segunda-feira, 31 de agosto de 2009
Estrela
Gore Vidal
Ontem de manhã, ao entrar para a sala de aulas, fui interpelado por um estudante cristão que me perguntou com uma velhacaria mal disfarçada: - Já sabes do imperador Teodósio? Aclarei a garganta, pronto a investigar a natureza da pergunta, mas ele antecipou-se-me: - Foi baptizado. Não fiz comentários. Hoje em dia nunca se sabe quem é um agente secreto. De resto, a notícia não me surpreendeu tanto quanto isso. Quando Teodósio adoeceu, no Inverno passado, e os bispos se pousaram em cima dele a rezar pela sua cura, soube que, se recuperasse, eles haveriam de reivindicar a fama e o proveito de o terem salvo. Não morreu. Agora temos um imperador cristão no Oriente para fazer parelha com Graciano, o nosso imperador cristão do Ocidente. Era inevitável.
Juliano, trad. de Carlos Leite, Dom Quixote, 1990
(e até ao próximo Verão, que este está a partir)
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
receita
a esfiapada revolta
dos dias mansos
(o mundo gosta de certeza
adora e louva os tansos)
e junta-lhe o sal sobrante
da adolescência
(o mundo gosta de velocidade
se for corrida em paciência)
esticando a mistura
até volver imponderável
(o mundo só arrisca no provável)
e aceita o tempero do escárnio.
Leva ao lume, em lume brando
(assim se revolta o mundo
e só de vez em quando)
até que a massa construa a palavra
que é o poema
(o mundo sempre acaba por não gostar de nada
mas nem tenhas pena)
revolta
quando deixas em passados
as palavras prometidas
- declaro-me credor de expectativas.
confundo as promessa
mas sem razão.
podia dizer
"vou com os pássaros"
mas as asas da frase
gastaram-se
nos imberbes voos da contumácia.
abusadas de repetição
trocaram o sentido à ousadia
e assim tolham
o modo de aceitar
um beijo silencioso.
sim,
tu não voltaste com as palavras d'outrora.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Comentário 2.0
Não entendo porque só os grupos de risco, os mais evidentes, vão ter acesso à vacina que, por seu lado, tarda em chegar, quando noutros países estará pronta a usar já agora em Setembro. Em Espanha, por exemplo, oitenta por cento da população terá acesso à vacina. Por isso pergunto à Sra. Dra. Ana Jorge: Porquê a opção deliberada por tão reduzido lote, sabendo até que as farmácias não podem negociar ou reservar lotes - parece que o monopólio é do Estado, no que toca às reservas - que viriam a ser vendidos a cidadãos fora dos grupos de risco? Porquê a opção deliberada pelo discurso do "aguenta-te à bronca que és só mais um número das estatísticas para mostrarmos competência"? Porquê enfim, a escolha pelo entupimento das urgências e pela baixa maciça dos trabalhadores que, a serem vacinados, sempre veriam, no mínimo, os efeitos da vacina minorados? Porquê esta minha sensação que se NEGA AQUI UM DIREITO À SAÚDE - acesso a uma vacina - que até há quem esteja disposto a pagar na totalidade??? Já muitos de nós somos crescidinhos a não precisar de alguém a dizer o que devemos ou não tomar. Apenas esta a minha opinião.
AZUL (em memória de Sophia)
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa, Dom Quixote, 2004
terça-feira, 25 de agosto de 2009
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Confarreatio
O vocábulo é latino e bem conhecido dos patrícios da primeira República do mundo.. Ora, tendo como ponto de partida esta proposta de leitura breve, convida a mesma a uma exegese sobre a notícia que hoje marcou a actividade política e bem, assim, a participação cívica de quem também, precisamente, vive numa República e tem o dever de reflectir sobre os assuntos que lhe dão forma e essência.
Um veto, considerandos pertinentes e a recordação que tenho dos Mestres, fizeram com que voltasse às fontes do Digesto, das Instituições e até mesmo das Pandectas... Tudo resumido no Corpus Iuris Civilis, entenda-se.
A ideia de casamento sempre se pôde traduzir, no mínimo, num contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente (eu sei que isto acarreta outras questões, mas, por economia de tempo ou de assunto sobre elas não falarei), gerador de direitos e obrigações tendentes a uma comunhão de vida.
Uma comunhão de vida com reflexos ao nível do regime de bens - saber o que é de um e de outro cônjuge, ou de ambos -, ao nível da representação - saber quem pode fazer o quê quando contrata com terceiros, quando tem de ir a tribunal, quando toma decisões sobre o futuro dos filhos - e ainda ao nível das próprias relações entre ambos - vejam-se os chamados deveres conjugais de respeito, fidelidade e débito conjugal.
Por aqui logo se vê que este institutol, enquanto figura contratual traz consigo um atributo que nunca poderá ser mitigado: a escolha pela responsabilidade, independentemente dos afectos que apenas dizem respeito à esfera da intimidade.
Qualquer cidadão, num Estado de Direito, tem a obrigação de saber que ao "contratar" assume para consigo e para com a sua contraparte e ainda indirectamente com terceiros, futuros ou eventuais interessados, uma determinada posição. Dele é esperado um certo comportamento, uma prestação, uma postura.
E se estamos já bem longe da submissão que à "uxor" estava destinada, havendo para ela somente ou em grande parte deveres, a verdade é que, nos dias de hoje sempre se espera de ambos os cônjuges uma atitude em conformidade com o contrato que celebraram e fizeram publicitar. Tudo nos termos já acima sumariamente enunciados.
Ora, nas uniões de facto há aspectos que, em termos legais, se desenrolam à parte deste regime de responsabilidade. Por exemplo, a representação e a legitimidade processual não conhece, tanto quanto sei, a figura do litisconsórcio necessário: a necessidade de ambos os cônjuges estarem em juízo, quando demandantes ou demandados. Por dívidas praticadas no exercício do comércio também não me parece que funcione a presunção de que as mesmas são comuns a ambos os unidos de facto.
Pelo que li, lança-se mão de conceitos como os da compropriedade e da solidariedade nas dívidas para dar a ideia de um "produto novo" que é tão bom como o antigo, mas só que mais moderno e sofisticado. É pouco na minha opinião e não se percebe o que realmente se pretende. Qual o sentido do "proto-casamento" se não o de ter vantagens, não discuto que devidas, sem ter encargos?
Não obstante, considero importante a protecção das pessoas que optem por esta experiência de vida em comum, não se lhes devendo impor outra.
Casa morada de família, prestações por morte de um membro da união ou mesmo o reconhecimento do direito à ressarcibilidade de danos produzidos por terceiro, em sede de responsabilidade civil, são matérias que ainda hoje não receberam a regulamentação que a lei, em vigor, prometia ou fazia prever.
Contudo, o que mais me confrange, a título pessoal, relativamente a quem não concorda com o veto do Presidente da República, é poderem dificilmente responder a esta questão: se uma e outra coisa são o mesmo, então para quê o casamento?
Enfim, o casamento é uma figura contratual estável, assente e que funciona, devendo ser premiada - em exclusivo, por exemplo, ao nível fiscal - e nunca comparada a institutos que, embora a merecer a sua justa protecção constitucionalmente devida, nunca serão a mesma coisa.
A não ser assim, funcionará, parece-me, o princípio "trainspotting": "não há casados nem unidos de facto, apenas pessoas que estão juntas". Nada de bom, porque pouco sério, quanto a mim.
Quem está unido de facto, está para o bem e para o mal, como se costuma dizer. Mas não está casado. Porque realmente assim não o pretendeu...
Considerandos de esplanada.
domingo, 23 de agosto de 2009
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
O mais breve poema dedicada a uma mãe
Endosseia-a a quem devia a vida
Ademar Ferreira dos Santos, Inconfidências e Confissões,
Descansando do Futuro (Reserva de Intimidade), Edições ASA, 2003
Malcolm Lowry
terça-feira, 18 de agosto de 2009
Mar - e mundo - português
a falar português, porque imenso, e até perder a vista.
Que não se perca...
nem o silêncio rompa mais que o visto
fosse desejo vê-lo, da carência
de que revisto ainda se dispersa
mais: que nos olhos desse olhar sobeja,
subindo os braços, senda, sibilante,
confuso agrado. Desapertam laços,
se contendo na voz, no gesto nunca.
António de Almeida Mattos, Conjuntivo Presente,
Edições Afrontamento, 1991
Epígrafe
em torno do meu pescoço
a tesoura dos teus dedos
e, ó profundo caroço,
minha carne te rodeia,
te nutre meu sangue insosso;
agora que, teu cavalo,
à custa do meu destroço,
te transporto a meu pesar -
me passeias pelo fosso,
ambos numa ira só,
como a água no seu poço.
A. M. Pires Cabral, como se Bosch tivesse enlouquecido,
João Azevedo Editor, Mirandela, 2003
47
E assim tu vens, menina do rio,
louca e desastrada, nessa tua canoa de silêncios,
a entrar no poema.
Mãos em existência felina
e respirando sem pausas. Voltas a cabeça para o lado
da luz e abre-se devagar o talento incendidado
do teu rosto.
(...)
A minha alegria é um aroma de tangerinas nos dedos,
comer aos gomos a paisagem
e limpar depois
a boca
à manga do espanto.
Tu puxas-me
e somos duas crianças
nnnnnnnnn num trilho de mata,
nnnnnnnnnnnnn num banco de pedra,
nnnnnnnnnnnnnnnn num portão verde dividindo
o aqui e o ali.
Porque nós estamos aqui.
Aqui onde te entrego os meus bolsos,
e - repara - as tuas mãos cabem.
Nós estamos aqui.
(...)
Vasco Gato, 47, edição do autor, 2005
domingo, 16 de agosto de 2009
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
Marguerite Yourcenar
Gabriel García Márquez
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Teu nome
Tu sabes disso.
Após o frio e as tormentas, vens de mansinho com cheiro de maresia, nuances de ar morno e aromas de pinheiro bravo a desflorar.
Em veladas formas nuas te insinuas, na promessa de um doce recordar, de um beijo que se quer breve, com aromas a pêssego e a morangos.
Em mornas noites de ondas lentas e compassadas, o teu canto inebria, ao sabor do mais puro suspirar, entre travos de um qualquer néctar quente e sedutor.
Nos raios dourados de um astro que míngua, abres o pano para estrelas confindentes, sobrando apenas um mapa aguado dos segredos que queres partilhar.
Por onde andas é mistério e a miragem do teu sorriso é o tesouro a descobrir.
E se no meio de finos grãos de rocha incongruente fica a certeza de um retorno, o suspiro da cósmica distância dá a esperança de uma rota, de um rumo...
No meio de tudo e no fim do instante, sais como entras, deslumbrante...
E, com as primeiras chuvas, o desejo...
O desejo de a ti voltar.
Entre as Duas e as Três
Fotografia de Coimbra
Prémio Daniel Faria, 2008, edições quasi, Abril 2008
Quarto Crescente
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Gripe, a espanhola
O Leilão do Lote 49, Pynchon
Lembranças, antes de rasgar o rio
Abecedário (Nuno)
Tinha um curso desnecessário, um carro descuidado e uma namorada que teimava em adiar o enlace. Receava-lhe a teimosia das noites lúdicas em solitários magicares e a sua abstinência de convívios e outros prazeres mais mundanos, esquecido das gentes no encaixe das peças.
Vezes sem conta o encostou à parede. Umas vezes em razões físicas de volúpia; muitas mais com a ameaça de um alheamento definitivo, continuasse ele nas infantilidades daquela vida dividida entre o exercício e o recorte. Fazia-lhe espécie aquele desperdício muscular, aquela abnegação, sem oferta, aquela distância da carne, mais por ser sua. E se valia a pena! – Salientavam-lhe as colegas, mais turvando o seu espírito e permitindo, aqui e além, que uma descrença na assumpção do namorado se lhe instalasse na mente. Um atleta! Para quê um atleta?
Nuno andara pelo futebol juvenil e chegara a ser baptizado sucessor de Humberto: um corpo completo em metro e noventa de músculo, uma sagaz visão do campo, uma antecipação acutilante. Os avançados sofriam em vão para chegarem primeiro, baldadamente tentavam reviengas e ronhonhós e, quase sempre, levava a admiração de ser eleito o melhor em campo. Num dia qualquer, normal aos normais, decidiu apartar-se dos desportos colectivos e dedicou-se ao karaté a tempo inteiro, de laudes a completas. Ignorou os protestos dos colegas, a raiva do chefe de departamento e a estranheza do pai. Estava decidido. E no Nuno, por mais estranho que fosse o conteúdo da decisão, ela valia por si mesma: irreversível e inultrapassável. Com a dedicação desmedida, ultrapassou cintos a uma velocidade recorde e em poucos anos foi ao Japão certificar o terceiro dan.
Com tantas potencialidades, nunca se misturou numa briga, nunca aproveitou um momento de experimentação técnica. Sucessivamente, cada vez de modo mais persistente, foi ficando em casa à noite e nos quentes finais de tarde. Primeiro queimava o tempo em sôfregas recargas de televisão, deitado no sofá como um marasmo. Lia pouco, dormia muito, comia regular. Até que num Natal dos anos noventa, a Leonor lhe ofereceu um puzzle enorme, com a torre Eiffel estranpelhada em dois mil pedaços.
Achou a coisa inopinada, vinda da sua colega do último ano. Mal se conheciam, Nuno nunca lhe passara cartão e não havia notado qualquer atenção especial da parte dela.
Leonor era tudo menos pouco requisitada. Festas, convívios, mensagens furtivas e declarações mais claras. O filho do catedrático prometera-lhe uma média desusada por troca de número par em dois convívios africanos, nem pedia mais; o sobrinho do dono do Hotel Figueira deixava-a conduzir o descapotável sem carta, nas noites mais tépidas, afastados do bulício em desculpa dos olhares policiais, em troca de uns beijos languidos que só ele imaginou.
Leonor, afinal, gostava de ter a indiferença, o desleixo do tanto faz. Cuidou-se capaz de alterar caminhos de destino, de moldar e mudar, de pôr o Nuno a olhar para ela como quem vê ali o mundo inteiro. Enganou-se. Agora, acha apenas que foi teimosa.
Nuno agradeceu a oferta, mas teve a coragem de perguntar porquê. Leonor embasbacou-se e disfarçou a verdade. Sabia que ele juntava o aniversário ao de Cristo e disse-lhe que tinha de o conhecer antes dos trinta e três. Nem um nem outro percebeu a graça, se era mórbida ou festiva, mas essa ignorância foi o condão para de irmanarem num sorriso.
Os tempos seguintes foram desmontando a graça e construindo a desgraça. Ano a ano, como o mar que corrói a rocha dura, persistente, contumaz. Nuno não se descosia, Leonor achava-se cerzida, sem qualquer movimento além da insistência de o querer diferente.
Um dia qualquer, Nuno pegou no papelinho da cómoda pensando que era mais um recado para não esquecer alguma compra e foi ficando apático, de parágrafo a parágrafo. Leonor dizia-lhe que não queria saber de mais nada, ia deixá-lo, e não tinha como voltar atrás. Foram anos mudos, ele nunca sequer lhe sentira o gosto ou o interesse. Estava farta do nada.
Nuno quis falar-lhe e apresentar algumas razões. Desistiu, depois de quatro tentativas para um telemóvel desligado. Odiava deixar mensagens no gravador!
Andou apreensivo, mas não lhe notaram desgraça no rosto. Voltou aos treinos e intensificou os puzzles. Nos anos seguintes, e ainda hoje, continuou no leite magro e nas bolachas dietéticas.
Sur les côtes du Portugal
comme les navigateurs anciens
Au large du Portugal la mer est couverte de barques
et de chalutiers de pêche
Elle est d' un blue constant est d'une transparence pé-
lagique
Il faut beau et chaud
Le soleil tape en plein
D' innombrables algues vertes microscopiques flo-
tent à la surface
Elles fabriquent des aliments qui leur permettent de
se multiplier rapidement
Elles sont l' inépuisable provende vers laquelle accourt
la légion des infusoires et des larves marines délicates
Animaux de tout sortes
Vers étoiles de mer oursins
Crustacés menus
Petit monde grouillant prés de la surface de eaux tou-
te pénétrée de lumière
Gourmands et friands
Arrivent les harengs les sardines les maquereaux
Que poursuivent les germons les thons les bonites
Que poursuivent les marsouins les requins les dauphins
Le temps est claire le pêche est favorable
Quand le temps se voile les pêcheurs sont mécon-
tents et font entendre leurs lamentations jusqu' a la tribu-
ne du parlement
Blaise Cendrars, Folhas de Viagem
terça-feira, 11 de agosto de 2009
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Brava Dança
domingo, 9 de agosto de 2009
sábado, 8 de agosto de 2009
Raul Solnado
Todos os dias são tristes ou alegres em cada memória que acendem. Mas o riso é a única - e, por isso - a maior conquista do Homem.
Em sua homenagem.
Com título dentro
Quero dar-te um nome de três letras
De Paz, de Amor e de Imensidão
E valha mais que o futuro dos profetas
O gesto simples da nossa dupla mão
1934.08.08
Que o sono roubou ao sonho
Havia um escrito em choro de menino
Pintado de azul e dentes
Tão perto como os poentes
Tão longe como a distância
E neste corpo que avança
Voltou-me à memória
O teu braço amigo
Que me deixava no cimo da vida
Onde o perigo
Era só limpar depressa as lágrimas
E não beber o horizonte.
Por muito que volte a sonhar
Sei que não vou estar
No berço do teu braço
Salvo em cada escuro que desfaço
E no beijo infinito
Com que sinto
O vagar sonâmbulo do mundo.
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
Under the sun
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
Abecedário (Bernardo)
Em menos de duas semanas, era a terceira vez que a capota rígida não recolhia por inteiro e o sistema fez-se surdo-mudo quando lhe explicou as razões de queixa, primeiro mansamente e, volvidos segundos, praguejando a marca, os mecânicos e até o bom Deus. O veículo, modelo up up grade, vinha munido de sistema manual de utilização rápida e simples, capaz de solucionar qualquer problema, mesmo aquele, mas havia sempre a hipótese de Bernardo ficar de mãos oleadas e, pior ainda, escancarar aos passantes a sua comprovada ineptidão manual.
Odiava um reles parafuso, abominava uma chave de fendas, desprezava qualquer livrinho de instruções. Mas pagava, tinha direitos! Pagava para manter essas estimações: o carro tinha sido caríssimo (não forçosamente para ele, mas numa análise objectiva de mercado e com o sentido de um bonus pater familiae), a garantia assegurava cinco anos inteiros de fiabilidade e o cartão de crédito prevenia qualquer irreverência dos automatismos, teimando em dar como certa a assistência nos próximos quinze minutos, em qualquer pedaço recôndito do mundo inteiro.
Os locais do embaraço eram sempre escrupulosamente escolhidos, parecendo que a Criatura lá de cima, em lugar de jogar aos dados, o tinha sorteado para exemplo da ridicularia.
Na primeira vez, há pouco mais de uma semana, tinha sido em frente da casa da futura sogra e conseguiu espreitar-lhe o sorriso trocista a enfeitar as pregas dos longos cortinados da janela da sala. Há cinco dias, se tanto, foi mesmo à porta do bar do Clube, quando a Mónica teve de ficar a fazer urgências e ia, ledo e pimpolho, mostrar às colegas todo o vermelho metalizado da sua recente aquisição.
Agora ali, precisamente à entrada da porta principal do Palácio da Justiça, precisamente quando tinha conseguido um lugar fronteiro, onde era completamente impossível – precisamente como se havia esforçado – passar despercebido ou sequer como um qualquer.
No segundo piso, na janela mais ao fundo, já se vislumbrava a senhora escrivã do terceiro juízo a chamar ao espectáculo todo o pessoal de apoio, auxiliares e eventuais incluídos, e quase se percebia o som do discurso unânime: tanto dinheiro e tão pouco jeito! Doutor Bernardo!
Espreitando no magote da coscuvilhice, a adjunta Sereia (Sereia de Souza e Silva no tratamento integral) não conseguia apartar o cómico do enlevo e disfarçava o olhar directo, acautelando a solidariedade, se a coisa viesse a dar para o torto, tal como estava em ver-se que sim.
Sereia era imensamente boa, até como pessoa, e o doutor Bernardo (Bernardo Siqueira no tratamento profissional) costumava repetir que adorava ser atendido pela menina. Sem outros avanços, por enquanto, mas estudando o caminho para que, chegada a hora deles, não parecessem importunos.
Cá fora, de todo inesperadamente, uma nuvem carregada veio-se juntar à pandega da assistência. Aproximou-se, sorrateira mas firme, deitou um chuviscado aviso de segundos e, imediatamente, sem qualquer mais, água vai: uma bátega tão forte, tão despropositada que até os cães precisavam de impermeável. Que carga!
Bernardo ficou pendurado entre o corre e o aguenta, mas não aguentou: correu, correu, mas era como se apenas caminhasse dentro de água.
A gravata Armani ensopada, o sapato Sebago, americano de gema, todo empapado, o fatinho Boss encharcado, a cuequinha Gucci (um boxer, claro) alagada. Tudo completamente molhado. Bernardo trazia uma pasta Monteblanc de mil e duzentos dólares, mas parecia um plástico de levar à pesca.
Quando passou o átrio e se abrigou continuou tempos infindos a pensar que chovia. Da cabeça aos pés era um rodilho a sair do balde das limpezas. Nada se aproveitava. Correu (nadou?) até à casa de banho mais próxima e tentou ligar do móvel para o terceiro juízo. O telemóvel respondeu-lhe no mesmo tom do veículo: agora não!
Salvou-o um colega que desanuviava a bexiga no intervalo do julgamento. Avisou-o que o magistrado estava saturado de o esperar, mas ia transmitir o sucedido: afinal, saturado era a melhor rima para Bernardo.
Bernardo rogou que no caminho suplicasse os favores de Sereia, aquela menina boa do terceiro juízo.
Claro!
Repreendeu-lhe o colega. Há nomes mesmo dados à água. Acasos!
Sereia escolheu a solidariedade, quando a contrapartida certa era o gozo dos colegas. Foi sensível ao dilúvio que tinha espreitado da janela. Mas, mesmo no despudor que as desgraças consentem, não lhe parecia correcto entrar sem mais pela casa de banho e deitar-se a socorrer o pingado, tanto que sem alguma ligação íntima a uni-los.
Falaram com a porta a apartar qualquer pouca vergonha, ainda que fruto da aflição inesperada, e Sereia prometeu-lhe um equipamento completo, mesmo que muito parco em marcas consagradas.
Assim fez, usando a preceito a por outros estafada máxima de quem promete cumpre: um casaquinho no primeiro juízo, uma camisola na segunda secção e umas sapatilhas que andavam perdidas na espera semanal do jogo de futebol entre comarcas. As calças, isso foi mais complicado e Sereia nunca quis dar muita explicação. Mas lá lhe serviram, com as ancas a sobrar de espaço e um palmo em falta para chegarem aos calcanhares.
Bernardo correu para casa de taxi, guardou no bolso seco o número particular de Sereia e o juiz aceitou uma desculpa manhosa para adiar a audiência.
Sereia foi brindada com dizeres estranhos quando regressou ao Windows para terminar a acta e preparar dois mandados. O colega mais novo julgou-se protegido pela circunstância e pela unanimidade e acrescentou ao sorriso uns dizeres mais afrodisíacos.
Se ela lhe tinha secado o corpo inteiro, que ele também se ia lançar a um dilúvio e esperava igual dedicação, tanto mais colegas.
Foi no que se aventurou.
Sereia resguardou-se no silêncio, depois de se desculpar com o estado calamitoso do advogado. Sabia que ele guardara o número no bolso seco. E sabia das suas potencialidades. Toda a gente sabia, todas as adivinhavam!
O doutor Bernardo ligou-lhe no mesmo dia, já noite. Impunha-se-lhe uma cortesia de agradecimento. Fez-lhe ver que ainda estaria a olhar o autoclismo, se a sua solidariedade não tivesse sido tão actuante. Fez-lhe sentir o quanto passava a ser sua credora.
Sereia concordou. Não com tantos excessos de reconhecimento, com tanta graça delicodoce, mas mostrando-se pronta a aceitar uma paga. Simbólica. Como bons amigos. Amigos a quem a desgraça dos céus uniram num companheirismo.
Marcaram encontro, longe do átrio desumano da comarca, fugidos ao sussurro troceiro de colegas.