quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Isso de outro fim... não temos. Fim é fim. Enfim, é assim.
Podemos é desejar que os anos felizes sejam uma mão cheia deles.
Isso sim, e para todos os amigos.

2009



A todos, onde quer que estejam, um ano 2009 pleno de coisas boas!

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

vida, caminho sempre à frente

fffffff No peito das gaivotas pintaram a idade dos teus cabelos
fffffff e a luz dos teus olhos tem o verde disfarçado do mar
fffffff a vida, à frente, sempre segue, desenrolando novelos
fffffff e basta ter asas por dentro para continuar a voar.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Relatividade



Em 1971, Joseph Hafele e Richard Keating puseram relógios atómicos muito sofisticados a bordo de um voo num jacto comercial da Pan Am que deu a volta ao mundo. Quando compararam os relógios que voaram no avião com relógios idênticos que tinham sido deixados (estacionários) no solo, descobriram que tinha passado menos tempo nos relógios que se tinham movido. A diferença é minúscula – umas centenas de bilionésimos de segundo –, mas estava exactamente de acordo com as descobertas de Einstein.

Brian Green
O Tecido do Cosmos
Espaço, tempo e textura da realidade
Colecção Ciência Aberta
Gradiva

domingo, 28 de dezembro de 2008

sábado, 27 de dezembro de 2008

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Harold Pinter



Harold Pinter nasceu em Londres a 10 de Outubro de 1930 e faleceu no passado dia 24 de Dezembro. Foi um dos grandes dramaturgos do século XX, para além de ter sido actor, director, poeta, roteirista, e certamente, um destacado e incómodo activista político britânico. Foi um dos grandes representantes do teatro do absurdo junto com Samuel Beckett e Eugène Ionesco.
Principais obras
Prosa
Kullus (1949)
The Dwarfs (1952-56)
Latest Reports from the Stock Exchange (1953)
The Black and White (1954-55)
The Examination (1955)
Tea Party (1963)
The Coast (1975)
Problem (1976)
Lola (1977)
Short Story (1995)
Girls (1995)
Sorry About This (1999)
God's District (1997)
Tess (2000)
Voices in the Tunnel (2001)
Poesia
War (2003)
Teatro
The room (1957)
The birthday party (1957)
The dumb waiter (1957)
The caretaker (1960)
A slight ache (1961)
The homecoming (1965)
Md Times (1971)
No Maris land (1975)
Fonte: wikipedia
A nossa homenagem

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

(a cantar, com ou sem galo, até 2009...)

nnnnnnnnnnnn Com sobras e acrescentos,
nnnnnnnnnnnn haja Natal a todos os momentos

nnnnnnn(rogando desculpa se o paladar não for postável)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Crónica do Rei Pasmado



















O corpo de Marfisa tinha ficado meio a descoberto: deixava ver a cabeleira, as costas, a fina cintura, o arranque das nádegas. O Rei fitou-a. Com surpresa, com estupefacção.
- Viste coisa mais bela?
- Há muitas coisas belas no mundo.
- Mais do que o corpo de uma mulher?
- Se é o de Marfisa, dificilmente.
- Até ontem à noite, nunca tinha visto uma mulher nua.
- E então?
- O paraíso tem que ser uma coisa semelhante.
O conde torceu o nariz.
- Não creio que os senhores inquisidores aprovassem essa ideia.
- Que saberão os senhores inquisidores de mulheres nuas?
- Segundo eles, tudo.
O Rei já se encontrava meio vestido. O conde pediu a Lucrécia uma bacia com água fresca. O Rei começou a remexer na escarcela.


EDITORIAL CAMINHO
Gonzalo Torrente Ballester
Título original:
Crónica del Rey Pasmado

Tradução de António Gonçalves
(C) Gonzalo Torrente Ballester, 1989


Klaus Nomi - Total Eclipse (live)

Com um ligeiro atraso, para a amiga Isabel...

Vincent van Gogh



A 23 de Dezembro de 1888, Vincent corta um pedaço da sua orelha esquerda, que embrulha num lenço e leva, como presente, a uma prostituta sua amiga, chamada Rachel.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Quando um Homem quiser

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher


José Carlos Ary dos Santos

sábado, 20 de dezembro de 2008

mar esquecido

Tinhas o rosto engalanado da fé
quando víamos horizonte e mar
Gaivotas volteavam traços, até
perderem voltas de desamarrar

Confirmávamos promessas antigas
ao desfazermos as perdidas brigas

O tempo parava no nosso olhar,
nem canções soavam no silêncio
no efeito da translação estancar,
mundo que não creio nem penso

O que se nos perdeu de eternidade
nesse espaço que nos traz ao hoje?
O que sabemos, se é da realidade,
tão pouco q' entre mãos nos foge?

(20.01.2008)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Perfume na escuridão

Que rasto se colou aos teus
passos sem caminho
que oiço a respiração da tua vinda
mas cego o gesto
que te abraçaria

Deixa que o perfume
dos sonhos meeiros
te adivinhem o rosto
esse que os tantos anos
terão amassado
e foram desistindo
em corromper:
tenho a divina certeza
que teu sorriso
mantém o mesmo olhar

(de papoila luminosa
onde guardava os tesouros
imaginados de menino)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Via-a serenamente, a contar as horas que
faltavam para ele chegar.
Mas ele não chegou,
com o seu manto azul,
àquele pátio onde ela o esperava, todos os dias,
ano após ano,
com o rosário de sal das noivas eternas,
esquecido nas mãos.

Ela tinha tempo, era jovem,
e jovem o seu corpo e o seu coração.

A alma, porém,
navegara os oceanos,
perdera-se em cada porto,
em cada lenço de dizer adeus,
nos labirintos onde conheceu o esplendor das
navalhas,
o sangue que deixava o seu rasto num
umbral e numa esquina.
Era uma vida de açucenas desfeitas.
E ela ia e vinha, sonambulamente, apagando as
estrelas.

Tinha,
na boca entreaberta,
o travo amargo das laranjas doentes,
dos licores de ervas muito verdes que colhera na
infância dos países do mal.

Tinha medo.

Mas, serenamente,
continuava a contar as horas que faltavam
para ele chegar,
para que do seu manto azul se soltassem as
flores sem cor
que vivem na secreta transparência dos corais.

José Agostinho Baptista, Via-a Serenamente
Esta Voz É Quase O Vento

sábado, 13 de dezembro de 2008

Parabéns P. A.

Todos os dias se nasce, todos os dias se morre. No dia 13 de Dezembro, corria o ano de 1312, nasce Eduardo III, rei de Inglaterra; cerca de cento e cinquenta anos depois, em 1460, com a idade de 66 anos, morre o grande impulsionador da expansão marítima e criador da Escola Naútica de Sagres. No mesmo dia, mas em 1850, nasce o romancista Robert Stevenson; dezoito anos depois morre Rossini e em 1903, também em França, o pintor Camille Pissaro.
kkkkkkkkkkkkk
Ao caro amigo que no olhar não deixa que se acerte na idade, votos de longas letras, pinturas e vida.
lllllllllllllllllllll
Aos anos que nunca passam.

Antes que a morte te leve, Ó leva tu isto de volta (Dylan Thomas)


Uma operação indolor de quinze minutos e a vida voltava a parecer ilimitada. Eu era um homem que deixava de ser impotente perante uma coisa tão elementar como conseguir urinar para dentro de um pote. Ter o domínio da sua própria bexiga - que homem robusto e saudável pensa alguma vez na liberdade que isso dá ou na vulnerabilidade ansiosa que a sua perda pode impor mesmo ao mais confiante de todos? Eu, que nunca tinha pensado deste modo, que desde os doze anos de idade era cioso da minha individualidade e aceitava de bom grado tudo quanto em mim fosse invulgar - podia agora ser um homem igual aos outros.
hhhhhhhhhhhh
Tinha-me ido embora para fugir de uma ameaça autêntica, acabei por ficar longe para me libertar daquilo que deixara de me interessar e, como seria o sonho de qualquer pessoa, para me libertar das consequências persistentes dos erros de uma vida inteira (no meu caso, repetidos fracassos conjugais, adultério furtuito, o bumerangue emocional da obsessão erótica). Presumivelmente por agir em vez de me limitar a sonhar, tinha acabado por me libertar também de mim próprio.
fffffffffff
«Não ia adiantar», disse-lhe eu.
«O senhor tem mais experiência do que eu: o que é que adianta?»
«A solução dos senis: esquecer.»
«O senhor não é senil», disse kliman.
«Mas esqueci.»
gggggggggg
Mas a morte de George Plimpton não foi humorística nem invulgar. E também não foi nenhuma fantasia. Não morreu envergando o equipamento às riscas no Yankee Stadium mas sim em pijama durante o sono. Morreu como todos nós morremos: como um perfeito amador.
hhhhhhhhhhh
Ele: Você está a atravessar a linha de sombra do Conrad, primeiro da infância para a maturidade, depois da maturidade para outra coisa.
Ela: Para a insanidade. Estou aí daqui a pouco.
gggggggggg
Philip Roth, Exit, O fantasma sai de cena, Dom Quixote

A linha divisória


De facto, quando meditamos na significação do nosso próprio passado temos a impressão que ele enche o mundo inteiro em profundidade e em grandeza...

Só os jovens passam por momentos assim (...)

É neste período da vida que os momentos de que tenho estado a falar têm probabilidades maiores de acontecerem. Mas que momentos? Bem, momentos de tédio, de cansaço, de descontentamento. momentos de precipitação. Quer dizer momentos em que o jovem tende ainda, por força da sua natureza, a praticar actos irreflectidos, como casar de um instante para o outro ou abandonar descuidadamente um lugar que ocupava sem ter motivo algum para o fazer.

Aqui não se trata da história de um casamento. Comigo o caso não foi tão mau. A minha acção precipitada tal como se deu teve mais o aspecto de um divórcio... - quase de um abandono do domicílio conjugal. Sem razão alguma, susceptível de ser detectada por qualquer pessoa minimamente sensata, seixei o meu emprego - lancei borda fora o meu lugar no barco - desembarquei do navio, do qual a maior razão de queixa que eu podia ter seria apenas a de verificar que se tratava de um barco a vapor e que, por consequência, talvez fosse indigno da minha cega fidelidade ... Mas para nada serve tentar dar brilho àquilo que, mesmo nessa altura, bem suspeitei que não passaria de um capricho.

Joseph Conrad, Linha de Sombra, Relógio D'Água

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Puro Vintage VI


A certa altura do ano, depois do regresso à escola e dos magustos, quando o frio já começava a apertar e a chuva era uma presença constante, Alexandre sabia que estava para breve um tempo mágico. Guiado pela mão da sua Mãe, que frequentemente acompanhava nas compras para a casa, entrava no supermercado de sempre e a mudança estava dada. Logo ali, nas primeiras prateleiras da entrada, expostos em série, os brinquedos acabados de chegar davam um novo ar, muito mais apetecível e acolhedor, ao espaço de sempre.

Com um ar solene e contemplativo, Alexandre procurava devorar com os olhos tudo aquilo em que as suas mãos não podiam tocar. "Não se pode mexer", dizia a sua mãe, sob o olhar atento e aprovador da dona do estabelecimento, vigilante e preocupada com o eventual prejuízo causado por um petiz naturalmente encantado e inquieto com tanto brilho, tanta novidade, que desejava alcançar. Carros a pilhas, construções, soldadinhos de chumbo, aviões, robôs eram para ele como arcas de tesouro, encerrando em si inúmeras estórias de aventura que ia construindo em sonhos despertos. Nuns outros tantos caixotes, ainda por abrir, Alexandre sabia existirem ainda mais pequenas maravilhas destas.

Àquela altura, já tinha trocado algumas impressões com os seus colegas acerca do que pedir no Natal. Agora, essa mesma lista de desejos estava a ser reformulada. Por outro lado, também comparava mentalmente, com acutilante sentido crítico, tudo o que ali via com outros brinquedos, vistos na sua cidade natal, no shopping de uma grande rua, à noite, após sair de casa dos seus avós que lá viviam.

Por fim, chegaria sempre à conclusão de que, entre uns e outros, o importante era conservá-los bem estimados (sim, porque prezava muito a sua fama de coleccionador zeloso e importado), na gaveta que tinha no roupeiro do seu quarto.

Contudo, neste seu alvoroço interior havia sempre espaço para outros desejos, para já bem mais fáceis de satisfazer, sabendo que ainda era cedo para qualquer decisão dos seus pais (eram eles que falavam com o Menino Jesus, segundo a sua mãe), quanto às prendas que apareceriam na chaminé da cozinha ou até mesmo na da sala dos seus avós. Assim, acto contínuo, Alexandre virava-se para a sua mãe e dizia baixinho "Quero um pai-natal" ou "Quero um carro de chocolate". Depois de alguns protestos pedagógicos, que nunca o deixavam de envergonhar porque eram ditos um pouco alto demais, o seu pedido era satisfeito. Em gestos cuidadosos, ia desembrulhando o papel de prata estampado que cobria a figura oca e castanha. Numa dentada, aquele doce sabor quente deixava-o entusiasmado, contente e um pouco mais sôfrego para os pedaços seguintes. Com grande parcimónia, contrária à idade de infante que tinha, procurava não sujar as mãos conforme o chocolate se ia derretendo. "Não te sujes!" - a advertência que mais ouvia.

Mas este era o seu pequeno momento de prazer e ninguém o perturbaria. Ainda a olhar para os brinquedos, crescia nele a esperança de que algum deles, ainda que o mais pequeno, seria seu. Mas o que realmente interessava, algo lho dizia, era viver, respirar aquele tempo, aquela magia.
Chocolate comido, prata cuidadosamente metida no bolso, qual recordação daqueles instantes de genuíno e inocente entusiasmo, Alexandre encaminhava-se para o pé da sua mãe, que já o chamava, e lá ia para casa. Sentia-se Feliz.

Glossário Avulso

Palavra de hoje - Rabanada
o meu Oliveira preferido
(porque hoje é o século)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Natal dos Fumadores

No Café da terra...
Será que a ASAE não tem nada a dizer quanto à mensagem que pode estar a ser passada?

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Porto Santo

(...)
Eu queria uma ilha assim, onde tudo se resume à
evidência dos astros,
ao coração sereno.
A areia aquece as mãos abandonadas.
Prevejo o eclipse, o arco-íris e os teus passos.
Sei que vens, algures, pelas veredas onde o ouro
começa.

Não me procures tão perto das estacas do primeiro
cais.
Estou sempre encostado ao mar.
E as vagas que se erguem afastam levemente a minha
boca
e são como as lágrimas do teu amor.
Quem espreita atrás dos barcos?

As velas passam ao largo das tuas cidades.
Apagas-te devagar, fresca açucena desta saudade.
Inúteis são os búzios da minha loucura porque não
me ouves em outubro
quando a ilha não pertence ao mundo.
Em outubro pensei:
podia acabar aqui, encostado ao mar,
para que se saiba onde acabam os sonhos, onde moram
os assassinos,
onde, da vida já esquecido,
olho perdidamente à volta e sou a ave.
Sou a plumagem que arde. Sou a asa golpeada pelos
raios do teu furor
e não me peçam, não me peçam para cantar.
Na Fonte da Areia baixo a cabeça sobre o peito.
Fecho os olhos.
(...)

José Agostinho Baptista, Porto Santo
Canções Da Terra Distante

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Alçada Baptista


A nossa singela homenagem…

COCTEAU TWINS - THROUGHOUT THE DARK MONTHS OF APRIL AND MAY

carpe diem

Dum loquimur, fugerit invida
Aetas: carpe diem, quam minime credula postero*
mmmmmmmmmmm
Horácio, o poeta nascido a 8 de Dezembro de 65 a. C. e considerado um dos maiores poetas do mundo romano. Morreu em 27 de Novembro de 8 a. C., tendo escrito uns anos antes - não sem razão - que «non omnis moriar» (não morrerei por completo).
lllllllllll
*Enquanto se fala, a idade foge
Goza este dia, não contes com o de amanhã

domingo, 7 de dezembro de 2008

Ainda dentro da estridente nebulosa


No céu, uma ave distraída. A frágil semente que encobriu a ignorância, outorgou-lhe a soberba da árvore, onde foi engravidada a primeira mulher que abraçou a tua delicada origem, e dela nasceste velho, com o monólogo que discute interminavelmente sobre o teu árido olhar.
Vem escutar o rumor do rio antes de começar a tua oração. Alguma vez o fizeste, e foi na noite em que te divorciaste da luz e da escuridão, e o sol era a pupila indestrutível dos que habitavam em círculos perfeitos o aroma da penumbra. Então, era a tua própria esperança, repleto de uma dor doce sobre as tuas palavras como a passagem da névoa perante a intranquilidade das naves. A tua serenidade avançava como um cordão frágil ao qual atavas o teu destino e a incerteza que te ptovocava o som da água ao tocar as margens da terra.
Todos morreram, pensaste, e o pranto surgiu de costas para a vida no tempo em qua ainda não se inventavam as cidades. Sobre o rio onde se criou a espiga, viste aquela barca que nunca chegou ao porto e da qual se ouvia a queda da terra. Não eras tu aquele que desejava descobrir o nome do Peixe, a sinceridade da Rocha? Ainda dentro da estridente nebulosa, o homem é a causa do homem. Aproxima-te das margens desse rio, e poderás tocar o desconhecimento do teu rosto.
kkkkkkkkkkkkk
Oliverio Macías Álvarez, Um Mundo Estranho
(tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim)

Que a palavra continue, escrevendo-se

A tradução de Um Mundo Estranho, o primeiro livro de Oliverio Macías Álvarez (nascido no México em Janeiro de 1971) foi feita pelo poeta José Agostinho Baptista, que introduz o seu trabalho - e, naturalmente, a obra daquele - desta forma tão bela:
lllllllllllllllllllllllllllll
«Quis o destino - ainda creio que é essa a vaga e inacessível entidade o que conduz as nossa pobres vidas - que encontrasse Oliverio à esquina de uma noite nos bairros altos da solidão. Mas não podia imaginar, então, que muito secretamente, no fundo da sua alma nobre e mexicana, se escondiam páginas de uma comovida e delicada beleza que de vez em quando me faz reconciliar com a literatura. Traduzi esta inesperada dádiva que veio de tão longe para tão perto do pensamento e do coração, com todo o meu amor pelo Homem e pela Palavra.
Que esse homem e essa palavra continuem a caminhar generosamente pelo mundo, escrevendo-se.»

ter-te tão breve

vinha de longe e sem certeza de ficar. e
tu surgiste, ao tombar
de uma tarde escura e fria,
a inventares a companhia
ao meu lamento.
por um momento
(só um momento)
imaginei voltar a ver no tempo eternidade,
deixava fingir - e fugir - a idade
no esgar de te ver
tão leve.

de te ter
tão breve.

(15.12.2007)

Ainda pendurada, Coimbra a brincar com bola azul


Coimbra pendurada nos elécticos fios que mal a seguram




sábado, 6 de dezembro de 2008

Afonso, o 1.º



Nascido em Guimarães, talvez em Viseu, vem a morrer em Coimbra, após mais de cinquenta anos de reinado, no dia 6 de Dezembro de 1185. D. Afonso Henriques, fundador e 1.º rei de Portugal, era filho de D. Henrique de Borgonha e de D. Teresa, filha do imperador D. Afonso VI.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Espero, mesmo em Dezembro e à chuva


A chuva lavou das línguas as palavras quentes.
Dezembro é mês de melancolia e sem repentes.
Fica difícil soletrar-te sílabas coloridas.
A cor do sol encobre-se com a da terra.
Perdemos luz, mas ganhamos em vidas.
O nosso encanto é só um jogo de espera.

W. A. MOZART

Faltavam cinco minutos para a uma e, como agora mas há 217 anos, estava uma noite fria. Nos últimos meses tinha terminado algumas das suas mais grandiosas obras, como o Concerto para Clarinete, e a Flauta Mágica estreará amanhã. Caíra de cama no final do mês passado, mas continuou a trabalhar no que está mesmo a terminar, o magnífico Requiem. Cantaram-lhe parte dele junto à cama e ele, Wolfgang Amadeus, consciente do seu estado e do fim que se aproximava, terá dito: «Não lhes disse que estava a compor o Requiem para mim mesmo?»

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Perseguição da beleza

«E a beleza não serve de nada. Atrapalha. Provoca desastres nas famílias, intoxica-nos até ao desmaio, não poupa nada. Devia ser proibida. É um escãndalo no meio do mundo. É a causa do espantoso medo que é perdê-la. Não escolhi ser quem sou, este vício de que sou escravo. O que mais importa ninguém escolhe.
Já tentei ser tantos para escapar de mim, para me desviar desta vida que me deram. e depois vem a beleza. Surpreendente ao virar de uma esquina. Um desejo marcado no ponto de encontro do aeroporto onde ficaremos para sempre abraçados. Envolta em nevoeiro a tomar duche à minha frente. A irromper do nada.
A primeira coisa que uma qualquer tirania sabe que tem a fazer é demolir a beleza. Com todo o dinheiro, de todas as maneiras.
A beleza semeia a desordem nas almas e nos corpos que anima.
Alimenta-se de uma liberdade particularmente virulenta.
É impertinente. Não conhece regras. Vive da vida e de mais nada.»
hhhhhhhhhhhhhhh
Pedro Paixão, O Mundo É Tudo o que Acontece
Foto: Pedro Paixão

Descrição Da Mentira

Que verdade existe no ventre das pombas?
A verdade está na língua ou no ventre dos espelhos?
A verdade é o que responde às perguntas dos príncipes?
Qual é então a resposta à pergunta dos oleiros?
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma pergunta:
para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em esquinas imóveis,
as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?
llllllllllllllllllllllllll
Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?
Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.
A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que não devem ser abertos.
Sujo, sujo é o mundo, porém respira. E tu entras no quarto como um animal resplandecente.
lllllllllllllllllllllllll
Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me concerne?
Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está oferecido nos átrios e na distribuição dos resíduos,
com tudo o que treme e é amarelo debaixo da noite.
llllllllllllllllllllllll
Antonio Gamoneda, Descrição da Mentira
(Prémio Cervantes, 2006 - tradução Vasco Gato)
Foto da capa do livro (autoria Kenn Kiser)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

"refundação do sistema" financeiro

O Vaticano defende uma verdadeira "refundação do sistema" financeiro que implique o fim dos "paraísos fiscais". Num documento do Conselho Pontifício Justiça e Paz, aprovado pela Secretaria de Estado do Vaticano, aponta-se a existência dos "centros financeiros offshore" - os chamados paraísos fiscais - como uma das causas principais da crise financeira internacional. Citado pela Zenit, agência oficiosa do Vaticano, o longo documento diz que esses mercados "mantiveram uma trama de práticas económicas e financeiras" como "fugas de capitais de proporções gigantescas", fluxos "motivados por objectivos de evasão fiscal", práticas de facturação fraudulenta e reciclagem de "actividades ilegais". O texto, publicado a propósito de uma reunião da conferência de Doha sobre o desenvolvimento, que termina hoje, é muito crítico. Diz que a utilização dos paraísos fiscais produziu um efeito negativo duplo, beneficiando os rendimentos mais elevados, que podem escapar à tributação e ao controlo fiscal nos próprios países, e penalizando os mais baixos rendimentos - trabalhadores e pequenas empresas. Ao mesmo tempo, transferiram a tributação do capital para o trabalho.No documento, ainda de acordo com a mesma fonte, recorda-se que os centros offshore movimentam "cerca de 860 mil milhões de dólares por ano" (mais de 660 mil milhões de euros). Isto equivale a uma fuga fiscal de quase 255 mil milhões de dólares, mais do triplo do montante da ajuda pública ao desenvolvimento por parte dos países da OCDE.
Jornal Público

This Mortal Coil - Another Day

domingo, 30 de novembro de 2008

entre as gargalhas e o choro

- Lançamos pernas e braços e as aranhas segregam suavíssimas teias opalescentes. pasmamos do terrível progredir das larvas: seu vulnerado gozo seu dramático instinto de bordar à superfície das folhas incríveis tortuosos itinerários. sabemos a voraz sede do húmus o crepitar das corolas nos vitrais da penumbra. impregnados de seiva debatemo-nos na cabeleira das paramécias ressuantes ao calor. deram-nos o desígnio dos líquenes ávidos o arrasante amor das trepadeiras contíguo ao espadaçar dos músculos. aos artelhos nos soldaram a pungência dos esporões a flora do sexo e das axilas em musgo tresmudada. e as gavinhas resultam das línguas enroscadas o sangue em linfa se precipita. uma orquídea desabrocha: pérfido lampejo entre as gargalhadas e o choro. enfim em nosso ventre a magnólia se espande de esperma cristalizada. contra as carótidas e a espadana nos atira suas lancvetas de incontida cólera.
hhhhhhhhhhhhh
Mário Cláudio, Novembro
as máscaras de sábado

Maravilha

Postado sem ouvir
(mas à confiança)
e com agradecimento
especial à G.

Por Amor

- Então, ande lá com isso, que eu tenho a boca seca. Mas depressa, se não leva outro enxerto!

“No dia a que se reportam os autos, estando a arguida na cozinha e o filho no quarto, preparou um chá, no qual deitou o conteúdo do frasco de Paratião, dizendo-lhe que bebesse porque lhe iria fazer bem”.

A ideia surgiu-lhe naquele instante. Preparou o chá e açucarou-o bem, como sabia que Pedro gostava. Depois, pegou no frasco do veneno e verteu-o na chávena. Misturou tudo e deu-lhe sabor com um cálice de Porto.
- Bebe, meu filho, bebe que te vai fazer bem! – disse-lhe, os olhos rasos de água.

“A arguida agiu com intenção de matar o filho”.

- Levante-se a ré – disse o juiz do meio. Maria do Rosário nem o ouviu.
Foi preciso o seu advogado chegar junto dela e abaná-la para que o espírito voltasse de novo à sala.
- Quer dizer mais alguma coisa em sua defesa? – tornou o juiz.
- Tanto se me dá ir para a cadeia como ficar cá fora. A vida para mim acabou. Faça de mim o que quiser, senhor doutor juiz. Gerei o meu filho por amor. E foi por amor que o matei.
gggggggggggg
J. Sousa Dinis, Por amor, A Fazer De Contos

(In)justiça

Levantou-se e sentiu-se, pela primeira vez, naqueles dois anos de espera, calmo e quase feliz. Ia falar. Iam ouvi-lo. Aquele homem ia ser julgado e condenado pelo acto cruel que cometera.
A sua filha olhou-o e disse-lhe "Isto vai finalmente acabar, não é pai?".
A sua mulher disse-lhe "Finalmente vamos ter paz!".
jjjjjjjjjjjjjjjjjjjj
Confiante foi para o tribunal. O seu advogado, homem de poucas palavras, apenas lhe disse "Vamos ver se é desta que isto se resolve, mas, sabe como é, os tribunais têm tanto trabalho...".
Não o ouviu. Não quis ouvir. Hoje era o seu dia. aquele em que finalmente, após contar a sua história, e ver, pela última vez, a cara daquele homem, poderia descansar. Dormir. ter paz e tranquilidade. Aquela que lhe fora roubada por aquele homem ignóbil.
llllllllllllllll
No átrio do tribunal estava uma imensidão de gente. O burburinho que se ouvia era quase ensurdecedor.
lllllllllllllllll
Mal entrou, viu-o.
lllllllllllllllll
Paula Alexandra Cardoso, (In)justiça, A Fazer de Contos

Os disfarces de Arlequim

- "Para falar com franqueza, minha querida, quero que vás para o inferno!", não é assim que ele te diz, Scarlett? – perguntava, trocista, Isadora.
- Escusas de me estar sempre a lembrar isso! - notava-se que Scarlett não estava nada à vontade - Já vivi essa maldita cena mais do que mil vezes! A Maggie sempre podia ter-me dado um fim melhor!
- É isso, Scarlett. Nenhuma de nós é perfeita. Se temos uma ideia, se representamos uma ideia, outras nos hão-de faltar. Não somos criaturas completas, completamo-nos umas às outras. Por isso, concordei com Maria quando disse que estávamos todas de acordo. Eu luto pela condição feminina, a Florbela pela condição apaixonada, a Isadora pela condição corporal e a Scarlett pela condição patriótica.
- Sem terem uma pátria, não sentem o corpo, sem sentirem amor, não se sentirão femininas, sem serem femininas, não darão valor ao corpo, sem gostarmos de nós próprios, de que nos vale a paixão? Tudo se completa... - Era Florbela que rematara.
Maria estava confusa. Muita coisa ainda não percebera.
- Mas porquê eu?
Foi Isadora na sua precoce infantilidade que lhe respondeu.
- Porque tu, Maria Sklodowska, vais-nos suplantar a todas. Embora todas nós sejamos portadoras de ideias universais, todas nós somos, no fundo, umas egoístas, só pensamos em nós próprias ou naqueles que nos estão muito próximos. Eu cultivo o meu corpo, a Florbela inventa príncipes encantados para a sua desdita, a Simone combate pela causa feminina, excluindo portanto, os homens e a Scarlett luta pelo seu castelo de terra ali para o Sul do Novo Continente. Tu, não, Maria, tu vais construir uma obra verdadeiramente universal em proveito de um progresso tecnológico que, fatalmente, terá de acompanhar o fulgor das ideias e das emoções. Vai para o laboratório mas não te esqueças das lágrimas apaixonadas da pobre da Florbela, da garra e sentido patriótico da Scarlett, da força da militância da Simone que luta pelo que quer alcançar e da minha sensualidade improvisada, dos meus sentidos, dos meus saltos, do amor próprio, do orgulho em seres quem és. A Ciência sem isso, nada será, apenas fará perigar a nossa vida...
jjjjjjjjjjjjjjj
Paulo Guerra, Os disfarces de Arlequim, A Fazer De Contos

sábado, 29 de novembro de 2008

A justiça por um conto

Houve mesmo casos extremos, de homens chegados de novo, que pecando contra Deus e o mundo, se quiseram passar pelo dito, dizendo ser o bendito. Todos eles, sem perdão, foram na hora calados, com suas línguas cortadas e lançadas mesmo às feras.
Passados anos e anos, até séculos digo eu, ficou apenas a lenda, da justiça do Justino, aquele que por ser tão divino, um dia aqui haverá de voltar, para aquela fazer reinar.
E assim esperam sentadas as gentes tamanho milagre!
É que as pessoas, afinal, quando vão a tribunal, por quererem ganhar todas, querem ter para o seu caso solução em tudo igual à do jumento rosado.
É esta a moral da história, nos ensinava na hora, o tio Manuel da Ribeira, perdoando assim tal ideia.
A justiça, digo eu, assim vista pelas gentes, é igual ao centro da aldeia, desnudado pelo tempo e fustigado pelo vento, deixando cair as ideias, como folhas de carvalho sem vontade de criar.
Assim o queiram os homens!
hhhhhhhhhh
Nelson Fernandes, A justiça por um conto, A Contos Com A Justiça

Um ciclo da água

Foi então que o juiz achou que devia voltar ao local, porque 2havia uns pormenores de que precisava de se inteirar, agora que ouvira as testemunhas".
Tudo continuaria daí a oito dias - "tanto tempo ainda a remoer os nervos!" queixou-se o senhor João, com medo do fim, mas com uma pontinha de fé ainda.
Na véspera do dia marcado para "voltarem ao rio", já ao fim da tarde, o Dr. Edmundo até estremeceu com o estardalhaço da porta a abrir num safanão.
Era o senhor João, radioso de alegreia, agitando vigorosamente um papel na mão - nem conseguia falar, todo um sorriso!
- Então? Que é isso de tão importante que o faz vir aqui, a esta hora e interromper-me dessa maneira? - disse o Dr. Edmundo, com ar sisudo, mas num tom de voz a deixar contagiar-se por tanta alegria.
Foi então que o senhor João lhe contou tusdo.
Havia uns tempos atrás, no dia da festa, foi lá à aldeia um padre pregador muito letrado "só falava latim, a gente não percebia nada do que ele pregava, mas a voz dele convencia!", afiançava o senhor João.
Almoçou lá em casa, e durante o almoço, posto ao corrente da aflição da família, considerou que "se a água era tão antiga, e o direito tinha sido dado pelo Rei, havia de haver algum documento que o dissesse".
Como não o tornou mais a ver, esquecera-se destas falas, até ao julgamento.
gggggggggggg
Fernando Fernandes Freitas, Un ciclo da água, A Contos Com A Justiça

Males de Dirceu

A lua ia-se erguendo para os lados da Fortaleza de São Sebastião e a Ilha de Moçambique libertava-se, a pouco e pouco, do negrume que a envolvia. sá a sua tristeza, que se confundia com a pestilência que, não raro, devassava a ilha, teimava em não se deixar alumiar por uma réstia de luz.
Correra o ano de 1809, um ano em que fora presenteado com a nomeação para o cargo de Juiz da Alfândega de Moçambique. Após a sua chegada, em 1792, fora secretário de José da Costa Dias Barros, ouvidor geral, que o recebeu em sua casa, a ele que, então, não passava de um naúfrago, um despojo arremessado contra as rochas, condenado ao degredo, ao esquecimento, amputado, afastado, para todo o sempre, de quem amava, obrigado a percorrer milhas e milhas, mar e céu, céu e mar, do Brasil até àquele recanto do Império. Fora, depois, nomeado procurador da Coroa e da Fazenda e vinha exercendo a advocacia, sendo o único habilitado para tal naquelas paragens. Entrava, agora, em 1810 como Juiz da Alfândega.
Cansaço, desolação, vontade de desistir. se ao menos pudesse singrar sobre as águas como os dugongos que por ali passavam, qual Tritões, impantes, plenos de vida, e partir, talvez em busca de Letes, para que o esquecimento o dominasse e lhe varesse da mente a recordação da insídia, a insolente calúnia depravada, a venenosa espada da traição.
lllllllllllllllllll
Tibério Nunes da Silva, Males de Dirceu, A Contos Com A Justiça

A Luísa, o Marco e um pequeno apartamento

No Inverno passado, quando o vento e a chuva teimavam em entrar pelo respiradouro do tejadilho da Ford, munidas de papel em triplicado, duas senhoras da Segurança Social, acompanhadas de outros tantos polícias, vieram buscá-lo e levaram-no com elas.
Recorda-se ainda do choro da mãe e da raiva do pai.
Depois disso, voltou a vê-los apenas numa ocasião, duas semanas depois, quando já se encontrava naquela outra casa grande, cheia de senhoras e crianças.
De então para cá, o Marco já mudou novamente de casa, mas ainda não teve tempo para estudar química e os opiáceos.
Quando crescer, mesmo que não chegue a ser um bom aluno a química, vai acabar por perceber a razão da memória da imagem dos pais a queimarem pelo fundo a sua colher de papa, enchendo-a de uma água com que depois enchiam os seus braços.
llllllllllll
Paulo Correia, A Luísa, o Marco e um pequeno apartamento, A Contos Com A Justiça

O Senhor Fortunato

O último julgamento, há muito tinha caído a noite e na assistência apenas estava Fortunato, era de tráfico de droga e nele era protagonista um rapaz novo, ainda espigadote e na sua opinião, com a garimpa demasiado levantada.
Geração de mal educados, respondões, que não conheciam as regras mínimas de convívio comunitário, nos autocarros ou nos cafés, em qualquer lado, repetiam-se os comportamentos lamentáveis de jovens que não se levantavam nos transportes públicos, insultavam quem os repreendia, assaltavam velhinhas na rua, diziam impropérios a plenos pulmões, sempre numa atitude propositada de confronto e com permanente ar de desafio.
Era pois injustificável o comportamento deste arguido. a forma como, quase insolentemente, respondia ao Tribunal e Fortunato desejava que este agisse em conformidade, punindo-o na excata medida da sua culpa.
Ouvira esta expressão uma vez numa audiência e fixara-a porque lhe parecera que essa devia ser toda a essência de um julgamento criminal.
ççççççççç
Renato Barroso, O senhor Fortunato, A Contos Com A Justiça

A caminho de Santiago

O que realmente o angustiava, como agudo ferrete, era saber-se, ele próprio, perdido perante tantas proclamadas verdades, num labirinto infindável e sem saída, bússula inútil, descrente de si e da avaliação que dos outros já não alcançava fazer. e cada dia encontrava no cru olhar do cinismo um sedutor amparo.
Talvez por isso pusera pés à estrada, palmilhando o caminho de Santiago de Compostela, escolhendo, entre outros percursos, o mais árduo; alguém lhe falara em "lavar a alma", retornar às coisas simples e absolutas, recomeçar de um desejado zero para descobrir um destino.
Assim mesmo: um passo, depois outro, devagar. Ao longe, um dia, havia de vislumbrar Santiago. E depois, regressado ao Tribunal, confrontado ainda outra vez com o denso corrupio daquelas vozes plurais, passo a passo, com desejada lentidão, e, entre outras, escolheria a que falaria mais alto, perdurando para além do ruído e da incerteza. Talvez que o testemunho mais autêntico se refugiasse, afinal, na mais altiva das mentiras.
jjjjjjjjjjjjj
José Igreja Matos, A caminho de Santiago, A Fazer De Contos

Processo Tutelar n.º 37/01. Mariana

Mas, outra vez porquê
Será porque lêem tantos livros? Mas afinal de que lhes serve isso se não sabem o que vale um simples gesto de apertar quem se gosta, assim, juntinho ao coração...
Enquanto assim pensava, deu por si a apertar com muita força as suas mãos e os seus braços franzinos, sentindo o calor que vinha do peluche que encostava ao peito, para não deixar que este, com o seu poder mágico, transformasse aqueles intrusos em pó, ou mesmo em sapos, mas sem príncipes e fadas. E, por se não querer denunciar, Mariana percorreu com os seus olhos os cantos da casa, procurando em vão os trapos que em tempos se amontoavam naquele chão, mas que agora estava limpo pelas mãos renovadas da sua mãe. E sentiu-se repentinamente tão injusta, mesmo em pecado de crucifixo, por estar a pensar nela assi,m, sim, apenas assim, como se tivesse sido algum dia apenas mais que um trapo.
lllllllllllll
Nelson Fernandes, Processo tutelar nº 37/01. Mariana, A Fazer De Contos

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

W. B.


William Blake, pintor e poeta inglês, nascido em Londres a 28 de Novembro de 1757

No tempo da semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta. Conduz teu carro e teu arado por sobre os ossos dos mortos. A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria. A Prudência é uma solteirona rica e feia, cortejada pela Impotência. Quem deseja, mas não age, gera a pestilência. O verme partido perdoa ao arado. Mergulha no rio quem gosta de água. O tolo não vê a mesma árvore que o sábio. Aquele, cujo rosto não se ilumina, jamais há de ser uma estrela. A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo. A abelha atarefada não tem tempo para tristezas. As horas de loucura são medidas pelo relógio; mas nenhum relógio mede as de sabedoria (…)

William Blake, Provérbios do Inferno

memória refeita nas folhas tombadas (variação I)

Ainda trago os flocos de saudade
(além da idade... -
envoltos nos trapos de
um coração ausente)
e, de repente,
cirzo as lembranças
esfiapadas
dos retalhos de um sorriso antigo
- é contigo;
ele que me faz das memórias
um arco-íris.
Foi quinta-feira e
choveu oiro
nas cores sobrantes do verão indiano
(não é assim, contigo, todo o ano?)
que te espelha o brilho no da terra.
Gosto é dos amarelos.
Só para não ter que sonhar
os teus cabelos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

102 (24.11.1906)

Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;
outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;
outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,
fluidez sem transparência.
Presente, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.
Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece.

ANTÓNIO GEDEÃO, Tudo é foi

domingo, 23 de novembro de 2008

Dá cá uma raiva...

1.
Estás deitado na tua cama; luz apagada, olhos bem fechados e perguntam:
- Estás a dormir?
- Não! Estou a treinar para morto.

2.
Levas um electrodoméstico para reparar e o técnico pergunta:
- Está avariado?
- Não! Ele estava aborrecido de estar por casa e eu trouxe-o para passear.

3.
Está a chover e percebem que vais sair à chuva. Perguntam:
- Vais sair com esta chuva?!
- Não! Vou sair com a próxima.

4.
Acabas de tomar banho e alguém pergunta:
- Tomaste banho?
- Não! Está a chover no WC.

(com agradecimento a j.f.p.)

sábado, 22 de novembro de 2008

Máquina

Três sílabas - arestas -
desenham a palavra
sua parente desumanidade

Como metáfora porém a utilizas
nomeando a teia desse mundo
que os deuses amam e odeiam

João Pedro Mésseder, Ordem alfabética

Magnolia

Homenagem aos vizinhos do lado e o contínuo matar saudades deste fantástico filme

existe um arritmia ténue
no coração de quem recusou
o amor de outrém, um coração
ténue que se sobrepõe ao que
já se tem

valter hugo mãe, três minutos antes de a maré encher

Melancholic Ballad

Lindo

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

a raiz do teu gesto


a raiz do teu gesto
encontrei-a naquela barca à vela
mas foi a nau catrineta
que me disse onde não estavas
por isso fui
sempre
levado pela maresia
quando sabia
que tu eras menos do que gesto

francisco d'eulália, A raiz do teu gesto, poemas

Lisboa, um "dia desses", logo ao nascer da noite


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Com estados de alma

Há também, nestes contos, auto-ironia e humor: "De qualquer forma, não sou como alguns juristas, pois o que mais me desagrada após aqueles infindáveis e frequentes julgamentos, é a companhia dos que se apressam a permanecer nos corredores. (...) E depois de decidir um conflito, julgar uma prostituta, um deputado, um ministro, um chulo, um administrador de empresa ou director de hospital, nada mais tem sentido nesta direcção, desde logo porque se é trabalho, fatiga, e se é conversa, é inútil."
Gosto desta lista e da sua sequência sarcástica. Acho saudável a atitude discreta e profissional do juiz-narrador. Mas do que eu gostava mesmo era desse dia em que deputados e ministros e grandes empresários chegassem a tribunal. Lugar comum: a certeza de que um dos principais problemas de Portugal, talvez o pior, é a demora e, por arrastamento (literal), a ineficácia da justiça. Mas um lugar-comum é também o sítio em que todos nos revemos.
É possível julgar sem estados de alma? Talvez. Escrever é que não.
gggggggggggggggg
Rui Cardoso Martins, do Prefácio, A Contos Com A Justiça

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Carta

Caro Francisco:

Não, comecei mal. É absurdo usar contigo o mesmo tratamento a que recorro quando quero assinar uma revista, escrever aos clientes ou mesmo reclamar de um serviço.
Tu, cujo nascimento significou para mim um mundo de novas possibilidades – saberias jogar à bola e brincar aos polícias e ladrões? Conseguirias, ainda que daí a mais tempo do que eu gostaria de admitir, ler os livros que eu começava a espreitar, ou fazer pistas de carros no nosso infinito corredor, cheias de pontes e túneis?
Nesse momento, tudo me pareceu muito confuso (e tu, muito vermelho e enrugado…). Mas sei, ainda, com que bonecos brincava quando o Pai me veio dar a notícia, e não me poderia nunca esquecer que foi na minha direcção que andaste sem ajuda pela primeira vez.
Por isso, e muito mais que não conseguiria dizer, tenho de recomeçar, desta vez com o único vocativo digno de ti.

Meu irmão:

Preciso de desabafar. Confissão rara num primogénito, que mais se assemelha a uma fortaleza inexpugnável: preocupado com o crescimento dos seus irmãos, pronto a resolver os sarilhos deles, quase se sentindo responsável se algo corre mal, acaba por não ter sequer tempo para admitir os seus próprios problemas, quanto mais para os resolver.
Só que, tendo os outros irmãos muito mais perto, porquê logo tu? É simples.
gggggggggggg
Cristina Xavier da Fonseca, Carta, A Fazer De Contos

Manhã de Júbilo

A fidelidade é um desporto da alma: começa por eliminar toda a pulsão natural e por instituir como regra de vida um artifício que só sobrevive à custa do esforço em ambiente inóspito, como não raras vezes sucede com o viver conjugal. À cessação do esforço, activam-se o ciúme e o remorso, como impulsos para a reposição daquele estado, nisto se esmifrando as energias dos organismos, as vontades e os afectos. É pois pura norma e sacrifício, capaz, por isso, de levar um juiz ao mais puro estado de levitação.
Convivi mal com a minha infidelidade. Faltava-me a destreza, que só com o hábito se adquire, para relegar o remorso para as rápidas orações do fim do dia. Por outro lado, o meu casamento, ao contrário dos das grandes fortunas, não tinha por pressuposto essas curvas do caminho, que se aceitam até com alívio, por significarem que a ordem natural das coisas continua a funcionar. Nesses grandes contratos, regados a champanhe francês nos jardins dos solares da família, sabe-se que o prazer não faz parte do dote, pelo que se aceita com a dignidade do cumprimento de uma cláusula, que cada um se governe como muito bem entende. Quem se vincula por uma dessas festas sabe que um valor vale se prosseguir um fim, sendo que a manutenção dos casamentos, como forma de sobrevivência das castas, é, sem dúvida, um fim indiscutível. Mas a fidelidade, nessas esferas, não é estritamente essencial à manutenção dos casamentos, que sobrevivem à custa de outros esforços e expedientes.
gggggggggggggg
João Felgar, Manhã de júbilo, A Fazer De Contos

Renascer

O avião acabara de levantar voo.
Ana tentou descontrair um pouco. Não era fácil. Ainda sentia a euforia póstuma dos momentos vividos com intensidade.
Revia mentalmente os acontecimentos da última semana. A conferência Ibero-Americana, sobre violência doméstica, na qual participara, superou as suas melhores expectativas. Havia sido magnificamente acolhida pelos colegas brasileiros. Nada que devesse constituir factor de surpresa, porquanto, em todas as viagens de férias que fizera aquele país, sempre se havia sentido em casa.
Agora, apenas oito horas de travessia atlântica a separavam do marido e filhos, que a esperariam em Lisboa.
Havia que voltar à rotina diária: lidar com os conflitos simbolizados e corporizados pelos processos que, inapelavelmente, se amontoavam no seu gabinete de trabalho.
Enfim, retomar as responsabilidades adiadas, por uma semana que primara pelo contraste com o frenesim do seu quotidiano pessoal e profissional.
Apesar de tudo, considerava-se afortunada e nem por um momento punha em causa a escolha profissional que havia feito, ainda era uma criança.
Veio-lhe à memória essa época.
Em especial, o dia em que a pretexto de um trabalho escolar, pediu aos pais fotografias da sua infância.
Já por diversas vezes havia estranhado o facto de aqueles nunca terem relatado o seu nascimento, nem terem feito referência aos seus primeiros passos.
E foi nesse dia, que os pais, emocionados, lhe revelaram não ter acompanhado o período em relação ao qual não havia registo fotográfico na sua casa.
ffffffffffffffffffff
Marília Fontes, Renascer, A Fazer De Contos

A Senhora Sem Nome e a Outra Senhora

- Teorias, doutor Almeida! Teorias: essa coisa de crimes continuados e de concursos... teorias. A realidade era outra: eu estava ali pela primeira vez, com uma ré sem nome, a ser julgada por não ter querido dizer... o nome! Ia-me pôr com teorias, doutor Almeida?... Não – respondeu quem perguntava -, isso só ia complicar: então eram crimes por aí fora, parecia champanhe em cascata! Sabe... olhei para o meu mestre e ele havia perdido o entusiasmo, só me sussurrou que nunca lhe tinha acontecido; olhei para o defensor e não ouvi som... e só disse: estou feito. Então, entre desânimo e silêncios, o senhor delegado permitiu-se tomar a palavra e chegou-se mais junto da cidadã, a meia distância comigo. Olhou-a com uma bonomia terna e disse-lhe, a senhora deve ter um documento em sua casa, todos nós nos esquecemos onde pomos as coisas; talvez se procurasse um bocadinho... nós esperávamos... porque sabemos que não quer tratar mal ninguém.
Os olhos do juiz mais novo esbugalhavam uma surpresa que emparelhava com a admiração de uma prematura ruga, a franzir-lhe na testa: o atrevimento do delegado! O juiz-presidente arrastou ninguém até ao silêncio. Mas logo alteou o tom, de peito cheio:
- Foi magia, doutor Almeida: a senhora, era assim que se chamava e tinham-se esquecido, disse que às vezes deixava a identidade na mesinha de cabeceira, não fosse perdê-la no ruedo, e a autoridade não lhe permitira ir à sua cata. Claro que eu interrompi o julgamento, doutor Almeida... deixei as teorias lá onde devem ficar e, passado nem cinco minutos, a senhora tinha nome, tinha os demais adereços e até tinha cartão de identidade... e tudo se resolveu. Sei lá se contra a lei!
- Sei lá! – mal se ouviu ao mais novo.
- Sei lá... – nem se ouviu ao doutor Fernandes.
- Como vê, doutor Almeida, a surpresa atacou-me na ocasião mais frágil, mas a solução -... e aí é que quero chegar – reforçou-me o entendimento: cada dia é um caso, cada caso é um olhar; depois, há sempre gente... atrás das teorias.
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
José Eusébio Almeida, A senhora sem nome e..., A Contos Com A Justiça