domingo, 6 de abril de 2008

O amor é comestível

A. e B. (nomes verdadeiros de pessoas fictícias) tinham a habituação que o contrato matrimonial acarreta em sossego. Cumpriam os deveres com parcimónia, mas às sextas, quando os cinco úteis chegam ao pórtico de um fim-de-semana idealizado, A. esquecia-se da dor de cabeça e lia mais rápido o Kafka com chá de menta. Era então que B., matemático incorrigível, repisava as contas e se consolava na alegria íntima de 1/7 ser valor bastante ao débito. Não tanto pela quantidade – esclarecia-se – mas pelo valor da insistência periódica, pela certeza da regularidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco!

Eugénio de Andrade
- e é tão pouco!Ou NADA???

"...valor da insistência periódica, pela certeza da regularidade"???

Anónimo disse...

À noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com tôda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o ôlho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrêla música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto tôdas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

Antônio Ramos Rosa
...Soletra velhas palavras generosas!