quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O lugar do vivo

1.
Todos temos uma ocasião. Alguns, companhias da sorte, chegam a poder confessar, Na nossa vida houve um Verão. Na minha vida, não houve. Houve uma noite. Mas mentem, se me desculparem que há noites assim. E se outra houvesse, nem ao diabo a oferecia.
Aconteceu há dois anos. Desde ela, por ela, foi terrível tudo quanto me arrastou.
Há escassos dias, finalmente, encontrei a mulher do médico morto. Não se chama Teresa, mas está viva. E pode permitir que eu volte a ser qualquer coisa. Nunca mais como antigamente. Depois daquela noite, nunca mais.


2.
“A persistência da memória é tão surrealista como a tua teimosia. Contar a história não é garantia de recuperares a liberdade. As vezes que to repito! Mas seja: há quem desculpe a terapia. E, agora, não serei eu a renovar-te o medo”.


3.
- Já ninguém se mata à beira-mar, junto do farol. Saiu-me da boca, mas não fui eu a falar.
O medo continuou, agora num sussurro fechado, só comigo: “Que havia de lhe dizer, se não uma graça? Ele é medonho, repara bem!”
Na terceira semana de Novembro, desde há dez anos, conseguia aconchegar dias dispersos e ia respirar o mar. Sozinho, apartado da cidade, escondido em invisibilidade incógnita. As pegadas do Verão tinham desaparecido e o bafo do São Martinho não tem quentura para contrariar o ritmo das estações. Preciso de arrefecer e só o ar do mar me ajuda a retomar o desgosto do trabalho, a reinventar o fôlego. Todos os anos, era este pedaço de Outono que me rejuvenescia. Fugia à família e esvaziava-me no som das ondas, nas réstias de Sol e nas longas caminhadas pelo areal lavado.
Todas as vezes, como numa destinação astrológica, temendo que o olvido fosse agoiro, percorria o pontão na noite anterior ao regresso. Caminhava da fortaleza ao farol e enchia o peito daquela terna brisa fresca. Chovesse, ventasse forte (houve uma noite, vão lá seis anos, que uma trovoada medonha me escolheu e tive de avançar em gatas, enquanto a ventania me fazia de trapo sacudido). Regressava do farol, peito cheio, percorrendo o quilómetro de volta. Sempre sem um parceiro, sempre sem vivalma que visse, e sempre com o descanso de nem polícia nem bombeiro se inquietarem com a minha ousadia, impotentes na imaginação de haver um louco a percorrer o frio escuro de Novembro.
Foi a três curtos passos do farol, num escuro salpicado de bagos de reluzente espuma, que vi o homem.
“Vai atirar-se dali, mesmo à tua frente; ou não, pode é estar à tua espera”.

Era grande o homem. Era um homem excessivo e desmesurado. Um fato escuro, uma camisola preta, de gola alta, e, no breu imenso, reflectia uma barba branca, aparada a rigor, e um cabelo grisalho que as têmporas ondulavam.
Um velho lobo-do-mar? Um marinheiro que perdera o rumo ou a graça? Um louco que aguardava outro?
Pensará qualquer um, mesmo parcamente sensato, que em lugar de uma graça parva, dava-lhe as boas noites e retrocedia ao meu caminho de sempre. Desde há dois anos que eu tenho pensado exactamente o mesmo. Só que, volvendo a então, não fora eu o do gracejo, tomara-me o medo a voz; depois, o corpo não reagia e a cabeça estava bem alheada dum raciocínio; por fim, algo me teimava que o acaso nunca é por acaso e nunca somos ágeis a contrariar o fado.
No quilómetro em redor, nem um mísero peixe sonharia este encontro e o homem, impávido, imóvel, parecia saber de cor os caminhos da minha imaginação obstruída.