Uma pastelaria, ou café, que podia não ser Catita, mas, certamente, muito portuguesa, porque "Lusa".
Também ali era o ponto de encontro de umas quantas senhoras viúvas - guardiãs da virtude - que ansiavam diariamente pelo seu chá de gorreana e as queijadas, de fabrico caseiro - consolo merecido, após a missa cantada na Sé.
As arcadas de basalto que formavam o tecto abobadado, davam o retoque final a este estabelecimento. Um local de outros cultos - o do convívio, das conversas, das notícias e estórias trocadas de boca em boca.
As últimas das touradas à corda e das festas; os "mexericos" e os pequenos escândalos passados por murmúrios ao ouvido, provocando, por vezes, expressões de um pesaroso, mas discreto transtorno e leves olhares de pio e sentido desgosto pelas perdições alheias assim acabadas de conhecer.
De olhar sério e atento, atrás do balcão principal, Manuel ia contemplando aquele desfilar da vida mundana, que se repetia todos os dias. O seu orgulho mais secreto: ser proprietário de um estabelecimento, onde certamente a liberdade encontrava o seu verdadeiro reduto nas mais pequenas coisas mundanas.
De facto, era certo e sabido que ali se podiam ler os jornais ingleses, trazidos pelos paquetes britânicos que ali atracavam na doca seca, para reparações ou escalas técnicas. A proximidade da base aérea, generosamente tomada de arrendamento pelo Tio Sam, também dava algum toque de cosmopolitismo ao quadro permanente de convivas.
E tinha sido precisamente numa das cantinas daquela estrutura militar que Manuel tinha comprado aquela peça imponente, a última palavra da técnica no que dizia respeito ao cálculo financeiro, versão rápida.
Com a forma de uma pirâmide rectângulo, de linhas direitas e austeras, revestimento prateado e ornamentado por complexos arabescos - quase ao estilo de uma qualquer "Smith & Weston" do velho Oeste - lá ia aquela registadora disparando o que se devia e a despesa "a pagar". O grave ruído das teclas numéricas, acompanhadas daquela outra de sinal "mais" - como convinha -, lá ditava a lista discriminada da "continha". O pequeno mostrador analógico, de algarismos brancos sobre fundo preto, registava e mostrava à saciedade, sem margem de dúvidas, a certeza que antevinha a qualquer desconto ou acordo para um pagamento ao final do mês da dívida acumulada - uma atenção apenas tida com os clientes "habituais e de confiança".
E, à hora do fecho, quando todos já tivessem ido para casa e as portas de vidro reforçado estivessem encerradas, o último ruído que se ouviria seria o da campaínha dessa máquina, marcando o termo de mais um dia de comércio, feito o balanço.
Quanto a Manuel, mais uma jornada de trabalho terminava, tendo a noção de que a vida de todos os que por ali tinham passado se tornara mais leve e com redobrado entusiasmo. Essa, a sua maior fortuna pessoal, que não cabia em gaveta mecânica alguma.
A cumprir a promessa, satisfazendo o pedido de sub-lodo, um clássico contemporâneo escrito à mesa da esplanada.
6 comentários:
"Tome um". Tome lá um belo texto, um belo vintage.
Excelente qualidade, como sempre...
Confirmo e reafirmo o douto comentário PA. O amigo Viriato já nos habituou a uma qualidade excepcional. Cada post é um vintage e a responsabilidade para o vindouro.
Muito bem.
E a responsabilidade para o vindouro aumenta como partos cada vez mais difíceis. Mas, de facto, o que me faz continuar na demanda são os reconhecimentos de quem não esquece! Um Grande Abraço, Amigo Augusto! Com a promessa de um Puro Vintage IV.
E um grande Bem-Haja, Amigo Paulo! Para breve uma review gastronómica para Três Mosqueteiros e um D'Artagnan com que me identifico. É que, mesmo não sendo Gascão, a verdade é que sou do campo.
"Mais do que um café, o "Progresso" era um antónimo. Meia dúzia de mesas de pé de galo de mármore desbeiçado, cadeiras centenárias, um chão de madeira que rangia debaixo dos pés, cortinas poeirentas e meia luz. Fausto, o velho encarregado, dormitava junto da porta da cozinha, de onde vinha o agradável aroma de café a ferver na caçoila. Um gato esquálido e remeloso deslizava matreiramente para debaixo das mesas, à esprita de hipotéticos ratos. No Inverno, o local cheirava constantemente a humidade e grandes manchas amarelavam o papel de parede. Neste ambiente, os clientes quase sempre conservavam vestidas as roupas de abafo, o que pressupunha uma manifesta censura à decrépita braseira de ferro que costumava avermelhar-se debilmente a um canto.
No Verão era diferente... "
O Mestre de Esgrima
Arturo Pérez - Reverte
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