sábado, 6 de setembro de 2008

O sangue dos César

QqqqqEu dizia a Séneca:
qqqqq- Ainda só tem quatro anos, mas já se assemelha a Calígula e Agripina. Será o sangue de César que, à nascença, transforma em feras estes humanos?
qqqqqEu apreciava as respostas comedidas de Séneca.
qqqqqConhecera-o quando servira o imperador Tibério. O seu porte altivo, o rosto que exprimia vontade e virilidade, a eloquência soberana que fazia dele o melhor orador do Senado, o advogado mais célebre, dono de uma retórica de filósofo estóico que defendia a sabedoria e a aceitação daquilo que não podemos dominar nem organizar, haviam-me seduzido.
qqqqqContava cerca de mais quinze anos do que eu e considerava-me um dos seus parentes próximos. Eu tinha, como ele, origens espanholas. Séneca nascera em Córdova, a exemplo dos meus antepassados.
qqqqqCaminhávamos lentamente pelo jardim da sua villa romana. Diziam-no rico e, de facto, eram muitos os escravos que se afadigavam em redor dos canteiros de flores.
qqqqq- O sangue dos César é semelhante ao de todos os homens - epilogava ele. - É tépido e viscoso. Vi morrer nobres romanos, de veias abertas, e o seu sangue tinha a mesma cor do dos escravos mortos à sua volta. Não, Sereno, os homens transformam-se em feras porque não há regras de sucessão no topo do Império. Têm de matar para não serem mortos. As leis da eleição, próprias da República, não são utilizadas para designar o imperador. Prevalece o gládio e não o voto. Quem quiser ser imperador deve fiar-se nos pretorianos e não nos cidadãos; nos generais, nos governadores, e não nos senadores. O tempo da República, o tempo que antecedeu César não voltará.
qqqqq - Então é o sangue? O punhal e o veneno, o assassinato? A soberania ilimitada de um homem que o poder enlouquece... - insurgia-me eu.
qqqqqSéneca pegava-me no braço e, de cabeça baixa, como se falasse sozinho, murmurava:
qqqqq- Importa que o imperador seja um homem sensato que não sucumba à loucura do poder supremo que o iguala a um deus. Importa que governe com comedimento e clemência, no interesse do Império, e que não procure unicamente os prazeres que o poder ilimitado proporciona. Importa que alguns homens à sua volta o chamem à razão, à sabedoria, que se tornem seus amigos, seus conselheiros.
qqqqq- Calígula? - perguntava eu.
qqqqqSéneca olhava à sua volta, antes de concluir:
qqqqq- Só os punhais poderão interromper a sua corrida. Estou certo que já há homens que afiam as lâminas. Não te imiscuas, sereno. Ainda não chegou o nosso tempo, o da sabedoria.

Max Gallo, Os Romanos (II), Nero - O Reinado do Anticristo
(trad. Isabel St. Aubyn, Edições ASA)

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