sexta-feira, 23 de maio de 2008

A tinta que falta

É uma velha piada que circulava na RDA sobre um trabalhador alemão que encontra trabalho na Sibéria. Consciente que todas as suas cartas serão lidas pelos censores, explica aos amigos: "Estabelecemos um código: se receberem uma carta escrita a tinta corrente, azul, estou a dizer a verdade; se ela estiver escrita a tinta vermelha, estou a mentir." Um mês depois, os amigos recebem a primeira carta, escrita a tinta azul: "Aqui tudo é maravilhoso, as lojas estão abastecidas, a comida é abundante, os aposentos espaçosos e bem aquecidos, as salas de cinema passam filmes ocidentais, há raparigas disponíveis - a única coisa que falta é a tinta vermelha".
A estrutura é mais complicada do que parece: mesmo não podendo indicar da forma previamente estabelecida que está a mentir, o trabalhador consegue passar a mensagem. Como? Inscrevendo a referência ao código na mensagem codificada, como um dos seus próprios elementos. É a clássica problemática da auto-referencialidade: se a carta está escrita a tinta azul, o seu conteúdo não é verdadeiro? O facto de mencionar a falta de tinta vermelha assinala que a carta deveria ter sido escrita a vermelho. O interessante é que seja essa mesma alusão a produzir o efeito de verdade, independentemente da sua própria verdade literal: mesmo que tivesse sido possível encontrar tinta vermelha, as condições específicas da censura implicavam necessariamente o recurso à mentira para conseguir transmitir a verdadeira mensagem.
Slavoj Zizek, Bem-vindo ao deserto do real, Relógio de Água.
(Slavoj Zizek é filósofo, psicanalista e cinéfilo. Investigador do Instituto de Sociologia de Liubliana, é também professor visitante na New School for Social Research, em Nova Iorque)

2 comentários:

Passiflora Maré disse...

Sofri um calafrio entre o momento que li a parte do texto anterior ao facto relatado, da falta da tinta vermelha, e o exacto momento desse relato.

Anónimo disse...

A comunicação não deixa de ser um complexo processo de misturas significantes. A tinta, no caso vermelha, adquire uma valoração significante muito própria e a história é profundamente reveladora.