Há muito a luz do sol partira, havia largado os vales, os ermos da Andaluzia
Dulce olhava-os numa ternura mansa, sem saber se por gosto se em desgosto
O Capitão, Mestre, grande valente Quixote, sempre em prontidão e composto
O bonacheirão, redondo, prático, de encosto numas ripas, julgava-o que sorria
O sono tardava-lhe, e reparava naqueles dois como se no mundo
Cada qual a confundir-se entre real da vida e sonho da realidade
Um imaginando as quimeras das conquistas no dormir profundo
Outro roncado leve, e deixando, parecia-lhe, o sonho por metade
Ouvira às almas destemperadas da taberna, atrás num outro dia
Quando comentavam tudo o que a carne do tempo lhes ensinou
Que um bom homem era um homem forte e bêbado de fantasia
Com algum troco, é certo, mas sem uma cabeça que tresmalhou
E pensava se, em hora bera, poderia ser audaz num para tanto
De trocar o estilo, a elegância nobre de uma armadura luzidia
Por um fogacho trôpego de volúpia, num passageiro enquanto
Só para confirmar em si aquela dita inaudita lembrada alegria
É uma mulher sempre – sempre – o quem que escolhe!
Certificou-se, ao jeito firme duma irrecorrível sentença
É ela quem reparte, ela quem aparte, só assim os acolhe
Passando a ser sua, mais que ser a deles, toda a pertença
Mas no seu sim escolhe mesmo ou vai no arrasto do acaso?
Dulcineia duvidou-se, ao jeito duma substituível conclusão
Querendo perguntar-se se, em quaisquer casos, faz de caso
A mera hipótese de dizer sim aqui, e logo ali dizer que não
A noite já os devolvia, os firmes escuros em troca de sombra
O sono, teimoso, teimava em chegar-se-lhe lento, a destempo
O Mestre aprumou dum vagueio que lhe picou no pensamento
O escudeiro, sentindo o Capitão, revirou-se na enxerga romba
Pensamentos da noite…, que só a risonha aurora corrige
Mas há é que largar amarraras e atacar veloz os moinhos
Assim longe voarão com as aves as ideias em torvelinhos
E sossegará qualquer frouxo coração que em vão se aflige
Dulcineia viu erguer-se o nobre Sancho, bojudo e pisco
Acolitando seu Capitão, já em severo e honrado aprumo
E de olhos lavados em luz manhã, salvou-se desse risco
De confundir o lume do coração com o seu próprio fumo
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10 comentários:
Mas não haverá cavaleiro que trate da rapariga?
Antónia
Muito embora tenha dúvidas que a Dulcineia tivesse a noção daquilo que lhe atribui agora, é absolutamente certo que é a mulher o quem que sempre escolhe...
Deveria ter evitado o "cinzento" cinzentão da comparação com a sentença irrecorrível.
"Trova do vento que passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não."
Manuel Alegre, O Canto e as Armas
"É preciso saber por que se é triste
é preciso dizer esta tristeza
que nós calamos tantas vezes mas existe
tão inútil em nós tão portuguesa.
É preciso dizê-la é preciso despi-la
é preciso matá-la perguntando
porquê esta tristeza como e quando
e porquê tão submissa tão tranquila.
Esta tristeza que nos prende em sua teia
esta tristeza aranha esta negra tristeza
que não nos mata nem nos incendeia
antes em nós semeia esta vileza
e envenena ao nascer qualquer ideia.
É preciso matar esta tristeza."
Manuel Alegre, Praça da Canção, 1965
"A mulher escolhe sempre o homem que a escolhe a ela, como é da sabedoria das nações. A verdade também" !
Vergílio Ferreira
Tudo uma questão de "Trocadilhos"
"Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."
António Gedeão
Como diz o aforismo popular: "entre um e o outro venha o diabo e escolha"
Fica bem o aforismo popular. Quanto ao cinzento da irrecorrível, digo talvez, talvez. Dito de outro modo, digo que, não obstante a liberdade, não comento a própria escrita.
Como me encanta ver a bonomia dos homens amados
cada qual no seu jeito e maneira
como se fossem o trigo dos vales alados
e fosse eu a mão de sua ceifeira.
A responsabilidade que me resta é intensa
tenho que a disfarçar com a trova de amor
que me arrefece esses encantos de calor
e me faz voltar ao dever de quem pensa.
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