Contra a folha de papel azul, sempre escolhida para coisas sérias, os caracteres iam sendo impressos, ao som ocluso que o batimento das teclas provocava. Ao chegar ao fim da linha, previamente marginada, um sinal sonoro estridente marcava a obrigação de "dar à alavanca" - uma rude tecla "Enter", muito mais grave e que se impunha por si própria -, fazendo o cursor mecânico posicionar-se imediatamente mais abaixo. Um movimento do rolo, dois ou três espaçamentos e lá recomeçava.
"Em regime de compropriedade com seu irmão..." e outros termos que tais, por ali iam ficando, dando a vinte e cinco linhas, a estampilhas e a selos brancos, a sua essência e verdadeiro propósito.
E se nos tempos livres, a esforçada, mas douta e sábia matrona, proprietária daquela Remington - uma verdadeira maravilha da técnica -, pensava em dar-lhe uso para os prazeres de uma escrita mais livre, o certo é que o tempo lhe ia sempre faltando.
No meio de colinas, vales e montes - daqueles que ficam "a-Trás" de outros tantos, os chamados por esse mesmo nome -, antigos feudos e morgadios fraccionavam-se, vendiam-se e compravam-se.
O movimento e o volume de serviço naquele Cartório podiam não ser comparáveis aos de um outro qualquer, no Porto, ou mesmo em Lisboa, mas dava para que, todos os dias, o expediente viesse sempre a encontrar o seu termo a horas incertas.
E assim, na fita de duas cores - preto e vermelho -, maiúsculas e minúsculas letras formavam palavras que se queriam solenes.
No final de contas, frases como "Exercendo a sua posse, há mais de quinze, vinte, vinte e cinco, trinta anos...", davam a definitiva certeza àqueles que sempre tinham amanhado, com tributos de suor e sangue, os torrões de terra do seu sustento, confiando numa divina providência que lhes trouxesse apenas quatro estações, conformes aos dizeres e aos usos de anos desejavelmente sempre iguais, desde um tempo há muito ido, bem antigo.
Ao termo dessas folhas, aprovadas por uma qualquer portaria da Presidência do Conselho, a linha para a rubrica e assinaturas.
Nos rostos dos adquirentes, assim presumidos, porque presuntivos os seus actos, a certeza de que o "uso campeão" um maior sossego lhes traria - o que está escrito, escrito está, sempre se disse -, a certeza, essa, nascia num tímido, mas franco sorriso.
Tudo assinado conforme os termos, tudo conferido e tudo pago, mais um dia tinha passado.
Num gesto prático e mecânico, a Ilustre Notária puxava da tampa de rígido plástico e declarava encerrado mais um exercício daquela sua máquina de escrever.
Sempre prazerosa, sabia ter chegado ao fim de mais um dia com o dever cumprido. Ainda que já com a Lua bem alta.
Também numa Esplanada onde se apreciam os clássicos.
Photoshopianice da Mariana.
7 comentários:
Um texo muito bem aparado. A não precisar dos acrescentos do Musgo Real ou sequer de um talco.
Subtil!
Caro amigo, sempre em grande!
Um grande bem-haja a todos e em especial ao Amigo Paulo! Para breve, o making-off fotográfico de Puro Vintage II.
Ainda bem que não tem nada a ver com o Manuel.
"A hescritora ama as palavras, as frases, as letras, os parágrafos. Também sente um grande amor pela sua nova máquina de escrever, sobretudo porque lhe custou uma fortuna. Mas ela quis que fosse uma máquina alemã e isso tem um preço"
Cuca Canals, A Hescritora (Teorema)
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