sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Arte Poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
KKKKK
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.
kkkkkkk
Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
kkkkkkkkkk
Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouyro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso
kkkkkkk
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
kkkkkk
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.
kkkkkkkkkk
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
kkkkkkkkkk
Jorge Luis Borges, Poemas Escolhidos (tradução Ruy Belo)

Sem comentários: