Devo ter começado a fumar aos doze ou treze anos. Mas só comecei a engolir o fumo aos catorze, depois da humilhação produzida por um amigo que notou a minha maneira superficial de fumar. Ele denunciou-a como sendo uma batota. Mas era só ignorância. Queria ser um fumador a sério. Desde essa vez, nunca mais parei de engolir o fumo.
Passaram vinte anos, sempre dedicados e fiéis ao tabaco. Fui esmerado e leal. Até que um dia, ingrato, deixei de fumar. Eu não só fumava muito como também cheguei a ter um método que evitava uma impossível e indesejada saturação. Começava pela manhã com Marlboro; não essas mariquices lights, mas os verdadeiros, os dos cowboys com música de Os Sete magníficos. Quando podia, fumava Craven A, os meus preferidos, com um maior teor de nicotina e de condensado de alcatrão. Ao fim da tarde, passava aos míticos Gitanes sem filtro. Não andava ali a brincar. (…)
Até que um dia tomei a decisão de deixar de fumar. Não foi por medo de doença nenhuma. O cancro e os problemas cardiovasculares, não sei porquê, não conseguem ser suficientemente dissuasores. Suponho que se o tabaco provocasse herpes ou varíola as campanhas antitabágicas seriam mais eficazes. O meu problema era simples: acordava com uma tosse incómoda, barulhenta e muito, muito pouco discreta. Só passava depois do segundo ou terceiro cigarro. Foi assim que, farto desse acordar de tísico e de dar nas vistas, decidi abandonar o tabaco. Foi então que o pesadelo começou. O primeiro dia foi menos duro do que se poderia esperar. É uma questão de orgulho. Assim que comunicamos aos nossos mais chegados, ficamos com uma espécie de sensação de vaidade messiânica. Sobretudo se os mais chegados também fumam como morcegos. O problema começa no dia seguinte. Aquela pressão dos mais chegados transforma-se em indiferença. “Queres um cigarro? Ah! É verdade. Não te incomoda que fume” é o tormento mais usual. Sei de casos de desistências absolutamente deprimentes. De pessoas que três ou quatro dias depois recomeçaram a fumar e ninguém deu por nada. Eu não. Fazia questão que o mundo soubesse (…).
Ao segundo dia de ter deixado de fumar conheci a insónia pela primeira vez. Odiei-a, mas ela nunca mais me deixou. Dia, semanas e meses estive à procura do químico exacto que me devolvesse o meu dormir de bebé (…).
No meio de tanta infelicidade, decidi que pelo menos não podia andar a privar-me de tudo. Era necessário compensar tamanha falta de alegria. À medida que aquele mal-estar de que falei no começo desaparecia, o apetite e o sabor pela comida e a bebida aumentavam. Sempre gostei de comer e de beber, mas quando deixamos de fumar o sabor das coisas é mais puro, mais límpido. Isto parece bonito dito assim. Mas não é. È trágico. Para já desminto que antes de abandonar o tabaco eu era alto, loiro e magro. Eu era só magro. Deixei de o ser (…).
A propósito: quando fumava, qualquer mal-estar otorrinolaringológico, respiratório ou de simples fadiga era rapidamente explicado pelos meus excessos tabágicos. Agora, cada vez que tenho uma amigdalite, uma tosse inesperada, uma sonolência inoportuna, não tenho a quem raio culpar. Gasto o dobro em médicos, agora que estou livre do vício e supostamente saudável. Era tão bom dizer: “Ena pá! Estas escadas dão cabo de mim. Estou a fumar de mais. Tenho que me cuidar, pá…tens lume?”
Carlos Quevedo (nos idos de 1990), Já Não Me Lembrava – os delírios da Kapa e outros textos, Oficina do Livro, 2006.
Com especial dedicatória ao ilustre Viriato Castro e em desagravo de malévolos dizeres que diamantes (ralos como o talco) lançam à blogosfera, sem propósito.
Passaram vinte anos, sempre dedicados e fiéis ao tabaco. Fui esmerado e leal. Até que um dia, ingrato, deixei de fumar. Eu não só fumava muito como também cheguei a ter um método que evitava uma impossível e indesejada saturação. Começava pela manhã com Marlboro; não essas mariquices lights, mas os verdadeiros, os dos cowboys com música de Os Sete magníficos. Quando podia, fumava Craven A, os meus preferidos, com um maior teor de nicotina e de condensado de alcatrão. Ao fim da tarde, passava aos míticos Gitanes sem filtro. Não andava ali a brincar. (…)
Até que um dia tomei a decisão de deixar de fumar. Não foi por medo de doença nenhuma. O cancro e os problemas cardiovasculares, não sei porquê, não conseguem ser suficientemente dissuasores. Suponho que se o tabaco provocasse herpes ou varíola as campanhas antitabágicas seriam mais eficazes. O meu problema era simples: acordava com uma tosse incómoda, barulhenta e muito, muito pouco discreta. Só passava depois do segundo ou terceiro cigarro. Foi assim que, farto desse acordar de tísico e de dar nas vistas, decidi abandonar o tabaco. Foi então que o pesadelo começou. O primeiro dia foi menos duro do que se poderia esperar. É uma questão de orgulho. Assim que comunicamos aos nossos mais chegados, ficamos com uma espécie de sensação de vaidade messiânica. Sobretudo se os mais chegados também fumam como morcegos. O problema começa no dia seguinte. Aquela pressão dos mais chegados transforma-se em indiferença. “Queres um cigarro? Ah! É verdade. Não te incomoda que fume” é o tormento mais usual. Sei de casos de desistências absolutamente deprimentes. De pessoas que três ou quatro dias depois recomeçaram a fumar e ninguém deu por nada. Eu não. Fazia questão que o mundo soubesse (…).
Ao segundo dia de ter deixado de fumar conheci a insónia pela primeira vez. Odiei-a, mas ela nunca mais me deixou. Dia, semanas e meses estive à procura do químico exacto que me devolvesse o meu dormir de bebé (…).
No meio de tanta infelicidade, decidi que pelo menos não podia andar a privar-me de tudo. Era necessário compensar tamanha falta de alegria. À medida que aquele mal-estar de que falei no começo desaparecia, o apetite e o sabor pela comida e a bebida aumentavam. Sempre gostei de comer e de beber, mas quando deixamos de fumar o sabor das coisas é mais puro, mais límpido. Isto parece bonito dito assim. Mas não é. È trágico. Para já desminto que antes de abandonar o tabaco eu era alto, loiro e magro. Eu era só magro. Deixei de o ser (…).
A propósito: quando fumava, qualquer mal-estar otorrinolaringológico, respiratório ou de simples fadiga era rapidamente explicado pelos meus excessos tabágicos. Agora, cada vez que tenho uma amigdalite, uma tosse inesperada, uma sonolência inoportuna, não tenho a quem raio culpar. Gasto o dobro em médicos, agora que estou livre do vício e supostamente saudável. Era tão bom dizer: “Ena pá! Estas escadas dão cabo de mim. Estou a fumar de mais. Tenho que me cuidar, pá…tens lume?”
Carlos Quevedo (nos idos de 1990), Já Não Me Lembrava – os delírios da Kapa e outros textos, Oficina do Livro, 2006.
Com especial dedicatória ao ilustre Viriato Castro e em desagravo de malévolos dizeres que diamantes (ralos como o talco) lançam à blogosfera, sem propósito.
2 comentários:
Meu Caro Júlio, é com um abraço grato que leio o post que ora comento. Entre uns travos de boquilha e uns novelos de fumo, o aroma de Borkum Riff vai contradizendo, uma vez mais, Magritte, pois, aqui, "ceci est une pipe"!
Quer a gente deixe, quer a gente persista há sempre uma ocasião longa de arrependimento.
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