
mostrando por extremo desfastio.
doente um só poeta te veria
excelsa proibida a seu desejo
descalça caminhando em fantasia
por nuvens a encobrir o próprio pejo.
os sinos de Florença dobrariam
e quatro carpideiras ergueriam
ao toque dos varais o seu lamento.
ideia te tornavas afinal
deitada numa taça de cristal
espírito abraçado pelo vento.
TIAGO VEIGA
Laura,
Seis epitáfios de John A. Symonds, sumariando seis encontros florentinos
na tela da manhã à beira-rio
impúbere ninfazinha o tornozelo
mostrando por extremo desfastio.
doente um só poeta te veria
excelsa proibida a seu desejo
descalça caminhando em fantasia
por nuvens a encobrir o próprio pejo.
os sinos de Florença dobrariam
e quatro carpideiras ergueriam
ao toque dos varais o seu lamento.
ideia te tornavas afinal
deitada numa taça de cristal
espírito abraçado pelo vento.
TIAGO VEIGA
Laura,
Seis epitáfios de John A. Symonds, sumariando seis encontros florentinos
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Capitão Quixote
Capitão de guerras inteiras por vencer
Picador de esporas em brumas de mar
Deixa-me agora erguer, cantar e gritar
Que há glória ainda no intenso perder
Moinhos gigantes, fantasmas medonhos
Virgens e donzelas sempre a conquistar;
Confundias a vista no olhar dos sonhos,
E as vitórias perdidas no acto de sonhar
Caminhos longos das feras espadas
Suores e anseios, tudo em desalinho
E além do acto, das esperas amadas
Só nos alegrava continuar caminho.
Picador de esporas em brumas de mar
Deixa-me agora erguer, cantar e gritar
Que há glória ainda no intenso perder
Moinhos gigantes, fantasmas medonhos
Virgens e donzelas sempre a conquistar;
Confundias a vista no olhar dos sonhos,
E as vitórias perdidas no acto de sonhar
Caminhos longos das feras espadas
Suores e anseios, tudo em desalinho
E além do acto, das esperas amadas
Só nos alegrava continuar caminho.
O CAPTAIN my Captain!
O CAPTAIN my Captain! our fearful trip is done;
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills;
For you bouquets and ribbon’d wreaths—for you the shores a-crowding;
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head;
It is some dream that on the deck,
You’ve fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchor’d safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;
Exult, O shores, and ring, O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
Walt Whitman
Dedicado a Abraham Lincoln.
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills;
For you bouquets and ribbon’d wreaths—for you the shores a-crowding;
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head;
It is some dream that on the deck,
You’ve fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchor’d safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;
Exult, O shores, and ring, O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
Walt Whitman
Dedicado a Abraham Lincoln.
POEMA do DIA
Despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,
abandono. despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.
Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objectos fixos, em repouso,
os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS
De amor, O Medo do Inverno
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,
abandono. despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.
Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objectos fixos, em repouso,
os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS
De amor, O Medo do Inverno
quinta-feira, 17 de abril de 2008
sonho para um dia inteiro
É hora amor, levanta a neblina
Pinto de rosa as rosas do jardim
E volto à tarde a ler a tua sina,
Que sei ter uma linha só de mim
Depois, mais adiante, o Sol irá tombar
Ambos sabemos o caminho inventado
Dividimos as frescas delícias do jantar
E vamos subir ao leito em braço dado
Não estou a sonhar, mas que mais faz
Deixa que viva por ti um dia absorto
Só no olhar, vou mostrar-te ser capaz
De refazer (em mim) teu amor morto.
Pinto de rosa as rosas do jardim
E volto à tarde a ler a tua sina,
Que sei ter uma linha só de mim
Depois, mais adiante, o Sol irá tombar
Ambos sabemos o caminho inventado
Dividimos as frescas delícias do jantar
E vamos subir ao leito em braço dado
Não estou a sonhar, mas que mais faz
Deixa que viva por ti um dia absorto
Só no olhar, vou mostrar-te ser capaz
De refazer (em mim) teu amor morto.
POEMA do DIA
Falas muito
de silêncio, nos
teus livros, como
alguém que jejua
entregue a lautos
banquetes. É essa
a contradição do poema. Nasce
para a mudez, mas
como a música, respira
por sons.
INÊS LOURENÇO
Silêncio, Magma n.º 1 (2005)
de silêncio, nos
teus livros, como
alguém que jejua
entregue a lautos
banquetes. É essa
a contradição do poema. Nasce
para a mudez, mas
como a música, respira
por sons.
INÊS LOURENÇO
Silêncio, Magma n.º 1 (2005)
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Pastelaria Catita.9
Hoje pensa que terá sido o efeito explosivo da sonolência rancorosa, misturado à tília que bebera apressadamente. Ou talvez – sabe-se lá? – o rendilhado do ponto que saltou da revista de lavores para o entendimento e lhe intrincou os devaneios. O certo é que muito sonhou naquela noite. Não encontra melhor definição, embora, mais de trinta anos depois, saiba cada vez menos apartar as imagens do dia erguido das que se deitam connosco no leito e nos conduzem por mundos tão reais. Abraçara-se no engenheiro como uma trepadeira sôfrega e desenhara loucuras que nunca antes, mesmo a sonhar, havia sonhado. Foi a noite inteira de um tempo incontado.
Nos arrabaldes da Cruz Quebrada, o senhor Calisto deitara-se com semelhante ânsia e o destino permitiu-lhe que roubasse o sonho da predilecta. Sentia-se trepado de um enleio novo. Se a palavra fosse então permitida, um enleio (quase, quase) estonteante. Acordou revigorado de bem-quereres, como se houvesse uma flor nova no seu vasinho das escadas de serviço.
Nos arrabaldes da Cruz Quebrada, o senhor Calisto deitara-se com semelhante ânsia e o destino permitiu-lhe que roubasse o sonho da predilecta. Sentia-se trepado de um enleio novo. Se a palavra fosse então permitida, um enleio (quase, quase) estonteante. Acordou revigorado de bem-quereres, como se houvesse uma flor nova no seu vasinho das escadas de serviço.
Anna's Book
Na sequência de Senhor Deus, esta é a Ana, fica aqui O LIVRO DE ANA. Como nele se esclarece, “Para a Ana, Deus não vive nas igrejas. A sua presença pode ser descoberta em bilhetes de eléctrico, na relva, na sujidade das mãos e até microscópicas partículas de pó. E todas estas coisas são belas, porque nelas se pode sentir Deus”.
“As pessoas na igreja são infelizes porque elas cantam cantigas infelizes e dizem orações infelizes e as pessoas fazem o Senhor Deus um grande tirano e ele não é um grande tirano porque ele é engraçado e ama as pessoas e é amável e forte. Se olharem para o Fynn, é como olharem para o senhor Deus só que o Fynn é como se fosse Deus ainda bebé e o Senhor Deus é cem vezes maior, e assim podemos saber como o Senhor Deus é bom.(…)
O Senhor Deus é como um lápis, mas não como um lápis que se pode ver, e sim como um lápis que não se pode ver e então nós não vemos que forma é mas ele é capaz de desenhar todas as formas que existem e é assim que é o Senhor Deus. Quando crescemos acontece uma coisa curiosa porque queremos que o Senhor Deus tenha uma forma própria como um velho com suíças e rugas na cara mas o Senhor Deus não é nada assim.”
FYNN, O Livro de Ana (Ann’s Book), Editorial Presença, 1991
“As pessoas na igreja são infelizes porque elas cantam cantigas infelizes e dizem orações infelizes e as pessoas fazem o Senhor Deus um grande tirano e ele não é um grande tirano porque ele é engraçado e ama as pessoas e é amável e forte. Se olharem para o Fynn, é como olharem para o senhor Deus só que o Fynn é como se fosse Deus ainda bebé e o Senhor Deus é cem vezes maior, e assim podemos saber como o Senhor Deus é bom.(…)
O Senhor Deus é como um lápis, mas não como um lápis que se pode ver, e sim como um lápis que não se pode ver e então nós não vemos que forma é mas ele é capaz de desenhar todas as formas que existem e é assim que é o Senhor Deus. Quando crescemos acontece uma coisa curiosa porque queremos que o Senhor Deus tenha uma forma própria como um velho com suíças e rugas na cara mas o Senhor Deus não é nada assim.”
FYNN, O Livro de Ana (Ann’s Book), Editorial Presença, 1991
O Rei dos Álamos
Sem querer exagerar na poesia, mas vindo à lembrança o livro de Michel Tournier, aqui fica, na tradução de Eugénio de Castro, o belíssimo poema de Goethe:
Quem cavalga tão tarde, ao vento e pela treva?
O cavaleiro é um pai, p’lo filho acompanhado,
Pai que, nos braços seus, o seu filhinho leva,
Cingindo-o muito, a fim de o ter agasalhado.
- Porque escondes, meu filho, essa carinha, tanto?
- Dos álamos, o Rei, meu pai, não o vês?
Não o vês tu, meu pai, coroado e com manto?
- Enganas-te da bruma, alguns flocos talvez.
Vem comigo, meu lindo! Ah, vem comigo! Vens!
Contigo jogarei jogos bem divertidos;
Muitas garridas flor’s nas minhas ribas tens,
Minha mãe tem para ti áureos vestidos.
- Aos teus ouvidos, pai, dize-me cá, não chega
Tudo aquilo que o Rei me promete baixinho?
- Não te inquietes, meu filho, ó meu filho sossega:
Co’as flores secas anda o vento em murmurinho.
- Vê lá, se a vir comigo, ó lindo, te abalanças!
Tenho filhas que bem te saberão tratar,
Minhas filhas, verás! Dançam nocturnas danças
E assim te embalarão, a dançar e a cantar.
- O teu olhar, meu pai, ainda não devassa
Das princesas o grupo, além, na escuridão?
- Filho, filho, bem vejo o que em torno se passa
Só os salgueiros vês, que entre as névoas estão.
- Gosto muito de ti, dessa linda figura,
Não resistas, senão a força empregarei.
- Meu pai, o rei prendeu-me agora com a mão dura!
Ai! Quanto me magoou dos álamos o Rei!
O pai, todo a tremer, apressura a montada,
Todo abraçado ao seu queixoso pequenino,
Depois de apuros tais, chega à sua morada,
Porém nos braços seus vai já morto o menino.
Quem cavalga tão tarde, ao vento e pela treva?
O cavaleiro é um pai, p’lo filho acompanhado,
Pai que, nos braços seus, o seu filhinho leva,
Cingindo-o muito, a fim de o ter agasalhado.
- Porque escondes, meu filho, essa carinha, tanto?
- Dos álamos, o Rei, meu pai, não o vês?
Não o vês tu, meu pai, coroado e com manto?
- Enganas-te da bruma, alguns flocos talvez.
Vem comigo, meu lindo! Ah, vem comigo! Vens!
Contigo jogarei jogos bem divertidos;
Muitas garridas flor’s nas minhas ribas tens,
Minha mãe tem para ti áureos vestidos.
- Aos teus ouvidos, pai, dize-me cá, não chega
Tudo aquilo que o Rei me promete baixinho?
- Não te inquietes, meu filho, ó meu filho sossega:
Co’as flores secas anda o vento em murmurinho.
- Vê lá, se a vir comigo, ó lindo, te abalanças!
Tenho filhas que bem te saberão tratar,
Minhas filhas, verás! Dançam nocturnas danças
E assim te embalarão, a dançar e a cantar.
- O teu olhar, meu pai, ainda não devassa
Das princesas o grupo, além, na escuridão?
- Filho, filho, bem vejo o que em torno se passa
Só os salgueiros vês, que entre as névoas estão.
- Gosto muito de ti, dessa linda figura,
Não resistas, senão a força empregarei.
- Meu pai, o rei prendeu-me agora com a mão dura!
Ai! Quanto me magoou dos álamos o Rei!
O pai, todo a tremer, apressura a montada,
Todo abraçado ao seu queixoso pequenino,
Depois de apuros tais, chega à sua morada,
Porém nos braços seus vai já morto o menino.
POEMA do DIA
Não me acuses musa de preguiça
Ou se a palavra rala enguiça
Na rima crassa funicular
Do verbo à toa vindo
Respirar -
À tona zoa zaragatoa
Ou em tom de loa em liça
Aparo de garganta em risco
De triste arado no canto atado -
Sopra, musa, delicada,
Diz, desatinada,
O que vens dizer, assim,
Sem erros, devagar,
Devagarinho, sem gritar,
Não vá o vaso quebrar.
JORGE FAZENDA LOURENÇO
20010121, Magma n.º 1(2005)
Ou se a palavra rala enguiça
Na rima crassa funicular
Do verbo à toa vindo
Respirar -
À tona zoa zaragatoa
Ou em tom de loa em liça
Aparo de garganta em risco
De triste arado no canto atado -
Sopra, musa, delicada,
Diz, desatinada,
O que vens dizer, assim,
Sem erros, devagar,
Devagarinho, sem gritar,
Não vá o vaso quebrar.
JORGE FAZENDA LOURENÇO
20010121, Magma n.º 1(2005)
terça-feira, 15 de abril de 2008
Poem
Ah, listen now,
Each breath more temperate, more kind,
More close to death.
Sleep on
And listen to these words
Faintly, and with a tentative alarm,
Refuse to waken you.
Ian Hamilton, Fifty Poems
Each breath more temperate, more kind,
More close to death.
Sleep on
And listen to these words
Faintly, and with a tentative alarm,
Refuse to waken you.
Ian Hamilton, Fifty Poems
He wishes for the Cloths of Heaven
Had I the heavens' embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread upon my dreams.
W.B. Yeats
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread upon my dreams.
W.B. Yeats
THEORY
I am what is around me.
Women understand this.
One is not duchess
A hundred yards from a carriage.
These, then are portraits:
A black vestibule;
A high bed sheltered by curtains.
These are merely instances.
Wallace Stevens
Women understand this.
One is not duchess
A hundred yards from a carriage.
These, then are portraits:
A black vestibule;
A high bed sheltered by curtains.
These are merely instances.
Wallace Stevens
VOLVER
Mi recuerdo eran imágenes,
en el instante, de ti:
esa expresión y un matriz
de los ojos, algo suave
en la inflexión de tu voz,
y tus bostezos furtivos
de lebrel que ha maldormido
la noche en mi habitación.
Volver, passados los años,
hacia la felicidad
- para verse y recordar
que yo también he cambiado
Jaime Gil de Biedma, Moralidades
en el instante, de ti:
esa expresión y un matriz
de los ojos, algo suave
en la inflexión de tu voz,
y tus bostezos furtivos
de lebrel que ha maldormido
la noche en mi habitación.
Volver, passados los años,
hacia la felicidad
- para verse y recordar
que yo también he cambiado
Jaime Gil de Biedma, Moralidades
THE GRAVE OF SHELLEY
IKE burnt-out torches by a sick man's bed
Gaunt cypress-trees stand round the sun-bleached stone;
Here doth the little night-owl make her throne,
And the slight lizard show his jewelled head.
And, where the chaliced poppies flame to red,
In the still chamber of yon pyramid
Surely some Old-World Sphinx lurks darkly hid,
Grim warder of this pleasaunce of the dead.
Ah! sweet indeed to rest within the womb
Of Earth, great mother of eternal sleep,
But sweeter far for thee a restless tomb
In the blue cavern of an echoing deep,
Or where the tall ships founder in the gloom
Against the rocks of some wave-shattered steep.
by: Oscar Wilde
Gaunt cypress-trees stand round the sun-bleached stone;
Here doth the little night-owl make her throne,
And the slight lizard show his jewelled head.
And, where the chaliced poppies flame to red,
In the still chamber of yon pyramid
Surely some Old-World Sphinx lurks darkly hid,
Grim warder of this pleasaunce of the dead.
Ah! sweet indeed to rest within the womb
Of Earth, great mother of eternal sleep,
But sweeter far for thee a restless tomb
In the blue cavern of an echoing deep,
Or where the tall ships founder in the gloom
Against the rocks of some wave-shattered steep.
by: Oscar Wilde
Cemetry Gates
A dreaded sunny day
So I meet you at the cemetry gates
Keats and Yeats are on your side
A dreaded sunny day
So I meet you at the cemetry gates
Keats and Yeats are on your side
While Wilde is on mine
So we go inside and we gravely read the stones
All those people, all those lives
Where are they now?
With loves, and hates
And passions just like mine
They were born
And then they lived
And then they died
It seems so unfair
I want to cry
You say : "'Ere thrice the sun done salutation to the dawn"
And you claim these words as your own
But I've read well, and I've heard them said
A hundred times (maybe less, maybe more)
If you must write prose/poems
The words you use should be your own
Don't plagiarise or take "on loan"
'Cause there's always someone, somewhere
With a big nose, who knows
And who trips you up and laughs
When you fall
Who'll trip you up and laugh
When you fall
You say : "'Ere long done do does did"
Words which could only be your own
And then produce the text
From whence was ripped
(Some dizzy whore, 1804)
A dreaded sunny day
So let's go where we're happy
And I meet you at the cemetry gates
Oh, Keats and Yeats are on your side
A dreaded sunny day
So let's go where we're wanted
And I meet you at the cemetry gates
Keats and Yeats are on your side
But you lose
'Cause Wilde is on mine
(Sure!)
Morrissey
So I meet you at the cemetry gates
Keats and Yeats are on your side
A dreaded sunny day
So I meet you at the cemetry gates
Keats and Yeats are on your side
While Wilde is on mine
So we go inside and we gravely read the stones
All those people, all those lives
Where are they now?
With loves, and hates
And passions just like mine
They were born
And then they lived
And then they died
It seems so unfair
I want to cry
You say : "'Ere thrice the sun done salutation to the dawn"
And you claim these words as your own
But I've read well, and I've heard them said
A hundred times (maybe less, maybe more)
If you must write prose/poems
The words you use should be your own
Don't plagiarise or take "on loan"
'Cause there's always someone, somewhere
With a big nose, who knows
And who trips you up and laughs
When you fall
Who'll trip you up and laugh
When you fall
You say : "'Ere long done do does did"
Words which could only be your own
And then produce the text
From whence was ripped
(Some dizzy whore, 1804)
A dreaded sunny day
So let's go where we're happy
And I meet you at the cemetry gates
Oh, Keats and Yeats are on your side
A dreaded sunny day
So let's go where we're wanted
And I meet you at the cemetry gates
Keats and Yeats are on your side
But you lose
'Cause Wilde is on mine
(Sure!)
Morrissey
POEMA do DIA
E mesmo que me mostres, da rosa
a cabeça entontecida, do vinho,
o delírio, o passo vacilante, do fogo,
a fúria, a intrepidez e me ensines
como se barra esse poder ilimitado
E que, pela carne me chamem a vastidão
da terra e a truculência do mundo
O meu caminho é para trás e conduz-te
para o fundo onde o ventre da impaciente
Rainha nos espera
MARIA ANDRESEN
A "Menina do Mar", Livro das Passagens
a cabeça entontecida, do vinho,
o delírio, o passo vacilante, do fogo,
a fúria, a intrepidez e me ensines
como se barra esse poder ilimitado
E que, pela carne me chamem a vastidão
da terra e a truculência do mundo
O meu caminho é para trás e conduz-te
para o fundo onde o ventre da impaciente
Rainha nos espera
MARIA ANDRESEN
A "Menina do Mar", Livro das Passagens
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Puro Vintage II
Contra a folha de papel azul, sempre escolhida para coisas sérias, os caracteres iam sendo impressos, ao som ocluso que o batimento das teclas provocava. Ao chegar ao fim da linha, previamente marginada, um sinal sonoro estridente marcava a obrigação de "dar à alavanca" - uma rude tecla "Enter", muito mais grave e que se impunha por si própria -, fazendo o cursor mecânico posicionar-se imediatamente mais abaixo. Um movimento do rolo, dois ou três espaçamentos e lá recomeçava.
"Em regime de compropriedade com seu irmão..." e outros termos que tais, por ali iam ficando, dando a vinte e cinco linhas, a estampilhas e a selos brancos, a sua essência e verdadeiro propósito.
E se nos tempos livres, a esforçada, mas douta e sábia matrona, proprietária daquela Remington - uma verdadeira maravilha da técnica -, pensava em dar-lhe uso para os prazeres de uma escrita mais livre, o certo é que o tempo lhe ia sempre faltando.
No meio de colinas, vales e montes - daqueles que ficam "a-Trás" de outros tantos, os chamados por esse mesmo nome -, antigos feudos e morgadios fraccionavam-se, vendiam-se e compravam-se.
O movimento e o volume de serviço naquele Cartório podiam não ser comparáveis aos de um outro qualquer, no Porto, ou mesmo em Lisboa, mas dava para que, todos os dias, o expediente viesse sempre a encontrar o seu termo a horas incertas.
E assim, na fita de duas cores - preto e vermelho -, maiúsculas e minúsculas letras formavam palavras que se queriam solenes.
No final de contas, frases como "Exercendo a sua posse, há mais de quinze, vinte, vinte e cinco, trinta anos...", davam a definitiva certeza àqueles que sempre tinham amanhado, com tributos de suor e sangue, os torrões de terra do seu sustento, confiando numa divina providência que lhes trouxesse apenas quatro estações, conformes aos dizeres e aos usos de anos desejavelmente sempre iguais, desde um tempo há muito ido, bem antigo.
Ao termo dessas folhas, aprovadas por uma qualquer portaria da Presidência do Conselho, a linha para a rubrica e assinaturas.
Nos rostos dos adquirentes, assim presumidos, porque presuntivos os seus actos, a certeza de que o "uso campeão" um maior sossego lhes traria - o que está escrito, escrito está, sempre se disse -, a certeza, essa, nascia num tímido, mas franco sorriso.
Tudo assinado conforme os termos, tudo conferido e tudo pago, mais um dia tinha passado.
Num gesto prático e mecânico, a Ilustre Notária puxava da tampa de rígido plástico e declarava encerrado mais um exercício daquela sua máquina de escrever.
Sempre prazerosa, sabia ter chegado ao fim de mais um dia com o dever cumprido. Ainda que já com a Lua bem alta.
Também numa Esplanada onde se apreciam os clássicos.
Photoshopianice da Mariana.
Açores
Com os lábios que seguiam no
corpo o desenho das veias
com as veias
que cruzam na carne os nervos
e músculos. Com a mão que
entre os lábios e os dentes
mordiam
aguardavas outra hora do
outro dia do mês outra
vida. Não ouves nem vês
os veios da ilha
a sombra da sua imagem. E
a ordem que te envia
uma parede um muro em ruínas
é o que de melhor encontras
para as tuas palavras -
a voz deste verso ninguém a
conhece.
João Miguel Fernandes Jorge, Um muro em ruínas
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