sexta-feira, 31 de outubro de 2008
AMOR
espaço branco brotará
o ínfimo do absoluto.
E sei. Sinto que
se basta num olhar.
regresso
sento-me à varanda da tua lembrança,
distinguindo os gritos de sufocos,
como se fosses separável
entre desafio e eco. Dilacera-me
a irrenunciabilidade
a que obriga um amor (inexistente). És
uma moldura de prata, burilada de outrora
e hoje lascada. Em dias límpidos
ainda te respeitava a sépia dos beijos antigos,
e cheguei a alçar-te do frigorífico morto
para te embandeirar na cómoda
assoberbada dos naperons que te escondiam
o frio outonal das nossa despedidas.
Foi tempo.
Irremediavelmente deixado por remendar
(nem as agulhas da sogra, equilibradas
nas mãos inteiras da vida completa
te ensinaram o tricô do afecto), gasto
antes de completo. Deixado
no lixo de uma estação surrealista
que só aceita partidas antes das chegadas.
Como os poetas sofrem alegorias
sem que lhes sobre consolo.
Está roto o mercado da troca dos sonhos.
Não há moeda; apenas memória
dos tempos esquecidos, os que
se aceitam sem dó, por compromisso.
Se voltasse atrás
(dizem os sábios, como se um se fo sse alteridade
à – na – dimensão do mundo)
perguntam-me se faria o mesmo;
Ora: - estou farto de perguntas.
Tu questionavas-me:
- se nunca te deixava
- se o meu amor não morreria
- se te amaria para sempre.
(- e sim: sempre é quase um dia inteiro)
e estou farto desses sinais
que simulam seitoiras
enclausuradas em cabos de perplexidade.
(continua. mentira)
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
A ignorância premiada
Glossário Avulso
Jogo, jogos...
instante e postal de um quadro de Balthus, O jogo de cartas (La partida de naipes), 1948 - 1950, Oléo. 140 x 194 cm. Museu Thyssen Bornemisza, Madrid
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Filhos da Pauta
Apesar de a menina (Regina Spektor) fazer campanha pelo Senador Obama - o que vai um pouco contra as minhas preferências -, não deixo de querer partilhar com os convivas da esplanada o que me parece ser uma excelente banda sonora para que as tardes de Outono se tornem agradáveis. Mesmo quando anoitece mais cedo.
A passar n'A Esplanada.
Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel Garcia Marques
Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel Garcia Marques
sábado, 25 de outubro de 2008
Arquipélago da Insónia (...)
"gostava de encher os livros de silêncio (para que o leitor os pudesse preencher)"
Gosto mais dos primeiros; insisto e gosto mais dos primeiros. Aqueles que o próprio diz não gostar.
Mas gosto imenso de o ouvir falar.
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
Fabuloso
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Ser poeta
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
Sem outro intuito
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava, Vulcão, I
"Dos relâmpagos às trevas"
A partitura do Impossível
não pertence
à partitura do tempo.
Quem grita em altos gritos
não pertence
à sinfonia das nuvens.
Qual é o músico
que trabalha com
a imensidade do negro
e a agonia sem esperança?
Ramos Rosa, Estrias, 1990
Glossário Avulso
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Glossário Avulso
s. m., Zool.,
pequeno molusco marítimo univalve;
burrié;
doença das salinas causada pela presença daquele molusco;ant.,
designação de obra de talha em S ou caracol com que eram rematados os leques ou rodas de proa de alguns navios;
espécie de repolho (couve);
domingo, 19 de outubro de 2008
Tudo o que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-se escravizado.
Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fique proscrito.
Cada voto que fiz ergue-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.
Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.
Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
VINICIUS, Soneto a quatro mãos (com Paulo Mendes Campos), 1945
sábado, 18 de outubro de 2008
Longo tempo são três dias
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
"É o inconcebível infinito o seu puro nada / que nas palavras ressoa com a incandescência do ser"
A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.
A palavra, Acordes, 1989
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Asas do Desejo
Asas do Desejo
Título Original: Der Himmel ünder Berlin
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 130 minutos
Ano de Lançamento (Alemanha): 1987
Estúdio: Argos Films / Road Movies Filmproduktion / Westdeutscher Rundfunk Distribuição: Orion Classics
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Peter Handke e Wim Wenders
Produção: Anatole Dauman e Wim Wenders
Música: Jürgen Knieper
Fotografia: Henri Alekan
Desenho de Produção: Heidi Lüdi
Figurino: Monika Jacobs
Edição: Peter Przygodda
Elenco
Bruno Ganz (Damiel)
Solveig Dommartin (Marion)
Otto Sander (Cassiel)
Curt Bois (Homer)
Peter Falk (Peter Falk)
Na Berlim pós-guerra, dois anjos vagueiam pela cidade. Invisíveis aos mortais, eles lêem seus pensamentos e tentam confortar a solidão e a depressão das almas que encontram. Entretanto, um dos anjos, ao se apaixonar por uma trapezista, deseja se tornar um humano para experimentar as alegrias de cada dia.
A Woman of No Importance
HESTER. Mr. Arbuthnot is very charming.
LADY CAROLINE. Ah, yes! the young man who has a post in a bank. Lady Hunstanton is most kind in asking him here, and Lord Illingworth seems to have taken quite a fancy to him. I am not sure, however, that Jane is right in taking him out of his position. In my young days, Miss Worsley, one never met any one in society who worked for their living. It was not considered the thing.
HESTER. In America those are the people we respect most.
LADY CAROLINE. I have no doubt of it.
HESTER. Mr. Arbuthnot has a beautiful nature! He is so simple, so sincere. He has one of the most beautiful natures I have ever come across. It is a privilege to meet HIM.
LADY CAROLINE. It is not customary in England, Miss Worsley, for a young lady to speak with such enthusiasm of any person of the opposite sex. English women conceal their feelings till after they are married. They show them then.
HESTER. Do you, in England, allow no friendship to exist between a young man and a young girl?
[Enter LADY HUNSTANTON, followed by Footman with shawls and a cushion.]
LADY CAROLINE. We think it very inadvisable. Jane, I was just saying what a pleasant party you have asked us to meet. You have a wonderful power of selection. It is quite a gift.
LADY HUNSTANTON. Dear Caroline, how kind of you! I think we all do fit in very nicely together. And I hope our charming American visitor will carry back pleasant recollections of our English country life. [To Footman.] The cushion, there, Francis. And my shawl. The Shetland. Get the Shetland. [Exit Footman for shawl.]
A Woman of No Importance
Primeiro Acto
Oscar Wilde
Pretty Girls Make Graves
"There is a quick and easy way" you say
Before you illustrate
I'd rather state:
"I'm not the man you think I am
I'm not the man you think I am
"And Sorrow's native son
He will not smile for anyone
And Pretty Girls Make Graves
End of the pier, end of the bay
You tug my arm, and say:
"Give in to lust
Give up to lust
oh heaven knows we'll
Soon be dust..."
But I'm not the man you think I am
I'm not the man you think I am
And Sorrow's native son
He will not rise for anyone
And Pretty Girls Make Graves
(OK)
I could have been wild and I could have
Been free
But Nature played this trick on me
She wants it Now
And she will not wait
But she's too rough
And I'm too delicate
Then, on the sand
Another man, he takes her hand
A smile lights up her stupid face
(and well, it would)
I lost my faith in Womanhood
I lost my faith in Womanhood
I lost my faith...
Morrissey
Glossário Avulso
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Filosóficas (parte ns)
Marx, Groucho
(cit. Thomas Cathcart e daniel klein, Platão e e um Ornitorrinco entram num bar...)
Romance II
No seu íntimo, procurava recordar, até ao mais pequeno pormenor, os acontecimentos da noite anterior.
Já alta a Lua e depois de ter arriscado a sua sorte na quermesse (onde ganhou alguns bordados e rendas), tinha-se decidido a entrar no salão de baile, onde o artista local, virtuoso das teclas, num misto de melancolia e saudade, tocava e cantava a balada da despedida do Verão. Um mote simples, supostamente inspirado no melhor do rock 'n roll.
'... E na praia do meu coração/Sopra já o vento da separação', esta uma das estrofes, em pobre rima, que prenunciava uma qualquer intempérie, pouco desejada por todos os amantes dos dias grandes, ali presentes.
Ao aproximar-se do bar improvisado em ripas de madeira e com uma tosca cobertura de folhas de videira e louro, desejosa de um bom, mas ali impossível, gin tónico, Eugénia avistou Luís à conversa com alguns daqueles que seriam os homens bons, importantes, da terra. Possivelmente comerciantes e caciques locais. Ao contemplá-lo longamente, Eugénia deu-se conta de que ele tinha envelhecido um pouco, mantendo, no entanto, aquele enigmático ar que desde a primeira vez a tinha seduzido... O sorriso a três quartos do lábio e o olhar fixo que procurava sempre prescutar o íntimo do seu interlocutor, deixando-o no mínimo embaraçado, confuso e, por fim, rendido a quaisquer que fossem os seus argumentos.
De súbito, reparou que Luís olhava na sua direcção. A sua atitude tinha mudado, constatava ela. Os seus olhares cruzaram-se e logo ali sentiram um certo desconforto, imperceptível para os demais convivas que lhes estavam próximos.
Eugénia sentia agora um adocicado aperto no peito, um típico peso no estômago e um rubro calor na face. Luís encaminhava-se para ela, deixando para trás a sua enfadonha tertúlia, esta ainda a tentar perceber o porquê do abrupto 'até já' com que ele se despediu.
A sorte deste reecontro estava prestes a ser ditada..."
"Sonhos de Estio", Alexandre Villas-Diogo
Olhos de rosas
Vivas; onde espinhos enfeitam o quadro
Nas alturas esquecidas, nas assombrosas
Tu estivesses aconchegada do meu lado.
Gostava que o teu encanto fosse breve
Como os deuses apaixonam juventude
E que o extraviado servo que te serve,
Viesse perder no teu olhar a solitude.
terça-feira, 14 de outubro de 2008
"Então, vá, fica bem!"
Vintage Geek II
Um dos aspectos que mais me atrai na visão futurista que se teve do mundo nas décadas de '50 e '60 - como certamente nas que lhes antecederam - é a versatilidade com que os autores das ideias mais arrojadas exprimiram o que ainda seriam projectos um tanto ou quanto difíceis de alcançar.
Mas realmente é vendo tal criatividade, tal capacidade de pensar "mais à frente", ainda que com os meios disponíveis na altura, que me interrogo muitas vezes se, actualmente - num tempo em que o "dado" e o "construído" ditam os cânones da concepção - vamos sendo capazes de fazer o mesmo.
Muito bem lembrado por quem também gosta destas "geekices".
Originalmente publicado na esplanada.
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
o mais atento que custe,
com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,
quando te olhas,
espera que desapareça o ruído em cada palavra,
e agora só a ela se ouça,
e então aumenta tanto quanto possas se escutas
que me aproximo,
a género de abrasadura mulheril,
a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,
edoi lelia doura,
que o mênstruo coza e a seda escume,
à luz que nasce da roupa,
e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera
e frescor da língua indestrutível,
e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,
se é que posso fulgurar,
e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,
isto: que unas o avulso,
se te puderes mover como o ar que respiro, ó
irrepetível, inenarrável, inerente
Herberto Helder, A faca não corta o fogo, súmula & inédita
domingo, 12 de outubro de 2008
Capital
(…)
Dinheiro enquanto dinheiro e dinheiro enquanto capital distinguem-se, antes de mais, apenas pela sua forma diversa de circulação.
Karl Marx
O Capital
Segunda secção
Capitulo IV
A transformação de dinheiro em capital
Olhos nos olhos, que tensão crescente!
Dentro de nós um par de sombra sobe;
(que anelo dói? que orgulho se ressente?)
que suspensão no rito as não comove?
Olhos nos olhos, nossa feições caem.
Nas duas sombras acendeu-se o olhar.
Compactas como corpos se não saem,
ficamos ambos sem lugar do ar.
Sebastião Alba, Ciúme, A noite dividida
A minha é igual à tua.
Presas as mãos e preso o coração,
enchemos de sombra a mesma rua.
A nossa casa é onde a neve aquece.
A nossa festa, onde o luar acaba.
Cada verso em nós próprios apodrece,
cada jardim nos fecha a sua entrada.
Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos, XXXIII
sábado, 11 de outubro de 2008
Que diria Molero?
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
Filosófi(c)as...
(Russel, A Minha Concepção Do Mundo)
Russel ter-se-á enganado ou é no seu acerto que está o mal?
Na "queixa" - e na deixa - dos economistas, afinal para que serve um filósofo?
terça-feira, 7 de outubro de 2008
Edgar Allan Poe
Ecónomias
Para que serve um economista?
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
Fim
“Eu sinto, cada vez mais frequentemente, desejo por outros homens.” Disse a Cristina fitando o infinito vazio da rua, evitando olhar para mim.
Conseguem sentir o ar a tornar-se viscoso?, tornando cada vez mais difícil qualquer tipo de movimento ou reacção?
“Talvez, se fosses mais homem, nós poderíamos ter tido mais sexo” continua ela, plastificando a gosma incolor e inodora que nos rodeia, impedindo-me de respirar de uma forma normal, turvando a minha memória.
O regresso a casa foi difícil, demasiado lento e obscuro. Aquilo mais recordo é a imagem dos edifícios que se pareciam arquear sobre a rua…
Os Sete Samurais
Título Original: Shicinin No Samurai
Tempo de Duração: 208 minutos
Ano de Lançamento (Japão): 1954
Estúdio: Toho
Distribuição: Columbia Pictures
Realização/Direcção: Akira Kurosawa
Roteiro: Shinobu Hashimoto, Akira Kurosawa e Hideo Oguni
Produção: Sojiro Motoki
Música: Fumio Hayasaka
Fotografia: Asakazu Nakai
Desenho de Produção: Takashi Matsuyama
Figurino: Kôhei Ezaki
Edição: Akira Kurosawa
No século XVI, durante a era Sengoku, quando os poderosos samurais de outrora estavam com os dias contados pois eram agora desprezados pelos seus aristocráticos senhores. Kambei (Takashi Shimura), um guerreiro veterano sem dinheiro, chega a uma aldeia que foi saqueada repetidamente por ladrões assassinos. Os moradores da aldeia pedem a sua ajuda, fazendo com que Kambei recrute seis outros “ronins”, que concordam em ensinar os habitantes como devem se defender em troca de comida…
domingo, 5 de outubro de 2008
A ESFINGE SEM SEGREDO
- Não compreendo as mulheres bastante bem - respondeu.
- Meu caro Geraldo - disse -, as mulheres estão feitas para serem amadas e não para serem compreendidas.
- Não posso amar sem ter confiança absoluta - replicou.
Oscar Wilde
Res Publica
Um tal (I)
sábado, 4 de outubro de 2008
liberta-me
a ti me entrego em desmedida negação de sobras reservas
e fico preso à ânsia de nunca querer um rumo certo,
uma responsabilidade.
“Vou ausentar-me por algum tempo”, se assim
me deixares ser sério:
Era uma vez na América –
Brindo ao fim da lei seca,
ao último carregamento!
Quem é que vai querer beber aqui ilegalmente?
Deita uma frase e eu construo um verso;
lança um sorriso e eu lavro um poema.
Que pena:
Grita um grito e eu fico!
Não:
Liberta-me desta liberdade.
e. u. m., P.I
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Poesia...
Poesia é esta guerra que me travo
num sabor estranho de entender,
ora de doce gosto, ora amargo.
No que invento finjo compreender
as mentiras que me pinto
de verdades.
O que sinto e não sinto:
Corações inteiros,
corações parceiros
que reparto em metades.
A poesia é tudo e nada,
ao mesmo tempo.
O som de uma terra arada,
o silêncio de um lamento.
A angústia que não rima,
de propósito.
Porque a música
(é sina e desatina)
lhe dá um gosto pastoso.
Quero dar cabo do verso,
fugir da nota que embala;
Não inventar um pretexto
p’ra te ritmar a fala.
Esforço mas não consigo
que o poema seja rude.
Será de sonhar contigo?
De facto, sonho amiúde!
(15.12.2007)
Como viver. O que fazer
Impura sobre um mundo inexpugnado.
O homem e seu companheiro pararam
Para descansar sobre a heróica altura.
Friamente o vento caiu sobre eles
Em muitas majestades de som:
Eles que tinham deixado o sol de chama caprichosa
Em busca de um sol de fogo mais intenso.
....
Wallace Stevens (nasc. a 2.10.1879)
Ficção Suprema, trad. de Luísa Queiroz de Campos
sei lá se vejo ou se imagino...
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
Mas Que Sei Eu
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo (1933 - 1978)
Todos os Poemas, II
Romance
Pouca coisa tinha mudado ao longo daqueles anos todos... Dez ou doze no total. A mesma sensação de promessa incumprida, o mesmo sentimento de demanda inacabada, a mesma irrequieta inquietude de quem, qual animal encurralado, sabe que o lugar ideal é outro, bem distante do presente, exíguo e sufocante.
Por fim, tinha aprendido a saborear lentamente essa derrota interior, com um travo amargo de conformismo e uma certa fragrância agridoce de incompletude acomodada.
Acaso o destino lhe daria outra chance?
Pela estranha combinação dos termos da retórica pergunta assim formulada, Luís experimentava, uma vez mais, um familiar, mas odiado, cepticismo.
Restava-lhe, pois, suspirar... Um longo suspiro a acompanhar o som de mais uma onda que, suavemente, e sem esforço, rebentava junto às rochas, abaixo da sua varanda.
Ao levantar-se da sua cadeira de lona, dirigiu-se à sala, atravessando a soleira da porta de vidro corrida, fronteira àquele seu belveder de rubros tijolos cozidos e alva cal. O copo largo acabado de pousar no balcão do bar... O scotch mal acabado e as duas pedras de gelo ainda, lentamente, a derreter.
A noite era de festa - a última dos tempos do Estio que findava, ingrato ou insensível, deixando apenas recordações de dias grandes e de um calor propício a tais divagações adolescentes.
Noite de festa no salão de baile da terra. Gambiarras de lâmpadas colocadas nas copas das árvores que assim largavam agora todo o seu viço, a par de uma luz dourada acolhedora. O cheiro a frango assado, as conversas soltas e os acordes de um fanhoso órgão em teste de som preencheriam o ar. Este o cenário que o esperava. Pelo menos, sempre seria melhor do que ficar em casa a embebedar-se que nem um perdido.
De todo o modo, uma coisa era certa. O cenário que o esperava, mesmo assim, só o faria querer e desejar encontrar-se noutro lugar. Naquele onde o sonho de uma vida morava.
Eugénia tinha chegado há poucas horas. Depois de ter que fazer conversa com um taxista que parecia ter aprendido inglês pela cartilha de um qualquer marialva mais instruído, foi prontamente encaminhada ao quarto que tinha previamente reservado na pensão da aldeia. O ar estava abafado e o cheiro a naftalina vindo dos lençóis de linho provocava-lhe náuseas. Pousadas as malas começou a despir-se, encaminhando-se para a banheira de ladrilhos verdes e brancos. Indecisa entre um duche e um banho de imersão, abriu despreocupadamente a torneira misturadora. O som da água assim a jorrar sempre a tinha acalmado. Sim, porque Eugénia estava nervosa. Que loucura esta de largar a agência e vir sem nada dizer! A primeira vez que tinha tentado cumprir a promessa, o Destino, ou simplesmente o acaso, tinha-lhe pregado uma partida com que não contava. A ingratidão provou ser uma arma cruel, quando combinada com um desprezo sofrido e a invocação de compromissos que não podiam, de maneira nenhuma, competir com o que eles os dois tinham, há tantos anos. Ao entrar na banheira que acabou por deixar encher, Eugénia tentava imaginar como chegaria à fala com ele. A última mensagem recebida dizia que ele estaria ali durante todo o Verão, a descansar, indo apenas embora de regresso à cidade no final de Setembro, princípios de Outubro. A anafada senhora da recepção tinha-lhe tentado dizer qualquer coisa sobre uma festa que teria lugar, ao que parecia, naquela noite, no salão de baile.
A aldeia despertava-lhe qualquer coisa de familiar. Estava habituada a uma insularidade rural que aqui parecia ter sido quase clonada. Quem diria?
Puxando os molhados cabelos castanhos-claros para trás, Eugénia deixou-se mergulhar na banheira, afundando-se na espuma dos sais que tinha colocado na água tépida. Tinha tomado uma decisão. À hora do começo da festa, iria a terreiro, em romaria, deixando-se por lá ficar... O que quer que o destino, ou, de qualquer modo, o acaso - mais uma vez a mesma indecisão - lhe tivessem reservado, estava confiante de que iria encontrar."
"Sonhos de Estio" - Alexandre Villas-Diogo