sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

GLOSA

Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?

Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do irreal que ninguém tece?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava".

Fernando Pessoa, 1929

1 comentário:

Anónimo disse...

"não sei o que ter possa de verdade
do visto do mundo a não-verdade triste
ou que futuro, na planta em flor, resiste
desconhecido atá à realidade.

como arco-iris que da chuva atravessa
terra e céus frescos, após a bonança
real ou não, já cruza a esperança
o momento da nossa dor que cessa.

mas se a dor real como mal é tida
na esperança temos um melhor penhor;
já que não devia a dor ser sentida,

p'ra procurar o homem tem motivo
se o tempo se mede por idade e dor
que os prazeres do tempo um melhor abrigo".

Fernando Pessoa
Poesia Inglesa, trad. Luísa Freire