quarta-feira, 16 de abril de 2008

Pastelaria Catita.9

Hoje pensa que terá sido o efeito explosivo da sonolência rancorosa, misturado à tília que bebera apressadamente. Ou talvez – sabe-se lá? – o rendilhado do ponto que saltou da revista de lavores para o entendimento e lhe intrincou os devaneios. O certo é que muito sonhou naquela noite. Não encontra melhor definição, embora, mais de trinta anos depois, saiba cada vez menos apartar as imagens do dia erguido das que se deitam connosco no leito e nos conduzem por mundos tão reais. Abraçara-se no engenheiro como uma trepadeira sôfrega e desenhara loucuras que nunca antes, mesmo a sonhar, havia sonhado. Foi a noite inteira de um tempo incontado.

Nos arrabaldes da Cruz Quebrada, o senhor Calisto deitara-se com semelhante ânsia e o destino permitiu-lhe que roubasse o sonho da predilecta. Sentia-se trepado de um enleio novo. Se a palavra fosse então permitida, um enleio (quase, quase) estonteante. Acordou revigorado de bem-quereres, como se houvesse uma flor nova no seu vasinho das escadas de serviço.

2 comentários:

Anónimo disse...

A boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor.
António Vieira

Anónimo disse...

o desejo, o aéreo e luminoso
e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era o céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta - o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.

(o desejo)

Eugénio de Andrade