sexta-feira, 27 de novembro de 2009

servíamo-nos de palavras longas que nos separavam

Porque tínhamos medo, Edgar, Kurt, Georg e eu andávamos juntos todos os dias. Sentávamo-nos junto à mesa, mas o medo permanecia tão isolado em cada cabeça como o trazíamos antes de nos encontrarmos. Ríamo-nos muito, para escondê-lo dos outros. O medo, porém, escapava-se-nos. Quando dominamos o rosto, esgueira-se pela voz. Quando se consegue conservar o rosto e a voz como um ramo morto, sai pelos dedos. Deita-se fora da pele. Anda por alí à vontade, reconhecemo-lo nos objectos que estão próximos.
Sabíamos em que lugar estava o medo de quem, porque já nos conhecíamos há muito tempo. Muitas vezes não nos podíamos aturar, porque estávamos dependentes uns dos outros. Tínhamos de nos ofender.
Tu mais a tua cabeça-de-alho-chocho suábia. Tu mais a tua pressa ou molenguice suábia. Tu mais a tua mania suábia de contar os tostões. Mais a tua lorpice suábia. Tu mais os teus soluços ou espirros suábios, mais as tuas peúgas ou camisas suábias, dizíamos.
Seu peida-de-bombo-da-festa suábia, seu cabeça-de-vento suábio, seu kampelsackel suábio. A fúria era tanta que nos servíamos de palavras longas que nos separavam. Inventávamos-las como pragas para ganhar distância em relação uns aos outros. O riso era duro, perfurávamos a dor. Era rápido, porque nos conhecíamos por dentro. Sabíamos exactamente o que magoava o outro. Agradava-nos vê-lo sofrer. Queríamos que sucumbisse sob o peso do amor agreste e que sentisse a rapidez da sua derrota. Cada injúria arrastava a seguinte até que o visado se calava. e ainda um pedaço mais. durante um pedaço ainda, as palavras caíam-lhe no rosto mudo como gafanhotos num campo devastado.
Imersos no medo, tínhamos olhado mais fundo uns nos outros do que era permitido. A longa confiança obrigava-nos a uma inversão que acontecia inesperadamente. O ódio podia aparecer e destruir. Na grande proximidade uns dos outros, ceifar o amor porque ele voltava a crescer como a erva alta. As desculpas retiravam a ofensa tão rapidamente como se consegue reter a respiração (...).
A mãe quer apanhar as últimas ameixas do jardim. Porém, a escada tem um degrau solto. O avô vai comprar pregos. A mãe fica à espera debaixo da árvore. Tem posto o avental de bolsos grandes. Escurece.
Quando o avô tira as figuras de xadrez do bolso do casaco e as coloca em cima da mesa, a avó-cantadeira diz-lhe: Tens as ameixas à espera e vais jogar xadrez com o barbeiro. O avô diz: O barbeiro não estava em casa, o que levou a dar uma volta pelo campo. Compro os pregos amanhã cedo, hoje fui strabanzen.
Kurt meteu, ao andar, os sapatos para dentro, atirou um pau à água e disse:
ffffffffffff
Todos tínhamos um amigo em cada pedacinho de nuvem
é o que acontece com os amigos onde o mundo é cheio de medos
até a minha mãe dizia que era normalíssimo
os amigos estão fora de questão
pensa em coisas mais sérias
ggggggggggg
Edgar, Kurt e Georg estavam sempre a recitar este poema. Na tasca, no parque desgrenhado, no eléctrico ou no cinema. Mesmo a caminho do barbeiro.
ggggggggggggg
Herta Muller (Prémio Nobel 2009)
A terra das ameixas verdes (Herztier)
Tradução de Maria Alexandra Lopes, Difel, 2009

2 comentários:

DI disse...

Numa era em que o homem declara a morte de Deus, pretendendo assumir o Seu lugar, o medo surge oculto na fome inesgotável do Ter. E contudo, o medo, na sua manifestação, eventualmente, mais pura, porque mais instintiva, surge imbrincadamente conectado com o Ser: medo de ser ultrapassado pelo outro, medo de ser dependente do outro, medo de ser usado pelo outro, medo de ser «descoberto» pelo outro, medo de ser confiante, medo de ser amado pelo outro... Na multidão estamos sempre sós com o egoísmo do nosso instinto de sobrevivência. Este é, pois, o medo que alonga as palavras, delimitando as distâncias, ou seja, as nossas fortalezas. Ele traz à luz a possibilidade da dor e da mágoa de um amor agreste, um amor que, todavia, apenas o conseguirá ser se nutrido na impossibilidade de um coração sem medos, na difícil possibilidade de nos darmos...

Petra Maré disse...

"Imersos no medo, tínhamos olhado mais fundo uns nos outros do que era permitido. Perfurávamos a dor... porque nos conhecíamos por dentro."
É certo e a No(bel)re Senhora sabe-o melhor que ninguém, nada como o medo para nos deixar completamente nús.