Nuno Correia e V. L. de Albergaria sabia artes marciais e adora fazer puzzles com mais de mil peças. Passava noites a fio a juntar os pedaços, acompanhado por copos de leite magro e bolachas dietéticas. Deitava-se tarde, semi ensonado com as cores misturadas dos seus problemas recortados, mas enchia cem abdominais antes de se estirar na cama dura.
Tinha um curso desnecessário, um carro descuidado e uma namorada que teimava em adiar o enlace. Receava-lhe a teimosia das noites lúdicas em solitários magicares e a sua abstinência de convívios e outros prazeres mais mundanos, esquecido das gentes no encaixe das peças.
Vezes sem conta o encostou à parede. Umas vezes em razões físicas de volúpia; muitas mais com a ameaça de um alheamento definitivo, continuasse ele nas infantilidades daquela vida dividida entre o exercício e o recorte. Fazia-lhe espécie aquele desperdício muscular, aquela abnegação, sem oferta, aquela distância da carne, mais por ser sua. E se valia a pena! – Salientavam-lhe as colegas, mais turvando o seu espírito e permitindo, aqui e além, que uma descrença na assumpção do namorado se lhe instalasse na mente. Um atleta! Para quê um atleta?
Nuno andara pelo futebol juvenil e chegara a ser baptizado sucessor de Humberto: um corpo completo em metro e noventa de músculo, uma sagaz visão do campo, uma antecipação acutilante. Os avançados sofriam em vão para chegarem primeiro, baldadamente tentavam reviengas e ronhonhós e, quase sempre, levava a admiração de ser eleito o melhor em campo. Num dia qualquer, normal aos normais, decidiu apartar-se dos desportos colectivos e dedicou-se ao karaté a tempo inteiro, de laudes a completas. Ignorou os protestos dos colegas, a raiva do chefe de departamento e a estranheza do pai. Estava decidido. E no Nuno, por mais estranho que fosse o conteúdo da decisão, ela valia por si mesma: irreversível e inultrapassável. Com a dedicação desmedida, ultrapassou cintos a uma velocidade recorde e em poucos anos foi ao Japão certificar o terceiro dan.
Com tantas potencialidades, nunca se misturou numa briga, nunca aproveitou um momento de experimentação técnica. Sucessivamente, cada vez de modo mais persistente, foi ficando em casa à noite e nos quentes finais de tarde. Primeiro queimava o tempo em sôfregas recargas de televisão, deitado no sofá como um marasmo. Lia pouco, dormia muito, comia regular. Até que num Natal dos anos noventa, a Leonor lhe ofereceu um puzzle enorme, com a torre Eiffel estranpelhada em dois mil pedaços.
Achou a coisa inopinada, vinda da sua colega do último ano. Mal se conheciam, Nuno nunca lhe passara cartão e não havia notado qualquer atenção especial da parte dela.
Leonor era tudo menos pouco requisitada. Festas, convívios, mensagens furtivas e declarações mais claras. O filho do catedrático prometera-lhe uma média desusada por troca de número par em dois convívios africanos, nem pedia mais; o sobrinho do dono do Hotel Figueira deixava-a conduzir o descapotável sem carta, nas noites mais tépidas, afastados do bulício em desculpa dos olhares policiais, em troca de uns beijos languidos que só ele imaginou.
Leonor, afinal, gostava de ter a indiferença, o desleixo do tanto faz. Cuidou-se capaz de alterar caminhos de destino, de moldar e mudar, de pôr o Nuno a olhar para ela como quem vê ali o mundo inteiro. Enganou-se. Agora, acha apenas que foi teimosa.
Nuno agradeceu a oferta, mas teve a coragem de perguntar porquê. Leonor embasbacou-se e disfarçou a verdade. Sabia que ele juntava o aniversário ao de Cristo e disse-lhe que tinha de o conhecer antes dos trinta e três. Nem um nem outro percebeu a graça, se era mórbida ou festiva, mas essa ignorância foi o condão para de irmanarem num sorriso.
Os tempos seguintes foram desmontando a graça e construindo a desgraça. Ano a ano, como o mar que corrói a rocha dura, persistente, contumaz. Nuno não se descosia, Leonor achava-se cerzida, sem qualquer movimento além da insistência de o querer diferente.
Um dia qualquer, Nuno pegou no papelinho da cómoda pensando que era mais um recado para não esquecer alguma compra e foi ficando apático, de parágrafo a parágrafo. Leonor dizia-lhe que não queria saber de mais nada, ia deixá-lo, e não tinha como voltar atrás. Foram anos mudos, ele nunca sequer lhe sentira o gosto ou o interesse. Estava farta do nada.
Nuno quis falar-lhe e apresentar algumas razões. Desistiu, depois de quatro tentativas para um telemóvel desligado. Odiava deixar mensagens no gravador!
Andou apreensivo, mas não lhe notaram desgraça no rosto. Voltou aos treinos e intensificou os puzzles. Nos anos seguintes, e ainda hoje, continuou no leite magro e nas bolachas dietéticas.
Tinha um curso desnecessário, um carro descuidado e uma namorada que teimava em adiar o enlace. Receava-lhe a teimosia das noites lúdicas em solitários magicares e a sua abstinência de convívios e outros prazeres mais mundanos, esquecido das gentes no encaixe das peças.
Vezes sem conta o encostou à parede. Umas vezes em razões físicas de volúpia; muitas mais com a ameaça de um alheamento definitivo, continuasse ele nas infantilidades daquela vida dividida entre o exercício e o recorte. Fazia-lhe espécie aquele desperdício muscular, aquela abnegação, sem oferta, aquela distância da carne, mais por ser sua. E se valia a pena! – Salientavam-lhe as colegas, mais turvando o seu espírito e permitindo, aqui e além, que uma descrença na assumpção do namorado se lhe instalasse na mente. Um atleta! Para quê um atleta?
Nuno andara pelo futebol juvenil e chegara a ser baptizado sucessor de Humberto: um corpo completo em metro e noventa de músculo, uma sagaz visão do campo, uma antecipação acutilante. Os avançados sofriam em vão para chegarem primeiro, baldadamente tentavam reviengas e ronhonhós e, quase sempre, levava a admiração de ser eleito o melhor em campo. Num dia qualquer, normal aos normais, decidiu apartar-se dos desportos colectivos e dedicou-se ao karaté a tempo inteiro, de laudes a completas. Ignorou os protestos dos colegas, a raiva do chefe de departamento e a estranheza do pai. Estava decidido. E no Nuno, por mais estranho que fosse o conteúdo da decisão, ela valia por si mesma: irreversível e inultrapassável. Com a dedicação desmedida, ultrapassou cintos a uma velocidade recorde e em poucos anos foi ao Japão certificar o terceiro dan.
Com tantas potencialidades, nunca se misturou numa briga, nunca aproveitou um momento de experimentação técnica. Sucessivamente, cada vez de modo mais persistente, foi ficando em casa à noite e nos quentes finais de tarde. Primeiro queimava o tempo em sôfregas recargas de televisão, deitado no sofá como um marasmo. Lia pouco, dormia muito, comia regular. Até que num Natal dos anos noventa, a Leonor lhe ofereceu um puzzle enorme, com a torre Eiffel estranpelhada em dois mil pedaços.
Achou a coisa inopinada, vinda da sua colega do último ano. Mal se conheciam, Nuno nunca lhe passara cartão e não havia notado qualquer atenção especial da parte dela.
Leonor era tudo menos pouco requisitada. Festas, convívios, mensagens furtivas e declarações mais claras. O filho do catedrático prometera-lhe uma média desusada por troca de número par em dois convívios africanos, nem pedia mais; o sobrinho do dono do Hotel Figueira deixava-a conduzir o descapotável sem carta, nas noites mais tépidas, afastados do bulício em desculpa dos olhares policiais, em troca de uns beijos languidos que só ele imaginou.
Leonor, afinal, gostava de ter a indiferença, o desleixo do tanto faz. Cuidou-se capaz de alterar caminhos de destino, de moldar e mudar, de pôr o Nuno a olhar para ela como quem vê ali o mundo inteiro. Enganou-se. Agora, acha apenas que foi teimosa.
Nuno agradeceu a oferta, mas teve a coragem de perguntar porquê. Leonor embasbacou-se e disfarçou a verdade. Sabia que ele juntava o aniversário ao de Cristo e disse-lhe que tinha de o conhecer antes dos trinta e três. Nem um nem outro percebeu a graça, se era mórbida ou festiva, mas essa ignorância foi o condão para de irmanarem num sorriso.
Os tempos seguintes foram desmontando a graça e construindo a desgraça. Ano a ano, como o mar que corrói a rocha dura, persistente, contumaz. Nuno não se descosia, Leonor achava-se cerzida, sem qualquer movimento além da insistência de o querer diferente.
Um dia qualquer, Nuno pegou no papelinho da cómoda pensando que era mais um recado para não esquecer alguma compra e foi ficando apático, de parágrafo a parágrafo. Leonor dizia-lhe que não queria saber de mais nada, ia deixá-lo, e não tinha como voltar atrás. Foram anos mudos, ele nunca sequer lhe sentira o gosto ou o interesse. Estava farta do nada.
Nuno quis falar-lhe e apresentar algumas razões. Desistiu, depois de quatro tentativas para um telemóvel desligado. Odiava deixar mensagens no gravador!
Andou apreensivo, mas não lhe notaram desgraça no rosto. Voltou aos treinos e intensificou os puzzles. Nos anos seguintes, e ainda hoje, continuou no leite magro e nas bolachas dietéticas.
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