quinta-feira, 31 de julho de 2008

fim de dia, fim de mês

há sempre um caminho que nos retorna a casa
ou a esperança de um sopro de vento que nos empurre
elas que fiquem, a coberto da noite que chega
mmn Há a boca pisada de pedras
nmnmnmnmnmnnnn e o remorso
n é uma parede mordida pelo eco.

Jorge Melícias

(in o remorso de baltazar serapião, valter hugo mãe)
Olha os meus olhos e vê quantos demónios
os teus olhos vêem. Sendo tu que os vês,
estes demónios sendo meus são teus.
São teus os demónios o que tu vês
são os teus olhos que tu vês nos meus.
E assim há-de ser para todo o sempre.

Amadeu Baptista, Antecedentes Criminais
La nuit n'est jamais complète
Il y a toujours puisque je le dis
Puisque je l'affirme
Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
Une fenêtre éclairée

Paul Éluard

(in a invenção do amor e outros poemas, Daniel Filipe)
sei lá se sim! dizem eles....
riscos de um fotógrafo (muito) dedicado
mas, como se vê, vale (bem) a pena
antes do (mais que) merecido descanso

O rapaz dos pássaros

Era um rapaz que vendia pássaros
à beira do mar azul.
Deixava escolher as cores e as espécies
e fazia descontos aos banhistas ingleses.

Quando o negócio
chegava a bom porto
entregava uns papeis de almaço
com o nome das aves.

quarta-feira, 30 de julho de 2008



Urgência

Não esperaria,
junto aos muros de áspera luz,
a evocação dos cereais, a lenta rotação das
alfaias.

Pensava sempre nesse rumor,
quando, ao cair da tarde,
se ouvia claramente o grito da mandrágora.

Vem depressa,
gritaram os melros no ramo seco, ergue
perto e nós a tua morada.

José Agostinho Baptista, Filho Pródigo

El portugués que viaja por México

Siempre que veo al gran poeta portugués José Agostinho Baptista no puedo olvidar que nasció ele mismo año que yo pêro lo hizo en el dia más horrible del año, el dia que yo más ódio: el 15 de Agosto. Detesto ese día porque está en el centro mismo de la estación del año que más deploro: el verano. Ódio Agosto más que Júlio o siptiembre. Ódio el verano; ódio los dias festivos y, si son de verano, todavia más Ódio el calor del 15 de Agosto, en pleno verano, esse dia que siempre es festivo. No ódio, en cambio – sino todo lo contrario – a José Agostinho baptista, que es un hombre muy especial y un gran poeta.
Veamos. De él son estos versos pertenecientes a um poema titulado Lanzarote: “Eu sei, meu amor, /que podias caminhar sobre a lava/ Nas colinas desta lua jamais um jardim desvenderá/ as tuas rosas/ O céu é cruelmente azul/ A terra é como o teu silêncio, um astro queimado”.
(…) A él le conocí en Lisboa. (…) Fuimos a un bar mexicano de Lisboa y José Agostinho demonstro un más que amplio conocimiento sobre las letras de todas las canciones mexicanas del local. Me habló de xalapa, de Cuernavaca, de Guadalajara, se emociono al evocar Guanajuato, lloró al recordar María Félix y me cito parrafadas enteras de Pedro Páramo.
(…) Escuchamos a Chavela Vargas bebiendo lentamente tequila, me recito de memoria poemas de Octavio Paz y José Gorostiza. Cuando abandone su casa, me regalo un ejemplar de su último libro: Sobre el volcán, un conjunto de relatos sobre la experiencia de haber viajando incansablemente por México.
A la mañana siguiente, me dijo Hermínio Monteiro que el poeta no había estado en su vida em México. Siempre que pienso en este extraño personaje le evoco como si formara parte de esse poema de Octavio Paz que a él tanto le gusta y que dice así: “… donde un hombre encorvado escribe trabajosamente, en camisa, entre pausas furiosas, estos cuantos adioses al borde del precipício”.

Enrique Villa-Matas
Domingo, 17 de Agosto de 1997
Para Acabar Con Los Números Redondos

terça-feira, 29 de julho de 2008

A maravilhosa declaração de Innsbruck

- Sempiterna Temptatio – considerou Zenão. - Penso para comigo, não raras vezes, que nada no mundo, salvo uma ordem eterna ou uma singular veleidade da matéria em construir algo que a ultrapasse, poderá explicar a razão por que, de dia para dia, me esforço por pensar com um pouco mais de clareza que no dia anterior.
Continuava sentado, de queixo caído, naquele quarto invadido por um húmido crepúsculo. O fogo da lareira tingia-lhe de vermelho as mãos roídas pelos ácidos, marcadas, aqui e além, por ténues cicatrizes de queimaduras; via-se que considerava atentamente esses estranhos prolongamentos da alma, esses grandes instrumentos fritos de carne que nos servem para tomar contacto com tudo.
- Louvado seja eu! – exclamou ele, por fim, com uma espécie de exaltação em que Henrique Maximiliano julgou reconhecer o Zenão inebriado de devaneios mecanicistas partilhados com Colas Gheel. – Sempre me há-de maravilhar o facto de esta carne sustentada pelas suas vértebras, de este tronco ligado à cabeça pelo istmo do pescoço, e com os membros dispostos simetricamente à sua volta, conter, e talvez produzir, um espírito que tira partido dos meus olhos para ver e dos meus gestos para apalpar… Conheço os seus limites e sei que lhes falta tempo para ir mais longe, e força, se porventura pudesse dispor de tempo. Mas existe, e, neste, momento, ele é aquele que É. Bem sei que se ensina, que erra, que por vezes interpreta mal as lições que o mundo lhe ministra, mas sei também que possui o dom de conhecer e não raro rectificar os seus próprios erros. Já percorri grande parte desta bola em que vivemos, estudei o ponto de fusão dos metais e a germinação das plantas, observei os astros e examinei o interior dos corpos. Sou capaz de extrair, deste tição que aqui está, a noção de peso, e destas chamas a noção de calor. Sei que não sei aquilo que não sei, invejo aqueles que venham a saber mais, mas sei que, tal como eu, terão de medir, pesar, deduzir e desconfiar das deduções alcançadas, distinguir o que há de falso no verdadeiro e levar em conta a eterna mistura da verdade e da falsidade. Nunca me agarrei fixamente a uma ideia, por temer a confusão em que, sem ela, poderia vir a cair. Nunca temperei um facto verdadeiro com o molho da mentira, para me facilitar a digestão. Nunca deformei os pontos de vista do adversário para mais facilmente ter razão, nem sequer durante o debate sobre o antimónio, os de Bombast, que nem mesmo assim me ficou grato. Ou talvez sim: surpreendi-me nesse acto, mas sempre me repreendi como se repreende um criado desonesto, confiando apenas na promessa que a mim mesmo me fiz de vir a proceder melhor. Sonhei com os meus sonhos; não considero tudo isto mais do que sonhos. Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão. Os triunfos e os perigos que acumulei não são aquilo que se pensa: existem outras glórias para além da glória e outras chamas para além das da fogueira. Consegui, praticamente, desafiar as palavras. Hei-de morrer um pouco menos estúpido do que nasci.

YOURCENAR, A Obra ao Negro


Uma conversa em Innsbruck

- Graças a Deus - disse o capitão -, graças a Deus que todo este beatério não virá meter o nariz nos meus poemas. Só me tenho exposto a perigos simples: aos golpes da guerra, às febres de Itália, ao venéreo das raparigas, aos percevejos das estalagens e aos credores que há por toda a parte. Já desisti de me meter com essa súcia de barrete e barretina, tal como também não vou à caça do porco-espinho. Nem sequer refutei esse malandrão do Roberto de Udine, que diz ter descoberto erros na minha versão de Anacreonte, ele que é um ignorante crasso em grego e em todas as demais línguas. Aprecio a ciência, como toda a gente, mas pouco se me dá que o sangue desça ou suba pela veia cava; basta-me saber que arrefece quando a morte chega. E se a Terra se move...
- Move-se - observou Zenão.
kjjçlçlçlççççççççççççç
Marguerite Yourcenar, A Obra ao Negro, trad. António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Le grand chemin

Henri-Maximilien Ligre poursuivait par petites étapes sa route vers Paris.
Les querelles opposant le Roi à l'Empereur, il ignorait tout. Il savait seulement que la paix vieille de quelques mois s'effilochait déjà comme un vêtement top longtemp porté.
.......
Il échangeait des plaisanteries avec les passants, en s'informait des nouvelles. Depuis l'étape de La Fére, um pèlerin le précédait sur la route à une distance d'une centaine de toises. Il allait vite. Henri- Maximilien, ennuyé de n'avoir à qui parler, presse le pas.
- Priez pour moi à Compostelle, fit le Flamand jovial.
- Vous avez deviné juste, dit l'autre. J'y vais.
Il tourna la tête sous son capuchon d'etoffe brune, et Henri-Maximilien reconnut Zénon.
Ce garçon magre, au long cou, semblait grandi d'une coudée leur dernière équipée à la foire d'automme. Son beau visage, toujours aussi blême, paraissait rongé, et il y avait dans sa démarche une sorte de précipitation farouche.
- Salut, cousin!
uiiopioip+ip+i
Marguerite Yourcenar, L'OEuvre au Noir

Dicionário Imperfeito (A)

Agradar - É extraordinário como nos tornamos violentos quando queremos agradar ao mundo. Agradar ao mundo resume o comportamento da sociedade nos seus aspectos mais retóricos.
jjjkjjdjdjDJº
Amar - Nós, as mulheres, o que nos faz amar um homem é aparentá-lo com tudo o que amamos - o tempo da crise, da puberdade, da gestação, do enigma; os primeiros rostos, as primeiras carícias, os primeiros medos.
kkkkkkkkkkkk
Amor - O fenómeno mais herético é o amor. Ele não é bem recebido nem tolerado porque é uma força sem desistência e que não se revoga a si mesma.
gggggggggggg
Artista - A grandeza de um artista está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica.
jjjjjjjjjjjjjjjj
Autor - O autor é um sintoma. Ele reflecte as condições políticas e sociais do seu tempo, isso é coisa sabida e repetida constantemente. Desde o pequeno xamã que pinta à luz dum archote o bisonte e a corça, na parede duma gruta, até à concepção de Guernica, nos tétricos estertores dum traço eloquente e sagrado, tudo pertence ao mesmo movimento, sintoma da raça humana em crise; exprime o arrepio estranho dos grandes espíritos em rebelião ou submissão, na alteridade da sua experiência.

Estética da incompletude

Com este livro, como anuncia a Guimararães Editores, tem início a publicação da Opera Omnia de Agustina Bessa-Luís e os volumes seguintes constituirão a sua edição ne varietur.
O Dicionário Imperfeito surgiu de uma ideia de Alberto Luís e de um desafio recente de Paulo Teixeira Pinto e Miguel Freitas da Costa. Na concretização do projecto - como se vinca na Nota Editorial - foram procuradas ideias-chave, figuras, trechos significativos da Obra de Agustina e, depois, recortados e agrupados, com recurso à técnica de entradas, própria de um dicionário.
Embora limitado, desde logo pela exclusão da ficção, Imperfeito assim, pretende proporcionar uma sugestiva iniciação à surpreendente Obra desta autora.

domingo, 27 de julho de 2008

finalmente, cheguei.


só faltava esta!


então, escrevo...


A única conclusão...

Álvaro de Campos, lo más histéricamente histérico del mundo mental de Pessoa, nació en Tavira, puerto pesquero del Algarve cercano de la línea fronteriza de Huelva el 15 de octubre de 1890, es decir, que hace tres domingos se cumplieron exactamente 105 años de su nascimiento. Vivó menos de cuarenta años, aunque no se ha podido precisar la fecha de su muerte. Entre él y Pessoa hubo una estrecha relación de amistad, lo que no es extraño, pues de todos sus heterónimos, era, desde el punto de vista poético, el que más parecía a Pessoa. (...)
El pobre Campos, que no gozó de un excesivo fervor de los lectores, publicó en la década de los veinte algunos poemas en revistas concretamente en Presença, su impresionante poema Tabacaria, no supo lo lo que es llamar realmente la atencíon de algunos lectores. Murió hacia 1935 y no me pergunten ahora por qué estoy escribiendo sobre él. Sálo sé que llega a su final este artículo y que no tengo conclusión. O mejor dicho, la tengo. Citaré dos versos de Lisbon revisited: "No me vengáis con conclusiones! La única conclusíon es morir".
Henrique Villa-Matas, El Hombre Que Se Parecía A Pessoa
Domingo, 5 de Noviembre de 1995,
Para Acabar Com Los Números Redondos

sexta-feira, 25 de julho de 2008

que será

Por uma só súplica, a luta do olhar
perde em devaneios de cavalheiro.
Crê que ceifando vamos encontrar
o que esconde a agulha no palheiro.

Puro Vintage IV


Pelo começo do Verão, à chegada da sardinha assada - que, desde sempre, fazia as delícias dos fiéis que prestavam culto ao três santos mais porreiros, porque populares -, Pedrito sabia que estava para breve.
No café do senhor Antunes, o momento adquiria, de facto, bastante solenidade, a principiar pela chegada do fornecedor que saía da carrinha frigorífica com um ar de poucos amigos e imbuído do espírito de sacrificado proletário.
Depois, com a ajuda do já referido proprietário hoteleiro, principal interessado na encomenda, ambos arrumavam as caixas de cartão dentro da arca congeladora de sempre - fundo branco e riscas vermelhas, com um logotipo azul, podendo ler-se a palavra de saudação mais traduzida em todo o mundo, ali tornada marca comercial.
Tudo devia ficar bem acondicionado para que, durante três meses, nada se estragasse ou partisse.
Por fim, conferidas as guias e facturas, o fornecedor retornava à sua carrinha para ir buscar o devido brinde e adereço publicitário mais aguardado - a nova carta dos gelados!
Pedrito e os seus amigos nunca se cansavam deste rito anual, típico da altura do estio, satisfazendo logo ali, em jeito contemplativo, uma curiosidade que prenunciava belas tardes, conseguidas, certamente, com algum custo.
Na verdade, era preciso ser-se bonzinho, portar-se bem; fazer todos os recados que os pais lhes ordenassem. No fim, a recompensa, contudo, lá chegava. "Toma lá dinheiro para ires comer um gelado" - a frase que melhor sabia ouvir.
No final do primeiro mês, seguindo as gravuras apreçadas na tal carta, colocada em expositor junto da arca, cada um dos amigos de Pedrito, ia conferindo quais as novidades já experimentadas e saboreadas, dando conta da falta de outras tantas ainda a carecer de verdadeira e entendida prova. Dentro em pouco chegaria Setembro - já depois da praia - e os ares de escola, realmente, não tinham muito que ver com estes devaneios.
Para Pedrito, as suas prioridades eram simples. Por entre sorvetes de água, gelo com aromas de morango, limão e cola - ideais para tardes passadas à beira de piscinas descobertas e perdidas ao tórrido sol (mesmo ali ao fundo do bairro) -, Pedrito, miúdo de hábitos muito próprios, já tinha votado no seu predilecto.
Ao rasgar, no topo, a folha de papel e tirando a pequena tampa circular que o cobria, logo ali estava aquele seu cone recheado, pronto a fazer as suas delícias. Primeiro vinha o amendoim, estaladiço e torrado, depois, inevitavelmente, as natas frias e aquele glacial e crocante chocolate de leite. Ao chegar já à parte da bolacha de baunilha - melhor ainda que a sua congénere "americana" - o tempo era de fazer render e poupar, porque logo depois o momento de inocente e alegre prazer chegaria ao fim.
Por vezes, a testa ficava fria, numa leve dor provocada pela sofreguidão que levava ao choque térmico. Contudo, também isso passava numa breve pausa e mais uma dentada era desferida com entusiasmo redobrado.
Ao mesmo tempo, entre os convivas de palmo e meio, falava-se de aventuras, caças ao tesouro, mistérios sobre mouras encantadas ou façanhas de "cowboys" e corridas de bicicleta, intercaladas por alguns toques de bola e troca de cromos.
Para Pedrito, os dias eram grandes como as férias - a viver repletas de pequenos e refrescantes prazeres que, ainda assim, não saciavam tal sede de pura Felicidade.


Um clássico contemporâneo dedicado ao Verão, na esplanada à beira da catedral, e um tributo aos mistérios de outros tempos.

O Português

O português, regra geral, não acha graça nenhuma à graça propriamente dita. Ri-se, sobretudo, da desgraça. Enfim - como a própria palavra indica - do que não tem graça absolutamente nenhuma. Basta contar-lhe que andam uns indivíduos numa carrinha pintada nas cores da Cruz Vermelha a pedir dinheiro para as cheias e ele solta uma gargalhada. Fale-se-lhe no preço da carne para bife, e ele fica prostrado de boca aberta. Só a simples menção do número "dois vírgula oito" é suficiente para ele se desconjuntar a rir. Em suma - os portugueses têm uma interpretação católica do humor. A graça não é algo que tem piada, mas um estado que só se atinge depois de um grande sofrimento individual e colectivo: o estado da graça.
Basta pensar que a língua portuguesa, no que toca às acções de graça, apenas permite que as pessoas se desgracem (e desgraçam-se) sem que haja qualquer hipótese de virem, depois, a engraçar. Amam os desgraçadinhos e acham-lhes uma piada de morrer (e morrem), mas ninguém suporta um engraçadinho. Um engraçadinho, em Portugal, está condenado a uma existência semanticamente abaixo, de desgraça - Miguel Esteves Cardoso (25.07.1955), A Causa das Coisas

As mais belas palavras

Yakamoz (turco) - o reflexo da lua sobre a água

Huhe (chinês) - o doce sussurro que faz o suave dormir

Volougoto (baganda - África) - caótico

Oppholsvaer (norueguês) - a luz do dia depois da chuva

Madala (hausa - África) - graças a Deus

Saudade (português) - ....

saudades

passos perdidos no murmúrio d' água
teimando vontade em direcção ao mar
deixo-a antes, mal esquecida, a mágoa,
é tanta, de tanto azul e não t'o poder dar

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Anarquias

- Oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram dons naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar.
``Fui operário, trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo, o que a maioria da gente é naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De resto, podia tê-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.''
``Fui um operário vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim. Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino podia ter sido pior do que era; mas naquela altura parecia-me a mim que eu era um entre a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas, e que se tinha servido das convenções sociais para mas fazer. Isto era aí pelos meus vinte anos - vinte e um o máximo - que foi quando me tornei anarquista.''
Parou um momento. Voltou-se um pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se mais um pouco.
- Fui sempre mais ou menos lúcido. Senti-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto - o anarquista consciente e convicto que hoje sou.
Fernando Pessoa
Banqueiro Anarquista

quarta-feira, 23 de julho de 2008

tanto calor

Sim…

Valia a pena confundir
Este calor, aquele suor
No gesto íntimo medir
O que inventas por amor

Balbúrdias e regateio:
Dois corpos de permeio
E a saudade prematura
De repetir a aventura
Mesmo fatigada de um dia inteiro de calor,
a Lua lança a luz bastante para acender um fininho
logo ali em frente, na esplanada

Estações


"Desde há cerca de trinta anos, os leitores das Estações formam uma espécie de confraria de iniciados. Partilham um mesmo universo; utilizam a mesma linguagem, as mesmas imagens de referência; conhecem-se e reconhecem-se entre si, um pouco como os leitores de Malcolm Lowry ou de Júlio Cortázar" - da contracapa, na edição portuguesa de 1994 (Publicações Dom Quichote).


Depois de se anunciar com a frase de Georges Schehadé Tanta magia para nada Se não fosse essa lembrança de um outro mundo, começa assim a primeira parte: Ele chegou pelo caminho do desfiladeiro, cerca do décimo-sexto mês do Outono, que por lá chamávamos: a estação podre. Foi a Louana a primeira a vê-lo, e, mais tarde, quando o Conselho se reuniu para deliberar sobre o caso do estranho, ela interveio para reivindicar esse primeiro olhar. Ela tinha aquela cara de criança mongol, risonha, escarlate, que não era da região; tinha entoações estranhas que faziam que se ouvisse sempre com espanto o que ela dizia - Maurice PONS, Estações... Um livro maravilhoso

Ficções

"Do androids dream of electric sheep?" - esta a pergunta que serve de mote - e bem assim, de título - ao clássico da ficção científica escrito na década de sessenta do século passado, por Philip K. Dick.
Transposto para a Sétima Arte por Ridley Scott, com o nome de "Blade Runner - Perigo Iminente", o romance conta a história de Rick Deckard (Harrison Ford), um oficial da polícia de S. Francisco e caçador de prémios. O seu trabalho, "retirar" o maior número possível de andróides humanóides, em fuga dos mundos coloniais, não registados nas Companhias que os produzem, para uma Terra devastada pela Guerra Mundial de 1992.
E é precisamente pela demanda de Rick Deckard que nos vamos apercebendo de um dos elementos-chave do cenário cultural em que a trama se passa. Na sua actividade de "assassino licenciado e remunerado", tendo como alvo tais "imitações" da vida humana, Deckard anseia, pelo menos no início de tudo (no fim contenta-se com um batráquio artificial), ganhar dinheiro suficiente para comprar um animal vivo, verdadeiro - o símbolo genuíno de alto estatuto social e meio único para alcançar alguma felicidade num mundo à beira da extinção - sequela natural de um holocausto nuclear ainda a digerir por todos quantos cá ficaram. Deste modo, ao ganhar o prémio pela captura do primeiro dos Nexus-6 (último modelo de andróide) que com ele se vão inevitavelmente cruzando, Rick usa-o para a compra de uma cabra núbia - a digna sucessora do seu carneiro eléctrico que tem partilhado, nos últimos anos, o telhado do prédio onde reside com um poltro Percheron, verdadeiro, propriedade do seu vizinho. Contudo, tal aquisição - altamente dispendiosa de acordo com o catálogo da Sydney que Deckard traz sempre consigo - é logo deitada por terra, literalmente. Rachel Rosen, também uma Nexus-6, ao dar-se conta de que sempre ocupa o último lugar na escala de empatia pessoal do nosso herói, inconformada com isso mesmo, empurra a cabra de Deckard, prédio abaixo, matando-a, claro está.
Ora, foi a pensar nesta história, assim brevemente resumida - tendo acabado, recentemente, de ler o livro - que aqui há dias me deparei com este simpático e sorridente gnomo de cerâmica, no café onde costumo ir, cá na Sertã.
Ao subir as escadas que dão acesso à parte mais recatada do estabelecimento, esta sorridente personagem, lá está, "eléctrica" e dotada de um qualquer sensor de movimento, logo garbosamente assobia, em jeito de piropo, ao cliente que se assoma a uma mesa para tomar uma bica ou beber uma água.
E se o assobio pudesse fazer realmente lembrar um tropical papagaio, verdadeiro, certo seria que tal estado de coisas só traria dores de cabeça ao proprietário do estabelecimento. Senão vejamos: que proprietário de estabelecimento hoteleiro se arriscaria, nos dias que correm, a abrilhantar o seu espaço com um exemplar deste tipo de aves tão astutas? A resposta: nenhum. Na verdade, o mais provável seria a pronta autuação, pelas entidades fiscalizadoras da salubridade e do gosto, de tais prevaricadores das normas higiénicas ditas "vigentes".
Assim, aqui temos este "Gartenzwerg", que não suja, não diz asneiras - outro aspecto a ter em conta, dado que os papagaios gostam de imitar tudo o que ouvem (o que aqui seria sempre um embaraço, dado o uso abundante e corrente do vernáculo) - e sempre avisa sobre a entrada de mais um ou vários convivas, predispostos, com toda a certeza, a "fazer despesa".
Sempre se pode pensar que realmente o futuro, afinal, não podia ter resultado tão mais diferente do que o previsto e imaginado!... Ficções...
Uma ideia tida, claro está, na esplanada à beira da catedral.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

República

"Numa República quem é o País? (...)"
Mark Twain

Democracia

"O príncipio da democracia é dar e receber; dar um e receber dez."
Mark Twain

Sol

penso com a alma calada
que o que sinto não é verdade
este sol queima quase nada
não passa de ilusão
o que queima realmente é a saudade
e a solidão

Pergunto-me...



Pergunto-me porque é que não me mato? Pergunto-me porque é que me pergunto, depois digo para comigo que não devo pensar assim e acendo um cigarro.

Filmes Tristes, Mark Lindquist

sábado, 19 de julho de 2008

Fischer Z So Long

Ao JP e à Guida

I know it's over

(...)
Oh Mother, I can feel the soil falling over my head
See, the sea wants to take me
The knife wants to slit me
Do you think you can help me ?
Sad veiled bride, please be happy
Handsome groom, give her room
Loud, loutish lover, treat her kindly
(although she needs you
more than she loves you)
And I know it's over - still I cling
I don't know where else I can go
(Over and over and over and over
Over and over...)
I know it's over
And it never really began
But in my heart it was so real
And you even spoke to me, and said:
"If you're so funny
Then why are you on your own tonight?
And if you're so clever
Then why are you on your own tonight?
If you're so very entertaining
Then why are you on your own tonight?
If you're so very good-looking
Why do you sleep alone tonight?
I know...
Because tonight is just like any other night
That's why you're on your own tonight
With your triumphs and your charms
While they're in each other's arms..."

It's so easy to laugh
It's so easy to hate
It takes strength to be gentle and kind
(Over, over, over, over)
It's so easy to laugh
It's so easy to hate
It takes guts to be gentle and kind
(Over, over)

Love is Natural and Real
But not for you, my love
Not tonight, my love
Love is Natural and Real
But not for such as you and I, my love

Oh Mother, I can feel the soil falling over my head
(...)

Morrissey

O Outro Que Era Eu

A cidade de noite está acordada, como os gatos nas vielas, procura recolher-se a uma luminosidade íntima. Manipula seus hábitos, conta histórias, passeia, combina com a verdade o que vai acontecer quando daí a pouco a luz inunda os olhos dos bichos e os telhados das casas.
(...)
Ocorre-me o julgamento. Nestas alturas é bom estar na posse de todas as faculdades, mesmo as mentais. Uma defesa do organismo onde se evitam os espasmos da mais variada qualidade: o indigesto das frituras, as conferências de imprensa, os almoços em que o ambiente esteve de franca cordialidade e ainda refugados da véspera com esturgidos de interminável magnésia. Necessidade imprescindível de serviços médicos, isentos de mínima relação social. É defesa minha, do indivíduo que em mim não se quer sindicalizar. Estado de coma. Sem dúvidas, apatia de trãnsito na encruzilhada que me leva para o Outro. E o melhor, para não ter complicações com os agentes de toda a ordem, é marcar hora no consultório do mais distinto médico da cidade - Ruben A.
Alcobaça (Mosteiro) 19.07.2008

calor II

Aos que derretem a brasa
Na espuma branca do mar
Bem fazem

Aos que, feridos na asa
Teimam em voar
Bem agem

A todos um tempo
Que o Sol castiga
Nem brisa de vento
Nem fresca boca, amiga.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Curvas III

Perdido algures num pensamento
Teu, claro, seguia já sem atenção.
Primeiro, falhou-me o cruzamento
Depois, 120 euros mais a inibição.

Não disse o G.N.R., mas pensou:
Nem toda a hora é para imaginar
O dinheirinho, esse logo lá ficou,
E poemas não se fazem a circular!

(ele há dias...)

Saudoso Saturday Night

Também dá para o Verão.
E estava mesmo a apetecer.

Verão I



Se o Ocean's ainda estivesse aberto e tivesse uma piscina no terraço, esta seria a banda sonora!

Um Vintage a dar sede de outros Verões, de outros tempos!

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Da Ordem ou Interrogações III

A propósito desta carta, deixo aqui um comentário que me pareceu apropriado e se revela como a resposta serena de alguém que já não consegue ficar calado durante muito mais tempo:


"Causídico
Após a leitura atenta de todos estes comentários, apenas me arrisco a dar um testemunho pessoal, porque sempre aprendi a falar apenas daquilo que conheço. Fiz o Estágio de dois anos, com o melhor patrono que poderia ter tido, que me deu trabalho, me inspirou e orientou. Nunca me tratou com paternalismo ou demasiada supervisão, assim que viu a qualidade do meu trabalho - aquela que eu procurava em cada noite de directa, com muito mais prazer do que a estudar para os exames, a preparar, às vezes duas alegações de recurso para processos distintos. Uma das coisas de que mais me orgulho é ainda hoje o meu Ilustre Patrono (agora ex) dizer que pouco ou nada me corrigia, dado o meu zelo e perfeccionismo. Enquanto exerci aquele patrocínio, estatutariamente limitado, que o estágio me impunha por forma a completar os créditos que me levariam a estar apto para exame, dos casos que tive, cinco ao todo (a comarca é densamente povoada de muitos que ficarão agora a olhar para as paredes ou a jogar solitário no portátil), três deles consegui a absolvição para o meu constituinte e dois culminaram na desistência de queixa e em acordo. Eu compreendo que, para muitos, tal caso é uma excepção, não podendo de maneira nenhuma fazer jus para a defesa de uma certa regra diferente daquela que, precisamente, insistem que existe. Contudo, sempre me pergunto: acaso não estarão agora a pôr "a carroça à frente dos bois"? É que é precisamente neste arredamento de quem ainda está a aprender - sem, contudo, ser nenhum garoto da escola primária inconsciente por estádio cognitivo - que se instila a insegurança e se acaba por dar razão ao que, espanto, se começou por dizer. Com uma agravante: um estagiário que faça o exame a uma terça e à segunda ainda é uma sub-species, à quarta já é advogado e é colocado como oficioso na barra - suponhamos. Se passou todo o estágio embrulhado em livros e em consultazinhas, que segurança tem para logo ali, à quarta-feira, poder advogar? Nunca viu nada, nunca soube nada. Há aqui, quer-me parecer, uma ideia um pouco bacoca mas tão típica deste país: O canudo dá tudo! Como se fosse por osmose. É o mesmo que ter alguém que nunca percebeu de arte ou outra coisa qualquer, de repente ser investido em umas quaisquer vestes e ter o milagre da sabedoria, por força do que sempre contemplou. Para as más-defesas haverá sempre a possibilidade de queixa aos Conselhos de Deontologia. E mesmo do lado dos cidadãos, a igual possibilidade de recusarem o advogado que lhes for facultado. A questão é que também todos nós temos de estar informados sobre tais direitos. Perdesse o Senhor Bastonário algum tempo nesse trabalho e talvez não tivesse havido tanta polémica. Por fim uma última interrogação: Se mantivermos arredados os noviços de todas as iniciações, de todos os ensinamentos práticos, que raio de Ordem queremos para o futuro? Acaso pensa alguém que seremos sempre nós a existir e a por, lá está, ordem? É que ninguém é "gerado e não criado". E mesmo o Senhor Bastonário também se fez Advogado, como todos nós. De certo me espantaria se viesse agora dizer que já tinha nascido assim. Se calhar com Toga e tudo. Num país de milagres e aparições..."

Ezra Pound

While our fates twine together, sate we our eyes with
love;
For long night comes upon you
and a day when no day returns.
Let the gods lay chains upon us
so that no day shall unbind them.
Fool who would set a term to love s madness,
For the sun shall drive with black horses,
earth shall bring wheat from barley,
The flood shall move toward the fountain
Ere love know moderations,
The fish shall swim in dry streams.

No, now while it may be, let not the fruit of life cease.
Dry wreaths drop their petals,
their stalks are woven in baskets,
To-day we take the great breath of lovers,
to-morrow fate shuts us in.
Though you give all your kisses
you give but a few.”
Nor can I shift my pains to other
Hers will I be dead,
If she confers such nights upon me,
long is my life, long in years,
If she give me many,
God am I for the time.

Ezra Pound
Poems 1918-21

Apolo 11

Lançamento a 16 de Julho.
Agora aguardamos os Chineses...

Robert Frank


Robert Frank
The Americans, 1958

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Ditames

- E ela o que disse?
- Disse para ir à merda!
- E tu, que fizeste?
- Eu?... Apanhei o primeiro autocarro…

domingo, 13 de julho de 2008

Curvas II

Nas curvas d' outra que já és
Confundo a velocidade. Felina:
Perdeste a espuma das marés,
E finges outro jeito de menina.

Calor

Quando o calor sobra,
pintamos a cara de areia molhada
e sentamo-nos nos degraus da tarde.
A lua espreita, tímida,
e conversamos com as horas da espera.
Quando o Sol partir
havemos de entrelaçar desejos
na candura da noite.
Amanhã abrasaremos de novo,
num sentimento repetido.
E esperamos a noite,
vezes sem tempo.

e. u. m., P. I.

calor

Novamente o Estio
(o calor atormenta)
E perco no desafio
desta página cinzenta.

Nem uma vírgula de frescura
Nem um sorriso de vento;
No bafo desta quentura
Já só sobra um pensamento:
Tu numa praia dourada...
E à volta? - Mesmo nada.

sábado, 12 de julho de 2008

Bunny Ranch



Hoje, às 22h no Pátio do Castilho, ao fundo das escadas do Quebra Costas, uma das certezas do Rock de Coimbra. A não perder...

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Caminho

Estávamos muito perto do Verão, quando Deus resolveu descer à terra e fazer de mim uma pessoa normal. Não poderia ser de outra forma. Nem poderia ser com outra pessoa... Há uma imagem sempre presente em mim quando penso em ti. Caminho só para casa, num fim de tarde, que na realidade já é um início de noite. Caminho só, mas tenho comigo a tua presença...

Interrogações II

Quando um Grão-Mestre, um Geral ou mesmo um Frade de um qualquer Convento (interessando apenas aqui uma certa imagem ORDENADA) quase diz que os Neófitos ou Noviços são uma vergonha e não devem experimentar os ensinamentos, onde fica o futuro da estrutura?
Acaso não estará condenada à extinção? É que o futuro não está em quem, de resto, já também foi Neófito ou Noviço.

Apenas um desabafo...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Filho da Pauta II


Julien Dore - Les Limites sélectionné dans People et TV
Hilariante e divertido! Uma agradável descoberta!

rectas

Em dias solarengos espreguiçamos nas rectas.
Com dois o mundo é um simples alongamento
Repartimos os desejos, aldrabamos as metas…
E divertimo-nos. Só a esquecer cada momento.

terça-feira, 8 de julho de 2008

curvas

As curvas deste poema são feitas
Da cor dos teus olhos. Malandra:
Esse riscar de sílabas perfeitas...
Esse arrepio de bandejar a anca!

Interrogações

Quando se mete um Tribunal num armazém onde ficará a Justiça? Numa prateleira?

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Puro Vintage III

O espaço era amplo e arejado. Ao final da tarde, era ali que homens de ar grave e solene, sofrido e solitário alguns, marcados por mais um dia de trabalho outros tantos, se reuniam ou simplesmente, à beira de uma mesa, se abandonavam.
Uma pastelaria, ou café, que podia não ser Catita, mas, certamente, muito portuguesa, porque "Lusa".
Também ali era o ponto de encontro de umas quantas senhoras viúvas - guardiãs da virtude - que ansiavam diariamente pelo seu chá de gorreana e as queijadas, de fabrico caseiro - consolo merecido, após a missa cantada na Sé.
As arcadas de basalto que formavam o tecto abobadado, davam o retoque final a este estabelecimento. Um local de outros cultos - o do convívio, das conversas, das notícias e estórias trocadas de boca em boca.
As últimas das touradas à corda e das festas; os "mexericos" e os pequenos escândalos passados por murmúrios ao ouvido, provocando, por vezes, expressões de um pesaroso, mas discreto transtorno e leves olhares de pio e sentido desgosto pelas perdições alheias assim acabadas de conhecer.
De olhar sério e atento, atrás do balcão principal, Manuel ia contemplando aquele desfilar da vida mundana, que se repetia todos os dias. O seu orgulho mais secreto: ser proprietário de um estabelecimento, onde certamente a liberdade encontrava o seu verdadeiro reduto nas mais pequenas coisas mundanas.
De facto, era certo e sabido que ali se podiam ler os jornais ingleses, trazidos pelos paquetes britânicos que ali atracavam na doca seca, para reparações ou escalas técnicas. A proximidade da base aérea, generosamente tomada de arrendamento pelo Tio Sam, também dava algum toque de cosmopolitismo ao quadro permanente de convivas.
E tinha sido precisamente numa das cantinas daquela estrutura militar que Manuel tinha comprado aquela peça imponente, a última palavra da técnica no que dizia respeito ao cálculo financeiro, versão rápida.
Com a forma de uma pirâmide rectângulo, de linhas direitas e austeras, revestimento prateado e ornamentado por complexos arabescos - quase ao estilo de uma qualquer "Smith & Weston" do velho Oeste - lá ia aquela registadora disparando o que se devia e a despesa "a pagar". O grave ruído das teclas numéricas, acompanhadas daquela outra de sinal "mais" - como convinha -, lá ditava a lista discriminada da "continha". O pequeno mostrador analógico, de algarismos brancos sobre fundo preto, registava e mostrava à saciedade, sem margem de dúvidas, a certeza que antevinha a qualquer desconto ou acordo para um pagamento ao final do mês da dívida acumulada - uma atenção apenas tida com os clientes "habituais e de confiança".
E, à hora do fecho, quando todos já tivessem ido para casa e as portas de vidro reforçado estivessem encerradas, o último ruído que se ouviria seria o da campaínha dessa máquina, marcando o termo de mais um dia de comércio, feito o balanço.
Quanto a Manuel, mais uma jornada de trabalho terminava, tendo a noção de que a vida de todos os que por ali tinham passado se tornara mais leve e com redobrado entusiasmo. Essa, a sua maior fortuna pessoal, que não cabia em gaveta mecânica alguma.

A cumprir a promessa, satisfazendo o pedido de sub-lodo, um clássico contemporâneo escrito à mesa da esplanada.

Tropeço

Tropeço distraído na glória dum poema
Perdido, caído e lacrado da tua ausência
Reflexo trôpego do que deste por pena
E eu castiguei ao tomar por paciência

Há palavras gastas nos cadernos da garagem
Desenhos brancos nus a inventar dois corpos
Gestos lentos a imitar tolas miragens…
Miragens? Ou imagens de dois mortos?

Há lembrança, desculpas em glória
- Só conta o que sobra da memória!
Bolas, acrescento: - Tudo bem:
(com tua desculpa e minha culpa)
Não sobra ao mundo mais ninguém.

AM / e. u. m.

Congresso












Para quem tiver interesse no assunto este é um Congresso Internacional realizado através de uma colaboração entre a Associação Existências, o IREFREA e o IPCDVS da Universidade de Coimbra, que írá ter lugar no Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra, nos dias 7, 8 e 9 do corrente.
Serão matérias em discussão neste encontro: os espaços recreativos; a mobilidade causada pelos cidadãos durante os dias de semana e, especialmente, ao fim-de-semana e a avaliação do impacto que estas actividades têm na vida das cidades, assim como nas questões ligadas aos comportamentos violentos, aos comportamentos sexuais de risco e ao consumo de substâncias, lícitas e ilícitas. Para este encontro estão confirmadas, entre outras, as presenças das seguintes individualidades:
Prof. Doutor Larry Gerstein (Director of Center for Peace and Conflict Studies, Ball State University, Muncie IN, USA)
Dra. Luísa Salgueiro (Deputada da Assembleia da República, Vereadora da Câmara Municipal de Matosinhos)
Thierry Charlois (Projecto "Drogas, Democracia e Cidades")
Dra. Paula Marques (Directora do Departamento de Prevenção do IDT)
Prof. Doutor Meliço-Silvestre (Director do Departamento de doenças Infecciosas dos Hospitais da Universidade de Coimbra)
Dr. Carlos Encarnação (Presidente da Câmara Municipal de Coimbra)
Dra. Alina Santos (Coordenadora do Núcleo "Populações e Saúde", da Agência Piaget para o Desenvolvimento - Vila Nova de Gaia)
Dra. Margalida Ros (IREFREA Espanha)
Prof. Doutor Mark Bellis (Department of Public Health, John Moore University)
Dra. Karen Hughes (Department of Public Health, John Moore University)
Dra. Paula Andrade (Responsável pelo Núcleo de Redução de Danos do IDT)

No final deste Congresso será assinada a constituição do Observatório das Cidades Recreativas.

Quem quiser que apareça...

domingo, 6 de julho de 2008

TORNAM aqui as aves
Sempre outras como eu
Longe de mim buscam
Outro que mim

O teu braço apontado ao céu
Semelhavas - no desabrochar
As flores o tempo que nos cercava

Não havia portas no teu jardim
Era como estar dentro do que vias
Tudo de ti estava em nós e era transparente

Via-te o vulto voltado à luz
Que o braço erguido apontava
E o tempo que nos cercava
Semelhavas
Que o nosso olhar não via
E de longe em ti buscava
O outro que mim

wwww mmmm
António Dacosta, A Cal dos Muros

António Dacosta

A LUZ
A pedra que reluz
Este som
A corda que o fere
Este lenço
O teu
Aquele todo branco
No escuro da porta

Era só branco

E tu desaparecias.

A Cal dos Muros, Poemas Açorianos

(O António era, antes de mais, um modo de estar no mundo, um jeito de andar, ao mesmo tempo preguiçoso e lesto, uma voz sussurrada que podia oscilar entre a observação mais grave e o mais límpido riso, a coincidência natural entre aquilo que de facto era e aquilo que parecia, que se inscrevia já, como uma imagem que à pele se colava, em cada gesto que fazia, em cada olhar, cada palavra que dizia, naquela economia de viver. António tinha ganho aquilo que é mais raro e mais difícil: um rosto - Bernardo Pinto de Almeida, apresentação d' A Cal dos Muros)

A. M. Lisboa

Para o Mário Henrique

Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
por-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitroglicerina
deixar fumar um cigarro só até meio

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.

António Maria Lisboa, Projecto de Sucessão, Ossóptico e Outros Poemas

(a pedido do AM, receoso das iniciais que teimosamente o cansam, e com uma dedicatória especial, igualmente rogada, à dedicação e ao amigo espírito da descomprometida análise)

sábado, 5 de julho de 2008

arrepio há idos anos

Inteirei-me daquele momento único
Em que a tua passagem me arrepiou.
O que daí é meu? O que será teu…
Não há modo de inventar quem ditou

Resposta? Certo é que os anos incertos se perderam sem ela
Como quem desespera a olhar o infinito duma trôpega janela

Gostava que tu gostasses de pensar o mesmo
Que a tua vida tivesse as mesmas saudades
Que nenhum de nós fosse capaz de recompor
O castigo daquela troca de olhar

Talvez me transforme em castigador
E me convença, amor, que é tudo amor

Sim: só porque é teu
Só porque, na tua boca vermelha, é céu
O que imagino em cada esquina do caminho
Em cada dia que fatigo
Em cada espaço de seguido
Sem sentido.

e. u. m., P. I.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Coimbra

Coimbra tem a sua negra capa
Refeita de esperanças perdidas
Verbo escondido que se escapa
Em língua trocada noutras vidas

Tem um céu cinzento, um céu azul
Uma promessa beijo às madrugadas
No gesto escondido do folho de tule
Da caloira das esperas ensombradas


Coimbra tem tudo isso, e só me resta
Agora saudá-la num gesto de saudade
Dessa que nos segreda no fim da festa:
Tudo perdido… mas ficou a liberdade.

Coimbra

Ao dia da mesma cidade...
vizite da prieteni, o mare hello

O que recordo

Que encanto pode ter a ousadia
de te lembrar?,
Se o que recordo é uma nuvem
desigual:

a reconstrução dos teus pedaços
no magma dos meus desejos;
mistura de pouca ternura
e de tantos medos...

e. u. m., P.I.

Sequer nas sombras

Que é o tempo e o medo
se não forem a mesma coisa;
um qualquer pedaço de pavor
que se dilata no espaço.

Tal como um olhar
demasiadamente perdido no horizonte
sem te encontrar,
sem te cruzar...

Sequer nas sombras.

e. u. m., P. I.

COIMBRA

porque hoje é feriado na cidade

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Ambos no original


Para quem gosta de cinema e está interessado em aprender algumas coisas fundamentais sobre filosofia, este ensaio é uma introdução profunda mas amena a algumas grandes questões éticas e nele desfilam tanto os filósofos clássicos como outros mais modernos, exemplificando-se a reflexão a partir de grandes filmes clássicos.

Escrito por Juan Antonio Rivera (Madrid, 1958) professor catedrático de filosofia na Universidade de Barcelona, obteve em Espanha o Premio Espasa Ensayo 2005 e foi editado em Portugal nos finais de 2006 pela Tenacitas.

Albert Cossery

Albert Cossery nasceu em 1913 no Cairo no seio de uma família de tradição cristã copta e faleceu a 22 de Junho de 2008 em Paris, onde vivia desde 1945. Foi um escritor egípcio de língua francesa, considerado um mestre do escárnio, ao mesmo tempo que foi, também, um profeta do prazer e da preguiça. Desde 1951 habitava o mesmo quarto do hotel La Louisiane situado no coração de Saint-Germain-des-Prés em Paris. Foi amigo de escritores como Boris Vian, Jean Genet, Henry Miller e Albert Camus, sendo admirado por todos eles.
A sua obra:
Mendigos e Altivos
Ed. Antígona- 1992 Primeiro livro de Cossery em português, conta a história de Gohar, professor universitário que resolve tornar-se mendigo tomado pelo nojo que sente da Universidade e da vida. Teve duas adaptações para o cinema.
Mandriões no Vale Fértil
Ed. Antígona- 1999 Galal o filho mais velho é tido por todos como o mais sábio porque não trabalha, dedica-se a ficar deitado e só levanta para as refeições. Rafik, o do meio renuncia ao casamento com a mulher que ama temendo que o casamento acabe com a tranquilidade que reina em sua vida. Serag, o mais jovem comete a loucura de procurar trabalho.
A Violência e o Escárnio
Ed. Antígona- 1999 Moradores de uma cidade próxima do Oriente, governada por um tirano, resolve contestar a sua tirania e grosseria levando-o ao ridículo.
A Casa da Morte Certa
Ed. Antígona- 2001 Este é o segundo livro de Cossery e foi publicado pela primeira vez em 1942. Para Cossery a ambição desenfreada por possuir e consumir é a causa de todas as desgraças do mundo.
Uma Conjuntura de Saltimbancos
Ed. Antígona- 2001 Agradáveis histórias de um grupo de jovens que buscam diversão e alegria alheios ao padrão que se espera de todos, em uma cidade onde nada acontece.
Os Homens Esquecidos de Deus
Ed. Antígona- 2002 Primeiro livro de Albert Cossery publicado pela primeira vez 1927, no Cairo. Çoletânea de histórias que falam sobre os temas preferidos do autor ao longo de sua obra, o despojamento, o poder, o ódio ao trabalho, a militância.
Uma Ambição no Deserto
Ed. Antígona- 2002 A fim de chamar a atenção para seu país que vive um momento muito difícil de extrema penúria e miséria, o Xeque Ben kadem, Primeiro Ministro resolve colocar resolve colocar em pratica uma idéia mirabolante de inventar atentados à bomba. Para isso tira da prisão Shaat, um jovem aventureiro preso por comercio ilegal de ouro. Shaat,fabrica as bombas que serão detonadas por Mohi filho do Xegue. A situação foge ao controle do Primeiro Ministro e seu filho é uma das vítimas de um atentado. No meio disso tudo um aristocrata inteligente cético e cheio de preguiça assiste a tudo.
Conversas com Corssery
Ed. Antígona- 2002 Registro de uma conversa de Alberty Corssey com Michel Mitrani, onde ele fala de sua vida, suas ideias e seus amigos ao longo da vida.
Fonte:Wikipédia
Ao Carlos que me iniciou neste mestre.

contes muitos e sempre melhores


Toda a homenagem envolve o risco próprio da liberdade do destinatário.
Por isso, acima de tudo, ela é a intenção do emissor.
Profunda e serenamente:
Que, pelo menos, tenhas tantas vidas como o R.
A quem sabe para quem é.

terça-feira, 1 de julho de 2008