segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Aos que continuamos a ver

A morte é a curva da estrada
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

FERNANDO PESSOA, 1932.
(à primeira vista, deixou de ser visto
há 74 anos, a 30 de Novembro de 1935)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

servíamo-nos de palavras longas que nos separavam

Porque tínhamos medo, Edgar, Kurt, Georg e eu andávamos juntos todos os dias. Sentávamo-nos junto à mesa, mas o medo permanecia tão isolado em cada cabeça como o trazíamos antes de nos encontrarmos. Ríamo-nos muito, para escondê-lo dos outros. O medo, porém, escapava-se-nos. Quando dominamos o rosto, esgueira-se pela voz. Quando se consegue conservar o rosto e a voz como um ramo morto, sai pelos dedos. Deita-se fora da pele. Anda por alí à vontade, reconhecemo-lo nos objectos que estão próximos.
Sabíamos em que lugar estava o medo de quem, porque já nos conhecíamos há muito tempo. Muitas vezes não nos podíamos aturar, porque estávamos dependentes uns dos outros. Tínhamos de nos ofender.
Tu mais a tua cabeça-de-alho-chocho suábia. Tu mais a tua pressa ou molenguice suábia. Tu mais a tua mania suábia de contar os tostões. Mais a tua lorpice suábia. Tu mais os teus soluços ou espirros suábios, mais as tuas peúgas ou camisas suábias, dizíamos.
Seu peida-de-bombo-da-festa suábia, seu cabeça-de-vento suábio, seu kampelsackel suábio. A fúria era tanta que nos servíamos de palavras longas que nos separavam. Inventávamos-las como pragas para ganhar distância em relação uns aos outros. O riso era duro, perfurávamos a dor. Era rápido, porque nos conhecíamos por dentro. Sabíamos exactamente o que magoava o outro. Agradava-nos vê-lo sofrer. Queríamos que sucumbisse sob o peso do amor agreste e que sentisse a rapidez da sua derrota. Cada injúria arrastava a seguinte até que o visado se calava. e ainda um pedaço mais. durante um pedaço ainda, as palavras caíam-lhe no rosto mudo como gafanhotos num campo devastado.
Imersos no medo, tínhamos olhado mais fundo uns nos outros do que era permitido. A longa confiança obrigava-nos a uma inversão que acontecia inesperadamente. O ódio podia aparecer e destruir. Na grande proximidade uns dos outros, ceifar o amor porque ele voltava a crescer como a erva alta. As desculpas retiravam a ofensa tão rapidamente como se consegue reter a respiração (...).
A mãe quer apanhar as últimas ameixas do jardim. Porém, a escada tem um degrau solto. O avô vai comprar pregos. A mãe fica à espera debaixo da árvore. Tem posto o avental de bolsos grandes. Escurece.
Quando o avô tira as figuras de xadrez do bolso do casaco e as coloca em cima da mesa, a avó-cantadeira diz-lhe: Tens as ameixas à espera e vais jogar xadrez com o barbeiro. O avô diz: O barbeiro não estava em casa, o que levou a dar uma volta pelo campo. Compro os pregos amanhã cedo, hoje fui strabanzen.
Kurt meteu, ao andar, os sapatos para dentro, atirou um pau à água e disse:
ffffffffffff
Todos tínhamos um amigo em cada pedacinho de nuvem
é o que acontece com os amigos onde o mundo é cheio de medos
até a minha mãe dizia que era normalíssimo
os amigos estão fora de questão
pensa em coisas mais sérias
ggggggggggg
Edgar, Kurt e Georg estavam sempre a recitar este poema. Na tasca, no parque desgrenhado, no eléctrico ou no cinema. Mesmo a caminho do barbeiro.
ggggggggggggg
Herta Muller (Prémio Nobel 2009)
A terra das ameixas verdes (Herztier)
Tradução de Maria Alexandra Lopes, Difel, 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Morrissey

Gavin Hopps, especialista em romantismo britânico e autor do livro Morrissey: The Pageant of His Bleeding Heart, afirmou recentemente que o trabalho de Morrissey pode ser comparado à obra de grandes nomes da literatura como Samuel Beckett e Oscar Wilde e também a grandes nomes da comédia britânica como Frankie Howerd e George Formby.

Morrissey - The Last Of The Famous International Playboys

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"todos nós falhámos na tentativa de corresponder ao nosso sonho de perfeição"

William Faulkner (1897 - 1962)
hhhhhhhhhhhhhhh
Sr. Faulkner, estava a dizer há instantes que não gosta de ser entrevistado.
A razão por que não gosto de entrevistas é o facto de eu parecer reagir de um modo violento às questões pessoais. Se as perguntas são a respeito do trabalho, tento responder. Quando elas são a meu respeito, posso responder ou não, mas mesmo que o faça, se a mesma questão me for colocada amanã, a resposta pode ser outra.
ggggggggggg
E em relação a si, enquanto escritor?
se eu não tivesse existido, alguém me teria escrito, a mim, a Hemingway, a Dostoiévski, a todos nós. A prova disto mesmo é o facto de haver uns três candidatos à autoria das peças de Shakespeare. mas o que é importante é o Hamlet e o Sonho de Uma Noite de Verão - não quem os escreveu mas o facto de alguém o ter feito. O artista não tem qualquer importância. Só aquilo que ele cria é importante, uma vez que já não há nada de novo a dizer. Shakespeare, Balzac, Homero escreveram tudo o que havia a escrever sobre os mesmos assuntos e se eles tivessem vivido durante mais mil ou dois mil anos os editores não teriam precisado de mais ninguém daí em diante.
hhhhhhhhhhhhhh
Mas mesmo que pareça já não haver nada para dizer, não será talvez importante a personalidade do escritor?
É muito importante para ele próprio. todas as outras pessoas deviam estar demasiado ocupadas com a obra para não se importarem com a personalidade.
ggggggggggggg
E os seus contemporâneos?
Todos nós falhámos na tentativa de corresponder ao nosso sonho de perfeição. Por isso, eu avalio as pessoas com base neste nosso esplêndido fracasso para realizar o impossível. Na minha opinião, se eu pudesse voltar a escrever agora toda a minha obra, estou convencido de que faria melhor, o que é a atitude mais saudável que um artista pode ter. por isso ele continua a trabalhar, tentando de novo; acredita, a cada nova tentativa, que dessa vez o fará, que vai conseguir. É claro que não consegue, e é por isso que essa atitude é saudável. No momento em que o conseguisse, no momento em que fosse capaz de fazer corresponder a obra à sua imagem, ao sonho, já só lhe restaria cortar o pescoço, atirar-se para o lado de lá do píncaro da perfeição, em direcção ao suicídio. Eu sou um poeta falhado. Talvez todos os romancistas desejem primeiro escrever poesia, percebam que não são capazes e tentem então o conto, que é o género mais exigente a seguir à poesia. E talvez, ao falharem também aí, só então se lancem na escrita do romance.
gggggggggggg
Entrevistas da Paris Review
Selecção e tradução de Carlos Vaz Marques
Tinta da China, 2009

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Uma Praça a ler e visitar

"Há sempre uma praça. Herdeira da ágora ateniense, do fórum romano, do rossio medieval, território comum, pausa no labirinto da malha urbana, largo onde convergem e desaguam as ruas da cidade, ponto de todos os encontros e de alguns desencontros. A minha praça nasceu no velho rossio, baldio e periférico, mas a cidade envolveu-a, aconchegante e protectora, à procura de um coração que nunca mais deixou de bater ali, nas pedras da calçada, ao ritmo meticuloso do relógio da torre.
No tabuleiro desta praça, fui peão do destino, cavalo, torre, bispo e, talvez, rei por alguns dias, de aquém e além ilusão, prisioneiro sempre do xadrez onde a vida é um jogo e a sorte pode ser mãe ou madrasta."
gggggggggggg
Carlos Querido, PRAÇA DA FRUTA
Prefácio de Álvaro Laborinho Lúcio
Corrida de Letras, 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009


Para lá da espuma das polémicas

"O que Deus propõe a Abraão - que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé - é absurdo e desumano segundo a ética dos homens. Mas não se trata de optar entre códigos de conduta ou escolher entre valores. Abraão é simplesmente colocado diante do incompreensível, ele é o homem perante o infinito. Nesse preciso momento não possui razões para avaliar qual deve ser a sua conduta. Tudo nele está suspenso, salvo a relação com Deus. Abraão ilustra a radical situação do homem religioso. A fé representa um salto, precisamente porque não pode haver transição racional estável, garantida entre o finito e o infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor. Existir é existir diante de Deus, habitar a incompreensibilidade da infinitude divina como os personagens da pintura de Gaspar Friedrich habitam escuridões e abismos."

José Tolentino Mendonça
Apresentação de o Nome e a Forma

Para a nossa correspondente em Lisboa

Deus das fronteiras da nossa idade,
dos rios que passam cumprindo
o seu destino de passar,
dá à nossa vida o teu braço verde
para o tempo das viagens que acabam
e dos caminhos que começam cada dia

dá o dom da doçura à nossa vida,
o conhecimento e o gosto das lágrimas
que melhor acolham a primavera
e o que a precede,
Deus como a aurora em cada idade,
Deus do louvor antigo e novo,
do que continua e se perde e se cumpre,
na alegria da água,
das planícies brancas do silêncio e da coragem,
Deus que invocamos nesta festa de irmãos hoje
e que estás em tudo
como a primavera está no nosso inverno
e tu em Jesus Cristo e no Espírito que renova tudo

José Augusto Mourão, DIA DE ANOS
O Nome e a Forma, Pedra Angular, 2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

noite salgada

Na minha noite de sombra invento o mar
e perco-me em insónias de navegante
a escutar os pássaros sem alento nem piar
e a sonhar rostos de sereias impotente
de só com um beijo de sal as abraçar

Palavras

"Estava na natureza do signo linguístico não poder permanecer muito tempo no estádio ao qual Babel pôs fim, quando as palavras eram ainda os bens essenciais da cada grupo particular: valores tanto quanto signos; preciosamente conservados, pronunciados com parcimónia, trocados contra outras palavras cujo sentido desvendado vincularia o outro...
Na medida em que as palavras se banalizaram e em que a sua função de signo suplantou o seu carácter de valor, a linguagem contribuiu, com a civilização científica (eu diria mediática), para empobrecer a percepção, a despojá-la das suas implicações afectivas, estéticas e mágicas, e a esquematizar o pensamento."
Claude Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté. Paris, Mouton, 1967. P. 569

terça-feira, 10 de novembro de 2009

sábado, 7 de novembro de 2009

Bendito Novembro

"Vieram ao mundo no mesmo ano, 1919. Separados, apenas, por quatro dias: ele, Jorge Cândido de Sena, nasceu a 2 de Novembro em Lisboa; ela Sophia (de Mello Breyner Andresen), mas para todos nós apenas Sophia, a 6 do mesmo mês, no Porto. Não há que ter medo das palavras: os dois são gigantes da poesia portuguesa do século XX.
Quis o destino, o acaso, o milagre - chamem-lhe o que quiserem... - que os seus espólios tivessem entrado, também por uma pequena diferença de dias, na Biblioteca Nacional de Portugal (BN). Ambos estão no expurgo, uma câmara especificamente destinada a desinfectar e matar toda a bicharada que corrói os documentos dos espólios dos poetas, escritores e ensaístas que eles ou a família por eles doam à BN.
O primeiro a escrever foi ele: a rosa para Sophia, de Jorge de Sena, apareceu em Peregrinatio ad Loca Infecta, em 1969. O título? «A Sophia de Mello Braeyner Andressen Enviando-lhe Um Exemplar de Pedra Filosofal».
hhhhhhhhhhhh
«Filho e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?
(15/12/1950)
hhhhhhhhhhhhhhhhh
O cravo para Jorge de Sena aparece em Ilhas (1989), já depois de o poeta ter morrido. Intitulado «Carta(s) para Jorge de Sena», é bem mais longo.
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
«(...)
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
hhhhhhhhhhhh
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nosssa vida
jjjjjjjjjjjj
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem -
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho mpródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talhares louças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
- Grandioso vencedor e tão margo vencido -
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grande amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
jjjjjjjjjjjjjj
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta»"
mmmmmmmmmmmmmm
Carlos Câmara Leme, Sophia e Jorge fariam 90 anos neste mês
Revista LER, Livros & Leitores, Novembro 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Grande País, the best

Ao certo, desconheço se as estimadas barbeiras mudaram de rua e nem esta me esclarece, que não recordo se era doutor (juiz) ou santo.
Ou ou quer dizer outra coisa (avenida, vg...). Enfim, fica o agradecimento a quem descobre estas pérolas de arrepiar cabelos, qualquer que seja a rua.

Todos o sabem...

E agora, vê esta quadrinha de folclore sertanejo que por cá encontrei perdida:

O coração é um marvado
que nem sabe o que sente.
O pió é a gente gostá
di quem num gosta da gente.

Malvados mesmo, estes caboclos, não te parece? O pior é que acertam...

Mário-Henrique Leiria, Depoimentos Escritos
contos, poemas e cartas de amor, Estampa, 1997

terça-feira, 3 de novembro de 2009

The Cure - A Forest: Stereo

A pensar no (já saudoso) António Sérgio.

As horas...


 


Tenho uma confissão a fazer. Nos meus tempos de estudante, passei apenas a sintonizar a Rádio Universidade de Coimbra, lá para o meu segundo terceiro ano. E era um ouvinte esporádico, preferindo os discos compactos, compilações em jeito de banda sonora para aguentar o queimar de pestana.


Nos primeiros anos, a telefonia "rádio-despertador" servia mais para ouvir relatos de bola ou então para amanheceres tardios, marcados por um alto volume fanhoso que saía da única coluna.


Contudo, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e aparecem novos gostos. Na verdade, lembro-me bem, foi durante uma dessas sessões de estudo, à volta do direito dos conflitos - conceitos-quadro e reenvio - que, ouvindo a Rádio Comercial, me dei conta de um programa que, nesse final de ano de 2001, lá passava, a partir da uma da manhã, até às três - "A hora do Lobo" de António Sérgio.


Tal como ele resumia, era um programa dedicado "ao pensar alternativo", fora da mainstream, com "unicórnios e ciborgues" - uma crónica em voz feminina, fantasias urbanas e textos de vanguarda - e repleto de música com conceito - algo que se poderá resumir ao label do indie, mesmo sem passar muito tempo a saber o que isso realmente pode ser.


Nessa altura, entusiasmado por ter encontrado algo diferente, dei-me até ao trabalho de fazer também algo completamente extravagante - gravei algumas emissões em cassete. A razão de ser de tal anacronismo prendia-se, por um lado, com esse ambiente de madrugada oculta que o António Sérgio para mim imprimia no programa, e, por outro, porque, para saber quem era a banda, o cantor, ou a música que tinha passado e me tinha agradado, tinha de ouvir tudo de novo. A voz grave do António Sérgio - longe de qualquer defeito de dicção, nada disso - não me facilitava o trabalho de apontar numa lista aquelas que eu queria que fossem as minhas aquisições musicais seguintes.


Entretanto, "A Hora do Lobo" acabou na sequência daquilo que, para mim, na altura, foi o grande erro da Rádio Comercial: a mudança para um formato mainstream, de um sofrível pop - rendição feita às massas, que, no final de contas, também é certo, geram indirectamente as receitas necessárias ao pagamento dos salários e à sobrevivência económica de qualquer estação.


Perdi o António Sérgio de vista, durante uns anos até o ter descoberto novamente na Antena1, se a memória não me falha, num programa que, mesmo sem ser do "Lobo", tinha "As Horas" bem preenchidas, cheias de boa música. E foi com o António Sérgio que descobri bandas como os "Gothic Archies" e outras do género.


Mas também por estes lados, foi um luar de pouca dura.


E, no fim de tudo, vejo que agora cheguei atrasado... Perdi-me nas horas e, nem de propósito, descubro, esta noite na Rádio Universidade de Coimbra, o último "Viriato 25" - o programa, que, a nível de rubricas e estilo, repete e me faz recordar a "Hora do Lobo".


Os desencontros são algo desagradável. E apenas lamento não ter dado conta por onde é que o António Sérgio andava nestes últimos tempos. Ao ter ficado a perder, só me comprometo com uma coisa:


Com a memória de um dos melhores locutores do nosso "som da frente".

domingo, 1 de novembro de 2009

A seda e o som do mar

entrado no mar um Homem perde os contornos com que se agarra teimosamente às mentiras do mundo e só então respira pulmões do profundo e bebe o sal das espumas onde outrora as sereias deixaram desejos de seda e cantigas de búzios que só a solidão merece ouvir