quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Puro Vintage VI


A certa altura do ano, depois do regresso à escola e dos magustos, quando o frio já começava a apertar e a chuva era uma presença constante, Alexandre sabia que estava para breve um tempo mágico. Guiado pela mão da sua Mãe, que frequentemente acompanhava nas compras para a casa, entrava no supermercado de sempre e a mudança estava dada. Logo ali, nas primeiras prateleiras da entrada, expostos em série, os brinquedos acabados de chegar davam um novo ar, muito mais apetecível e acolhedor, ao espaço de sempre.

Com um ar solene e contemplativo, Alexandre procurava devorar com os olhos tudo aquilo em que as suas mãos não podiam tocar. "Não se pode mexer", dizia a sua mãe, sob o olhar atento e aprovador da dona do estabelecimento, vigilante e preocupada com o eventual prejuízo causado por um petiz naturalmente encantado e inquieto com tanto brilho, tanta novidade, que desejava alcançar. Carros a pilhas, construções, soldadinhos de chumbo, aviões, robôs eram para ele como arcas de tesouro, encerrando em si inúmeras estórias de aventura que ia construindo em sonhos despertos. Nuns outros tantos caixotes, ainda por abrir, Alexandre sabia existirem ainda mais pequenas maravilhas destas.

Àquela altura, já tinha trocado algumas impressões com os seus colegas acerca do que pedir no Natal. Agora, essa mesma lista de desejos estava a ser reformulada. Por outro lado, também comparava mentalmente, com acutilante sentido crítico, tudo o que ali via com outros brinquedos, vistos na sua cidade natal, no shopping de uma grande rua, à noite, após sair de casa dos seus avós que lá viviam.

Por fim, chegaria sempre à conclusão de que, entre uns e outros, o importante era conservá-los bem estimados (sim, porque prezava muito a sua fama de coleccionador zeloso e importado), na gaveta que tinha no roupeiro do seu quarto.

Contudo, neste seu alvoroço interior havia sempre espaço para outros desejos, para já bem mais fáceis de satisfazer, sabendo que ainda era cedo para qualquer decisão dos seus pais (eram eles que falavam com o Menino Jesus, segundo a sua mãe), quanto às prendas que apareceriam na chaminé da cozinha ou até mesmo na da sala dos seus avós. Assim, acto contínuo, Alexandre virava-se para a sua mãe e dizia baixinho "Quero um pai-natal" ou "Quero um carro de chocolate". Depois de alguns protestos pedagógicos, que nunca o deixavam de envergonhar porque eram ditos um pouco alto demais, o seu pedido era satisfeito. Em gestos cuidadosos, ia desembrulhando o papel de prata estampado que cobria a figura oca e castanha. Numa dentada, aquele doce sabor quente deixava-o entusiasmado, contente e um pouco mais sôfrego para os pedaços seguintes. Com grande parcimónia, contrária à idade de infante que tinha, procurava não sujar as mãos conforme o chocolate se ia derretendo. "Não te sujes!" - a advertência que mais ouvia.

Mas este era o seu pequeno momento de prazer e ninguém o perturbaria. Ainda a olhar para os brinquedos, crescia nele a esperança de que algum deles, ainda que o mais pequeno, seria seu. Mas o que realmente interessava, algo lho dizia, era viver, respirar aquele tempo, aquela magia.
Chocolate comido, prata cuidadosamente metida no bolso, qual recordação daqueles instantes de genuíno e inocente entusiasmo, Alexandre encaminhava-se para o pé da sua mãe, que já o chamava, e lá ia para casa. Sentia-se Feliz.

2 comentários:

Passiflora Maré disse...

Ser criança é, realmente, a idade do encontro com a magia e, com sorte, com a felicidade...
Puro Vintage mesmo...

Anónimo disse...

O dia quase despontava. Frio e orvalhado, com pingentes de neve no rebordo das telhas e fiapos de vidro de água nos ramos das árvores.
Apenas Gaspar, resfolegando embora, mantinha a aparência de alguma realeza africana, lustroso de brilho e orgulhoso da sua pele. Derreado da jornada e da trepidação da dromedagem, Baltazar ressonava alto, encostado ao feno, enquanto Belchior, magnificente quando acordado, parecia agora um farrapo de gente amarrotado de sedas de carmim.
Também os pastores, vencidos pelo sono e pelo esplendor da adoração, se quedaram no estábulo, dormitando e sonhando, talvez com um rei que os sentasse à sua mesa.
A noite fora intensa com tantas declarações de júbilo e protestos de felicidade como em nenhuma corte se vira antes e a invernia apanhara desprevenidos todos aqueles a quem o entusiasmo fizera perder a noção do tempo, julgando estarem a pisar a primeira réstia da eternidade.
O pequeno, de olhos abertos, mirava tudo com inteira atenção e foi demorando olhar por sobre o brilho das prendas...
Numa agilidade insuspeita deslizou pelas palhas até ao chão e, nuzito de todo, gatinhou até ao pote da mirra, enfiou nele o dedo que se besuntou de imediato e, levando-o às virilhas, sossegou o ardor, que ali sentia, soprando espevitado sobre o vermelhão da queimagem.
Sorria agora num aliviado contentamento e agradeceu numa garatuja da face àquele colosso de barbas a lembrança que tivera em lhe trazer o unguento.
Abriu as bochechas num sorriso largo e avançou de pronto para a caixa do incenso enterrando nela a ponta do nariz, satisfeito com aquele aroma de noite de festa e, de repente, o empastado do ar onde um cheiro ecuménico a homem e a bicho entumecia as narinas, dissipou-se numa elevação que de novo permitia que os sentidos sossegassem deixando de estar cativos do olfacto.
Também este outro sábio meão, quadrado e hirsuto soubera bem escolher a sua prenda.
Mesmo ali ao lado, a refulgência do ouro alumiou-lhe o negro dos olhos e gatinhando até ele, percebeu como o esplendor e a cegueira podem estar tão juntas, já que aquilo que convida à dádiva pode ser tentação de a usura e a avareza.
Mas mais que ouro aquele dourado das correntes e argolas era um convite à realeza e como tal o aceitou.
Consumido nas suas reflexões olhou para o lado e viu, saindo do bolso de um pastor adormecido, uma baraça esgaçada, com um nó na ponta, e sem se deter em conjecturas foi-a puxando até do forro se ter despregado um pião gasto e rombo.
Caramba, pensou ele, que nagalho imenso devem ter usado para porem a girar a terra nesta tontura de voltas incensadas.
Espreitou ainda lá para dentro daquela lura de pano, de onde saíra tamanha revelação e, metendo por ela a mãozita de dedos sapudos e rosados, tirou lá das profundezas um pedaço de centeio escuro e duro em que fincou as gengivas tenras e roeu o miolo num comprazimento principesco.
Olhou de novo aqueles reis todos, aqueles presentes todos e soube que naquele momento, em que tudo dormia, teria que escolher sobre qual das dádivas construiria o seu reino mas não hesitou. Pegou no pão que sobrara, repartiu-o com a força dos seus dedos recém nados, e foi depositar no bolso de cada um pedaço, que mais que uma oferenda para saciar qualquer fome, era e continua a ser ainda o compromisso e a lembrança que nenhum homem é rei enquanto o seu semelhante não tiver pão e nenhum Deus é verdadeiro enquanto não lembrar ás gentes que o caminho da fé e da esperança se conquista na capacidade que vamos tendo de alimentar o próximo.
Dizem que depois da alvorada todos acordaram e foram contentes para os seus destinos e que nem o pastor suspeitou que por um instante fora rei, embora tenha estranhado, quando jogou de novo o pião, que ele rodava com um esplendor de astro azul e que rodando lhe aquecia o coração e apaziguava a fome.