quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Manhã de Júbilo

A fidelidade é um desporto da alma: começa por eliminar toda a pulsão natural e por instituir como regra de vida um artifício que só sobrevive à custa do esforço em ambiente inóspito, como não raras vezes sucede com o viver conjugal. À cessação do esforço, activam-se o ciúme e o remorso, como impulsos para a reposição daquele estado, nisto se esmifrando as energias dos organismos, as vontades e os afectos. É pois pura norma e sacrifício, capaz, por isso, de levar um juiz ao mais puro estado de levitação.
Convivi mal com a minha infidelidade. Faltava-me a destreza, que só com o hábito se adquire, para relegar o remorso para as rápidas orações do fim do dia. Por outro lado, o meu casamento, ao contrário dos das grandes fortunas, não tinha por pressuposto essas curvas do caminho, que se aceitam até com alívio, por significarem que a ordem natural das coisas continua a funcionar. Nesses grandes contratos, regados a champanhe francês nos jardins dos solares da família, sabe-se que o prazer não faz parte do dote, pelo que se aceita com a dignidade do cumprimento de uma cláusula, que cada um se governe como muito bem entende. Quem se vincula por uma dessas festas sabe que um valor vale se prosseguir um fim, sendo que a manutenção dos casamentos, como forma de sobrevivência das castas, é, sem dúvida, um fim indiscutível. Mas a fidelidade, nessas esferas, não é estritamente essencial à manutenção dos casamentos, que sobrevivem à custa de outros esforços e expedientes.
gggggggggggggg
João Felgar, Manhã de júbilo, A Fazer De Contos

1 comentário:

Unknown disse...

Muito lindo, um conto maravilhoso.