sábado, 31 de dezembro de 2011

Si (como el griego afirma no Cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo na palavra Nilo.

Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible Nombre, que la esencia
Cifre de Dios y que la Omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.

(...)
J. L. Borges, El Golem

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

De tanto querer

Queria ser feliz mas nunca muito longe,
estar à mão de recomeçar o tempo
todo, por inteiro;
queria confundir a distância
no reflexo dos teus doces olhos
até perder os lábios no espanto,
lá nas primaveras onde as folhas
nascem para a morte
e uma cantata de Bach me acorda
duma tarde ocre;
queria ceifar os gestos poluídos
e só nos teus braços, nos teus
braços entregar os dias de sol
antes que a noite me carimbe
o vazio que (ainda) nos separa:
Queria

terça-feira, 18 de outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Noctívagos

Nas primeiras vezes que descia no meu corpo e degustava o meu desejo ela dizia que só a pessoas muito especiais fazia certo tipo de coisas, mas todos os noctívagos sabiam que isso não era assim e muitos deles partilhavam o saber velado em silêncios solidários.
No entanto, aquelas palavras, muito embora fossem falsas e eu tivesse a plena consciência disso, aqueciam-me a alma como a boca dela me aquecia o corpo…

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Agora...

agora que cai a neve no calor da noite
deixo que os olhos fechem o som do tempo
e revolto-me com a escuta dos silêncios
à procura das palavras mortas, de sílabas
escondidas entre andaimes
que livrem o medo do fim. porque
só a desmesura liberta, nesse
arrepio de laços que revolta a incongruência
num beijo sem lábios, num abraço sem braços
na inocente verdade do falso.

andam pela noite
percorrendo as pétalas
sobradas dum dia inteiro
quente e inquieto
e não há lençóis
que aguentem
o peso do linho

domingo, 25 de setembro de 2011

domingo, 4 de setembro de 2011

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Ossos...

Mesmo sem preço,
compra-me
os restos que deixaste
do corpo que era eu;
e podes construir um espantalho,
avisando os pássaros;
que não debiquem o destino:
há sempre um osso
na carne do coração.

02/2009

Adamastor



Versão digital
Técnica mista sobre Papel
210mm x 297mm

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Entre a chuva miúda que endiabra o verão
Saio de mansinho desse coração.
Lá fora há sempre outro caminho
Aqui - quem sabe - talvez não.

terça-feira, 16 de agosto de 2011


Quando a pele
se torna evasiva

e está e não está
ali, escancara-se

uma janela nos poros
da alma: assoma e

grita à tua vontade!

Rui Caeiro, O quarto azul e outros poemas

E quando a noite cai sentam-se à varanda dos desejos inquietos, esperando que o vento regresse das lembranças com que, nos idos de catraios, suportavam os dias seguintes.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Acercam-se as sombras,
tão longe despenha-se o sol, algures no mar.

As casas são baixas, alinhadas em declive,
os telhados oblíquos,
os pátios circulares, em repouso a esta hora.

Vastas são as vinhas e os terraços,
vastas as vagas de um mar próximo, as pegadas
na praia agora deserta,
recolhidos os remos e as redes,
recolhida a minha vida.

Nada espero senão esta hora já lenta,
uma lua cheia de cio e aflições,
o regresso dos homens e dos cães, a treva.

Que cheguem.

José Agostinho Baptista, Morrer no Sul

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

The Heinrich Maneuver

How are things on the west coast?
I hear you're moving real fine
You wear those shoes like a dove
Now strut those shoes we'll go roaming in the night
Well how are things on the west coast?
You keep it moving to your soul's delight
Now I've tried the brakes
I've tried but you know it's a lonely ride
How are things on the west coast?
Oh I'd move heaven behind those eyes

Today my heart swings
Yeah today my heart swings
But I don't want to take your heart
And I don't want a piece of history
No I don't want to read your thoughts anymore, my god
'cause today my heart swings
Yeah today my heart swings

How are things on the west coast?
Hear you're moving real fine tonight
You wear those shoes side to side
Ah, strut those shoes
We'll go roaming in the night
Well how are things on the west coast?
Yeah but you're an actress; I don't identify

Today my heart swings
Yeah today my heart swings, say it
But I don't want to play the part
And I don't want a taste of victory
No I don't want to read your thoughts anymore, my god
'cause today my heart swings
Yeah today my heart swings

Say it 'cause today my heart swings
Yeah today my heart swings

Let it come 'cause I've got a chance for a sweet sane life
I said I've got a dance and you'll do just fine
Well I've got a plan
look forward in my eyes
Let it come. Well I've got a chance for a sweet sane life
I said I've got a dance; it moves into the night
Well I've got a plan with forward in my eyes

But today my heart swings

Paul Banks

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sonâmbulos ditames arqueiam a tua história
e rasgam ao futuro o resto da memória
onde o tempo se escoa
em predilecções vazias
E afinal correm ao longo
dos espaços vazios
como se houvesse
um som de fundo
a percorrer as sobras
do desencanto
e as misérias
que sustentam a liberdade,
tão próxima do embaraço

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sobre o sentido infinito do instante


Corremos atrás das sombras sem olhamos a brisa que nos alerta; elas já vinham a seguir o vento. Perdemos os pés na busca do trajecto e olhamos a ignorância em modo de certeza.

Mas há sempre o caminho que nos leva de volta a Casa.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

multidão

Em cada olhar
há um folclore de gestos
antigos como memórias cinzentas
parados em dúvidas
de encruzilhadas d'esperas
como se uma bucólica respiração
fosse o princípio e o fim
o desarrumado rumo
dum acto inquieto.



Maior dia do ano a nascer...
O nascer do maior dia do ano

terça-feira, 21 de junho de 2011

Momentos #4

#4
O sorriso irrequieto e rasgado da rapariga ia aumentando à medida que João se aproximava; e também aqueles olhos castanhos, enormes, cada vez mais curiosos e divertidos com uma abordagem que, assim se via, era por demais evidente. A discrição, o «não dar barraca» pareciam ter sido, naquele momento, catalogados por João como vetustos e anacrónicos cânones.
«Olá, boa noite» - cumprimentou João.
«Olá» - disse, simplesmente, a miúda, ao mesmo tempo que mordiscava a palhinha por onde sorvia a sua bebida, incolor à vista, depositada no copo alto de plástico.
Será uma miúda de vodka, perguntava João a si mesmo. «Bela obra esta, não achas», inquiriu ele, pretendendo manter as suas intenções ocultas; quais em concreto, também ele não sabia muito bem... mas... seria mesmo ela a modelo da fotografia?
«É... acho que sim... Não percebo muito disto», respondeu-lhe a rapariga, desinteressadamente, enquanto desviava o olhar de João, contemplando, em profundidade e perspectiva, o resto da sala que se ia movendo ao som da house music e de conversas de circunstância entre os convidados.
A resposta dada provocou em João algum desalento. Se realmente ela é assim tão leiga nisto, não pode ser modelo, pensou; as modelos conviviam com os profissionais, iam aprendendo alguma coisa; quanto mais não fosse, alguns jargões decorados, por forma a manterem conversas que as deixassem bem vistas junto a grupos de pseudo-intelectuais com algum dinheiro para gastar em arte, ou, quando o não tinham, com tempo suficiente para escrever críticas que só eram lidas por pessoas parecidas.
Mesmo assim, João voltou à carga: «Mas, então, nesse caso, o que te traz a uma exposição de fotografia?»
A rapariga esboçou mais um daqueles rasgados sorrisos, demasiado parecido com o do retrato que pairava junto deles, naquele parede; «isso agora...», respondeu naquela voz rouca que começava a provocar bastante mais do que apenas um qualquer encanto puramente platónico.
E tais pulsões, João sabia-o bem, punham-no imediatamente na defensiva, numa postura em que a timidez voltava a denunciar-se e a falta de jeito era sinónimo de nó na garganta, boca seca e, por vezes, faces coradas.
E a miúda a divertir-se com isso, notou João, ficando cada vez mais nervoso.
Levando à boca o seu próprio copo, aproveitou para, pausadamente, decidir o que dizer em seguida. «Isso agora, não. Podemos conferir a guest list em conjunto, se quiseres» - porra! Já me lixei, pensou João, em pânico. No meio da vontade em dar uma resposta divertida àquela sugestão da rapariga, algo tinha ficado pelo caminho, sendo certo que o resultado final tinha sido desastroso, num tom de agressividade despropositada. «Como eu sou idiota, pá!», exclamou no seu interior.
Contudo, por incrível que pudesse parecer, a jovem mostrou-se ainda mais divertida... E de repente disse: «Então é a ti que tenho de agradecer pelas bebidas à borla? Parabéns, tens aqui uma bela festa. Aquela a que fui há duas semanas não foi tão boa».
«Deixa-me adivinhar», interrompeu João, «és uma penetra de festas!». O seu sorriso amarelo, após se ouvir a si próprio, não deixava entrever a sua verdadeira frustração. Sim senhor, João, tu hoje estás lançado, miúdo; cada tiro, cada melro.
A conversa, com tais atoardas, iria acabar logo ali.
Mas, uma vez mais, a rapariga não desarmou e retorquiu a rir-se: «Nem por isso, não... Digamos que tenho os meus conhecimentos».
Seria namorada de alguns dos convidados? João não queria contemplar tal hipótese. Ela era enigmática, sedutora demais, para que a noite acabasse abruptamente, no preciso instante em que algum sujeito bem vestido, idiota e pedante, lhe pusesse um braço à volta da cintura e dissesse «lá estás tu a falar com estranhos outra vez... vamos para casa que já é tarde?», virando costas com um piscar de olho de "chico-esperto".
João gostava de se deixar envolver na teia da sedução, do limiar de possibilidade de um sonho apaixonado mas, bastas vezes, vinha-lhe esse travo amargo da realidade. É natural que uma miúda destas namore, ou, até mesmo, seja já casada, pensava.
«Bem... vou andando...». Ao ouvi-la, João abandonou as suas lucubrações e uma sensação de pânico invadiu-lhe os sentidos.
«Não vás já!», disse de repente, «fica mais um bocado». A entoação dada roçava já a súplica mal disfarçada, apercebeu-se, envergonhado do seu declarado desespero.
«Não. Não pode ser. Estava a pensar em ir beber um copo ali mais abaixo e está a ficar tarde», respondeu a jovem, deixando transparecer alguma impaciência com as insistências de João.
«Então vamos os dois» - sugeriu ele.
Ela riu-se com tal sugestão, perguntando de seguida: «Mas o que te faz pensar que quero ir contigo». João sentiu o impacto de um soco invisível, mas certeiro, mesmo no centro do seu estômago.
Contudo, não se deu por achado: «Vieste à minha galeria. Estivemos este tempo todo a conversar; livraste-me de alguns convidados que são uma verdadeira seca. Deixa-me retribuir, pagando-te um copo no bar, ali, no fundo da rua. É para lá que vais, não é?»
Durante alguns segundos, pareceu-lhe que ela ponderava tal insólito convite, num puro esquema de «deve e haver». Por fim, disse: «Bem... Se é mesmo para irmos, preciso de saber o teu nome. Não costumo deixar que estranhos me paguem copos. Eu chamo-me Luísa... e tu?».
«Ah... Eu sou o João... muito prazer», respondeu, rindo-se nervosamente. «Vamos então?».
«Hmmmm... João... Certo... Vamos lá», o olhar divertido de Luísa tinha assumido agora certos e determinados traços que João ainda não conseguia decifrar.
Da outra ponta da galeria, Mané, que falava com o empresário de Jacinto Lopes, notou que João se dirigia para a saída. Este tipo é sempre a mesma coisa, pensou.
Desculpando-se ao sujeito que lhe contava animadamente algumas supostas peripécias da sua vida de empresário de artistas - contando na sua carteira com aquela banda punk que tinha roubado a bateria ao grupo de baile da aldeia -, Mané dirigiu-se para a porta. Tendo agarrado discretamente João por um braço, disse-lhe em sussurro: «É sempre isto, pá. Fico eu aqui a segurar o forte, não é? Enquanto o menino se diverte com os seus engates. João, não te esqueças que eu estou para me ir embora e...».
João interrompeu-o: «Mané, não é nada disso. Desta vez, o interesse é puramente profissional».
«Profissional, hein? Mas pensas que estás a enganar quem, pá?» - Mané começava a perder a paciência; «o único interesse que devias ter é no sucesso deste lançamento e não em marcar pontos com essa miúda... É gira e tudo isso, mas tu tens responsabilidades, pá. E eu não vou cá estar mais para te lembrar delas».
Luísa estava já do lado de fora da galeria, no passeio da rua, falando ao telemóvel. Tinha um certo ar carregado, notou João intrigado. «Mané, eu sei que não vou poder pedir-te mais nada na vida. Por isso, dá-me uma folga hoje. Quero tirar uma teima com que ando desde o início da noite... Melhor, desde o início da semana».
«Tu já andaste foi no scotch, não foi, João?» - perguntou Mané, naquele jeito de quem já se conformava com tais hábitos do sócio.
«Não é nada disso, pá!» - exclamou João, vendo Luísa a olhar para o relógio, enquanto esperava por ele, o telemóvel já na mochila. «Repara bem na fotografia que está naquele canto... Esta miúda é a tal modelo! Tenho a certeza!».
«Mas o que é que isso interessa???» - por vezes, Mané ficava farto das obsessões infantis de João.
«Manuel, por favor, deixa-me ir! Amanhã falamos».
Olhando para João, Mané sabia que não havia mais nada a fazer. «Vai, pá... Sempre a mesma merda!». Este tipo vai ter de aprender por ele próprio, pensou, por fim.
João saltou para a rua e foi ter com Luísa. «Problemas?», perguntou ela, reticente.
«Nada disso... Coisas do meu sócio» - atalhou João.
Desceram a rua num estranho silêncio absoluto. Como se tudo o que tinham para dizer um ao outro já tivesse sido dito, restando apenas algo do género de «Está uma noite quente, não está?». Contudo, João não via grande utilidade em falar sobre o tempo, pelo que nem abriu a boca.
Ao entrar no bar, o som do jazz dava o mote a uma certa quietude acolhedora. Escolheram uma mesa junto à cabine do DJ, de um formato curioso, com a frente de um qualquer Cadilac cromado em tons de rosa, a sair da parede e escondendo no avançado que assim criava, a banca com os gira-discos, os leitores de CD's e os misturadores de som.
À chegada do empregado à mesa de ambos, João perguntou a Luísa: «Que te apetece beber?».
«Vodka tónico» - respondeu ela, olhando seriamente para o empregado. Afinal, sempre és menina do vodka, pensou João... «Sejam dois, então, por favor», disse ele ao sorridente empregado que parecia querer adivinhar, em jeito de quem achava já saber tudo, o propósito daquele casal recém-chegado. João não suportava tais hábitos, e, para não se irritar, desviou o olhar, para Luísa.
«Então, conta-me... Como é que deste com a nossa exposição?», perguntou, enquanto acendia um cigarro e as bebidas eram servidas.
Luísa deu um gole demorado na sua bebida, parecendo deixar-se levar pelo fresco travo agridoce da combinação; o limão, o gelo e a água tónica borbulhante eram a verdadeira essência e camuflagem daquele prazer culpado; daquele desejo de alguém se perder na ilusão etílica dos sentidos.
Mordendo ao de leve aqueles seus lábios carnudos, naturalmente vermelhos, perguntou em tom de desafio: «Diz-me, João, que te interessa isso ao certo?»
«Como já te dei a entender, podia pensar num milhão de razões, enquanto dono da galeria e autor da guest list... Mas o que eu realmente acho é que tu estiveste ali na exposição, hoje, a convite do Jacinto - eu cedi-lhe algumas entradas para os seus próprios convidados; tu és a modelo do #Semblante»
Luísa sorriu ao de leve e disse: «Pois... talvez até seja... mas é só disso que queres falar? Foi só mesmo por causa disso que vieste comigo até aqui?»
Apetecia-lhe insistir até ter a certeza de que Luísa era, realmente, a modelo daquele retrato que tanto o intrigava e fascinava. Contudo, apenas disse: «Conta-me mais sobre ti, Luísa».
«Que interesse podes ter tu em mim, na minha vida?». Luísa não desarmava, naquele seu sorriso inquieto.
No entanto, naquele preciso momento, os olhares de ambos cruzaram-se, por instantes; e algo se passou. Num fragmento de segundo, pareceu a João que nada mais importava saber; que Luísa já lhe tinha contado tudo. A nitidez com que conseguia olhar para o fundo da sua alma, contrastava com aqueles grandes olhos castanhos que lhe tinham captado a atenção desde o primeiro momento.
Luísa parecia sentir o mesmo, pensar o mesmo...
Sem se aperceberem, os dedos das suas mãos direitas tocaram-se ao de leve, sobre o vidro da mesa, onde repousavam as suas bebidas; as bolhinhas de gás da água tónica subindo, a marcar um tempo que, de facto, a esta altura, era bastante acelerado.
Da entrada do bar, cuja porta se encontrava totalmente aberta, vinha uma brisa fria, o anúncio de uma madrugada prenhe de possibilidades.
Luísa aproximou-se suavemente de João; os lábios de ambos tocando-se, prenunciando o resto de um beijo demorado, suave e macio. O hálito de Luísa era doce e, ao mesmo tempo, quente.
«Uma foto não te consegue beijar assim, pois não?» - murmurou Luísa, afastando-se milímetros da cara incrédula de João.
Totalmente desarmado, João estava sem palavras. O coração batia-lhe descompassado e sentia que, a qualquer momento, se engasgaria, com falta de ar.
Se dúvidas ainda lhe pudessem pairar no espírito, as mesmas tinham-se dissipado naquele instante. Ele era agora prisioneiro de Luísa;
Que tinha retomado a sua pose enigmática e aquele olhar de menina irrequieta; como se inconsciente do que tinha acabado de fazer...


Alexandre Villas-Diogo, Momentos

domingo, 19 de junho de 2011

voyeur

a noite percorre gritos de euforia
dilata-se na estrada, como uma enchente
e chega, deste lado, a um olhar invejoso
que se distrai duma televisão em silêncios
e repara, com toda a imaginação disponível;
julgando ver dois corpos em modo de um
no escoar da luz preguiçosa duma lua indiscreta.

Um sonho do(s) mestre (s)

Na noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia.(...) Fernando tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler. Naquele dia tinha de ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certa altura a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. (...)
À porta da casa estava uma velhota com óculos e uma touca branca. Pessoa percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e ergueu-se em bicos dos pés, beijando-a na face.
Não me canse muito o meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa das poltronas e tinha a cabeça inclinada para trás. era o Headmaster Nicholas, o seu professor da High School.
Não sabia que o caeiro era o senhor, disse Fernando Pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade (...)

ANTONIO TABUCCHI, Sonhos de Sonhos, Quetzal, 3.ª ed., 1998

sábado, 4 de junho de 2011

Arte poética

Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.

Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.

E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

MANUEL ANTÓNIO PINA, Prémio Camões
Poesia, saudade da prosa,
antologia pessoal, Assírio&Alvim

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Histórias da Água de Castello

Não te vás de mim e deixa-te ficar. 
Vem comigo aproveitar esta noite perfumada com aroma de pinheiro; junto às ribeirinhas margens iluminadas por candeeiros de tempos mais inocentes. Deixa que esta estação te marque o compasso, não pensando no que está para trás. O tempo não dá tréguas e na tua mão apenas o valete de copas te garante algum ganho. Procura a melodia e não te importes com a letra, pois a verdade das coisas encontra-se mais nos sentidos no que numa qualquer razão de médias ponderadas.
E tudo isto te digo porque, de certo modo sei que estar onde estou sem ti não faz qualquer sentido. E se assim é, fácil se torna de ver a razão pela qual o que escrevo também não faz sentido algum. O ímpeto da saudade apenas me diz para deixar a pena cibernética vogar ao sabor da brisa fresca com cheiro a cerejas. Não chego ou paro em sitio nenhum porque realmente nem cheguei a sair de onde me encontro. E deste modo, logo noto que já só falta um quarto para as onze…

segunda-feira, 23 de maio de 2011

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Adoração táctil

Eduarda tinha uma adoração táctil por determinados tipos de beleza masculina. Quando descrevia os corpos esfregava suavemente as pontas dos dedos e quase que se tornava perceptível o aumento de saliva na boca. Para sua infelicidade, esta adoração era demasiado estética e erótica (se considerarmos o erotismo como contraponto à sexualidade). E como a realidade insistia em negar a produção de homens belos que se cruzassem com ela, Eduarda tinha imensas dificuldades em manter relações, especialmente as sexuais, com os indivíduos que, por vezes, partilhavam espaços com ela.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

árvores na memória

O mundo é essa árvore...
chorão, criptoméria, bétula
onde os traços que riscam o céu
são abraços e renúncias.
nós e novelos. compara-os
aos teus cabelos
onde esta tímida mão
desenhou caracóis e os desfez
(à vez à vez).
Que há além dum gesto,
se a própria sílaba é movimento?
Resta-me o que já tinha,
o teu olhar (d'alento) recordado
e a ânsia do possível
se não há mais.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

serena mente

No vazio dos dias
esgotava o cansaço das corridas
bebia o mar em golfadas de espuma
esquecia o café na mesa de espera
sonhava com o sol em cócegas

e no silêncio com que esperava as horas
deixava de ter lembrança

(28072010)

infâncias

quando agora despertas
para uma fantasia de búzios
podendo trazer de regresso
o sorriso de abafar um berlinde...

o silêncio das casas brinca
aos traços de sol, devolvendo
as tardes aos muros da infância
subidos de bibe manchado
e calções rotos até ao mercúrio dos joelhos

sexta-feira, 15 de abril de 2011

o dia de ontem continua e é quase amanhã. não sei como fatiar o tempo e apartar-me dessa luva que é o teu corpo, anichado ainda na memória e no desejo.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Chegas, agora, com todas as fibras
e olhas os meus olhos como
se fosse possível serem ainda os antigos;
fazes gestos que desaprendi,
e tudo me parece sonâmbulo,
histórias a inventar
- entre sombras e sonhos -
sem que possa galvanizar
as mãos de rugas, e o teu colo
sobre a memória já selada ao desejo
com chaves de fuga e adeus.

Podíamos caminhar num rasto novo
mas os pés ferem as pedras
que uma revolta esquecida
espalhou nos trajectos.

Resta o que sempre resta,
nada sendo; e do vazio
ainda haveremos de retirar
pedaços que a combustão não terminou;
uma imagem amolgada
ficará como o quê
dum tempo sem préstimos.

quinta-feira, 24 de março de 2011

lá longe, onde a vista mistura o horizonte
há um homem que parece pedra de montanha
e no escuro do olhar íntimo procura uma busca
que ultrapassa o profundo silêncio dum
sonho por completar. inteiro só o vento, a derrubar-lhe
os cabelos brancos, onde deixou outras marés
sem glória, outras mulheres, e a vitória, rara,
de um não deixado de dizer. sobem-lhe
aos braços os pássaros do presságio
(que suba rápido e bem)
- malhas de um império sem mãe,
e a noite já não vem
a tempo da memória.

quarta-feira, 9 de março de 2011

enquanto um de nós estiver vivo
seremos sempre todos

(e se eu morrer antes do sempre,
resguarda-me o lugar que te aquecer
a memória dos dias frios, e senta-te
no lugar de ambos, aquele que podia
ser de qualquer um)


há mais estrelas no céu que corpos esvaziados:
escolhe aquela, próxima,
de onde possamos dizer adeus,
nesse gesto mentiroso
de quem está sempre a ver-se.

(a ler JLP, o maravilhoso a criança em ruínas)

quadro 5

silêncio

(como se escreve silêncio
sem ouvir a palavra?)

e se, às vezes, houver resposta?

pergunta ao vento se
voltarás a voar na terra dos gestos,
onde as sombras são súplicas de regresso
e as aves reforçam a ruína dos aterros;
talvez uma nuvem se desenhe em palavra de resposta,
e talvez seja esperança, como o reencontro
de um sorriso perdido num passeio de montanha
ou a cor lembrada duma porta onde se escondia
a menina dos teus olhos; pergunta devagar
como quem aceita um fim
porque a resposta pode não ser.

sábado, 5 de março de 2011

O tteemmppoo arrasta-se (como que duplicado); leeennnttaammmeeeeeennte, muito lleeeennntttammmmeeeeeeennnttttteeeeee.

(referências: o corpo como arte, Manoel de Oliveira e Ponto Omega, Don DeLillo)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

quadro 4

um prédio de oito andares e mais dois iguais. no quinto, do segundo, da esquerda, doutro tempo, dissera, não devia. agora quererá dizer não deves. presente. deviam construir prédios com floreiras e sempre virados ao sol. a arquitetura; tanto dá. mais longe já correm as sombras que a manhã desperta. seis, sete graus; não mais. chocolate. três passos. parte. lábios escuros. passa a língua como um limpa pára-brisas. o dedo desleixa-se da piada (não contes...) e do percurso. sem fossem brancas.
a origem do trauma:porto santo, ano indeterminado, década de não sei quando; imensa, praia imensa, e ela. outra. apaga-se a luz do dia e tudo se ilumina. branco cor de neve, cheio, a luz desde o ilhéu
(camus, estrangeiro, rápido, muito rápido; cegueira, prumo, olhos azuis, o sol, os olhos azuis, branco, boa)
foi aí.
não lhe digo .

quadro 3

o lábio desprende-se do beijo

quadro 2

a realidade está lá fora. eu - ele, corpo - despreza-a, absorvido em olhos castanhos, oblíquos, no sofá.
o fio corta - lá fora - e, de repente, é janeiro; chega aos repelões.
sim, não; um palmo de mão. a língua de um atrevimento. a dúvida mortal, inventada de comum desacordo.
vamos imaginar que ela imagina, que olha, distraindo o momento.

quadro 1

e vou, dedo por definição, e paro. tateio com a suavidade da espuma e parece-me rendilhado de nuvem. de cima olham, olho, mas nada acrescento à textura do impulso. elástico. mal noto. o fio preto manterá a cor até ao centro da espécie. no mesmo instante olho. e palpo um sulco de elegância
(expressão delinquente, perdida no cérebro - quando sobrevier a autópsia, mapeado gota a gota, ainda a palavra aí repousa? e jazente, ou moribunda, ou vívida... elegância)
magreza, finura, não desço mais que nada. e ela fala.
voz: pára, se não...

domingo, 13 de fevereiro de 2011

arquitecturas

Talvez o paraíso repouse
no rasto do teu regaço
no som de menino palhaço
que do sono sonha e não ouve.

Eu queria ter uma palavra
apenas. Mágica, brilhante
como olhos da mulher distante
que me chorou por amada.

Dá-me o sortilégio e parto,
de teu engodo e espera farto;
hei-de encontrar um sol com tua luz - prometo
inventarei teu rosto de novo - sou arquitecto.

(11/2008)
Há árvores que duram 100 anos
As tartarugas aí uns duzentos
Uma vida? - O tempo dos enganos
Nos breves intervalos dos lamentos.

Só aquele teu olhar dura sempre
Porque colado à pele, não largo mais
Surgiu do acaso, num mero repente
Mas nem o solto, aos gritos de teus ais.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

luz

as palavras, bebendo o escuro
no sossego da folha,
pareciam apagadas.

mas, claro, dependem
da luz de quem as lê.

sonho de bandido

lanço fogo ao quarto onde me deito
antes que o escuro derrube a cerca
e contemple a madrugada. voam
lençóis em adeus festivo, içando
braços de revolta, outros de prece.
a cidade está morta no sono,
castiga-me num mar de desinteresse.
não posso ser herói
que nem me deixam ser bandido.
angustiado, reparo que só sonho
e sou o menino de côro,
a lavar os dentes, daqui a nada
com água bem desinfectada.
e toda a minha revolução
(que ia mudar o mundo
naquele preciso e
conseguido instante)
fica-se em arrumar os papéis selados
e, se ligeiro, apanhar o eléctrico.
Mas o devaneio obriga-me
a chamar o táxi.

(10.02.2009)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Compromisso

Desaconchego o lençol
(atrapalha o subtil calor
de um pé dormente)
enquanto distraio
as recomendações do relógio
(petulante
com ares arrogantes
de inequívoco)
e,
por minuto e meio que seja,
decido respirar o silêncio,
desprezar o compromisso, e
gritar
- sem uma palavra que devolva
os vizinhos à manhã -
NÃO VOU.
Satisfeito, levanto-me de imediato.

(19.05.2009)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

e pronto!

é invisível o que ontem me sobrou
dum sonho inconcluso; sei que
havia algo mais, mas não sei
como o esquecimento mo garante
(habitualmente estás presente, mesmo quando me digo
que é apenas um sonho repetido e tresmalhado)
e agora ganhei o medo
onde só estavas pela minha dúvida de renovar o enredo.
gostava de sonhar como sonha um gravador,
e pronto!

verão gelado

está um calor no soalho das ruas
um cortinado de bafo ergue-se até até ao dorso dos adultos
e eu estou gelado, sem febre, neste agosto
que estala as canas dos riachos
secos desde junho.
as saudades humedecem os ossos...
de que serve o teu xaile feito de mãos
se as não sinto desde o inverno ido?
- minha bordadeira de afetos, dobadoira de carícias
em flor de linho;
seguiste o teu caminho
e eu?
arrefeço o verão inteiro.
tenho as malárias da tua picada
(e a europa aqui tão junto).
se voltas só depois de setembro...
tão longe, como é que lembro?
vou agonizar em tranches d'arrepios.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Umbigo

Da mesma forma que o Mundo gira em torno do Sol, para um vasto número de Mulheres o Universo gira em torno do seu umbigo…
E o facto das duas concepções teóricas terem surgido na mesma época histórica não é coincidência….

NON ou a Vã Glória de Mandar



Um filme fraco, mas que parte de uma premissa brilhante...

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

no escuro

escrevo no escuro
os sons do teu silêncio
e leio, de olhos bem fechados,
um coração encadernado
nas cores cintilantes da poesia;
rio-me do sol, que está medroso
tal como eu, teme que esse olhar
- só imaginado - o ofusque,
o envolva no plástico da noite.
é o poema que embeleza a coisa
ou só a coisa faz viver o poema?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Lisboa I

Ao longe um barco sem flores
deixa no Tejo um risco de sofrimento;
dizes que trarão saudades
os contentores vermelhos que o engordam;
deixo seguir a vista; imagino o deleite
com que reinventas essa poesia do concreto.
Alfama parece um lego, e
umas ceroulas penduram-se num fio
como podia ser nas unhas duma gaivota;
tão surreal assim, o resto de cerveja
espuma-me uma confidência, e eu: "vamos"!
Lisboa, tarde de um ano que chegará.

Lisboa II

E o polícia desfralda a boina
como um certificado
e a mulher gasta, toina
repete-lhe o gesto, e é pecado;
no intendente há sempre gente,
passei o martim moniz e, por um triz,
alcancei o rossio na ocasião do desafio:
a mulher voltou ao lugar do engate
o polícia emboinou (que disparate...).
Lisboa não anda boa
do juízo. Nem é preciso.

De frente para o mar

Com a organização e o prefácio de David Rodrigues, e comemorando os 150 anos do tratado de Paz, Amizade e Comércio entre Portugal e o Japão (2010), foi publicado um livro de poesia haiku contemporânea, com a participação de vários autores portugueses. Chama-se De frente para o mar (Palimage, Coimbra, 2010) e aqui se deixam algumas gotas dessa escrita frugal.

Peixes: os sobreviventes
dos antigos
naufrágios

(Albano Martins)

E tudo são conchas -
ossos musicais que podiam
ser relva ou bronze

(Casimiro de Brito)

ouves o mar?
e o vento? e as gaivotas?
- É o silêncio.

(David Rodrigues)

Giro o globo
o dedo indicador
perde-se no Pacífico

(Dinis Lapa)

saudade -
e tudo o que tenho
é este búzio

(Lécio Ferreira)

praia matinal -
cheiros distantes regressam
no cheiro das algas

(Leonilda Alfarrobinha)

Onda a onda
O mar
Se anuncia

(Liberto Cruz)

no fundo do mar -
uma concha adormece
sem ruído

(Lucília Saraiva)

No fundo do mar,
passam devagar as sombras
das aves, dos barcos...

(Luís Domingos)

Amendoeiras em flor,
espuma do mar
no novo corpo da deusa.

(Yvete Centeno)


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

tempo saudoso

E agora, que agonizo os dias
na tua saudade; só mesmo por ela
que me lembro o esquecimento.
Penhoro-me a promessas
do teu regresso
invento modos de te ver
nas formas da escuridão,
e angustio os segundos
com que o tempo se fractura
e dilacera entre os momentos.

verão de promessas

e agora, que o sonho se deslumbra
na terra fria, lá onde os pássaros
repousam gravilhas de pasmo,
e eu respondo que entendo o mundo
entre o perplexo de um olhar d'areia
e o mar azul, azul de azul e cor
onde repouso os ombros do cansaço
futuro, onde, cada vez onde
intrigo o espaço que amanhã
traz bagatelas de dúvida
e respiração de sossego: canto
outra vez as promessas antigas,
julho e agosto, mar e lábios
ternuras de porvir

julho. 2010

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O velho que lembrava romances de amor

Num gesto mecânico, apertei o dorso
como quem se abraça num hábito
e o pensamento esbracejou em fumo
até se diluir nos contornos do presente;
era só a saudade, amalgamada
em resíduos de memória
que te inventava nos contornos
onde eu segurava, temerário
ilusionistas ares de realidade:
já te fugiras, sem eu crer
ida nos tempos puídos dum calendário
onde as moças dos pneus
ainda usam corpetes de renda;
oh!, anos de brasa (frios)
- bêbados como na lei seca:
o século há muito partiu
e eu fiquei na grande guerra
perdida, sempre
em invenções de fantasia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011