quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Romance III

«"E é como lhe estou a dizer, senhor doutor, se a Junta não fizer nada para resolver o problema, não sei como será no próximo Verão..." - queixava-se o senhor Lopes, merceeiro, recentemente auto-proclamado empresário; se as obras de remodelação do espaço o tinham feito gastar as poupanças de uma vida, em nome do progresso e do turismo na terra, algum benefício pessoal, em jeito de consolo, deveria daí poder tirar, que raio! Agora que era proprietário não de uma mercearia mas de uma coisa a que na cidade davam o nome de "média-superfície".
Contudo, ao longo da conversa que estava a ter com o senhor doutor Luís, o senhor Lopes sentiu que algo se tinha passado... Uma leve e súbita mudança na atenção que o seu interlocutor lhe estava a dar.
Um silêncio incómodo e trapalhão tinha-se instalado entre eles. E Luís parecia agora olhar para lá do senhor Lopes.
A verdade é que, num despreocupado relance de canto, Luís tinha sentido um familiar aperto no estômago que antecedia sempre aqueles momentos de verdadeira revelação. A sua primeira reacção foi que não podia ser verdade. Não era mesmo possível... Ele via-se e desejava-se para estar noutro lugar, na companhia dela... Seria normal que os seus sentidos lhe pregassem estas partidas.
Contudo, do mesmo passo, ainda assim, atreveu-se a reparar com maior cuidado... Engolindo em seco, viu... era mesmo ela! Não tinha mudado nada durante aqueles anos todos.
Um breve sorriso pareceu desenhar-se no rosto de Eugénia. Luís estremeceu. Os seus olhos d'agua marinha continuavam a transmitir aquela marítima sensação de serenidade por onde ele já se tinha perdido em tempos... nos mesmos tempos que constantemente recordava e que também agora eram os responsáveis por esta vontade de reencontro concretizado. Eugénia parecia querer dizer-lhe "Eu vim... Estou aqui."
Após despedir-se educadamente do senhor Lopes, ainda incomodado com a aparente desconsideração do senhor doutor, Luís começou a caminhar para Eugénia. À beira do bar, segurando na mão uma contemplativa cerveja, sorria em jeito de desafio e, ao mesmo tempo, de interrogação. Um convite? Luís estaria prestes a descobrir, disso estava certo.
Na última noite de Verão, junto ao mar, todos os sonhos haveriam de voltar a ser possíveis. Os sonhos de um estio há muito esperado.»
Alexandre Villas-Diogo, "Sonhos de Estio"

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