- Sempiterna Temptatio – considerou Zenão. - Penso para comigo, não raras vezes, que nada no mundo, salvo uma ordem eterna ou uma singular veleidade da matéria em construir algo que a ultrapasse, poderá explicar a razão por que, de dia para dia, me esforço por pensar com um pouco mais de clareza que no dia anterior.
Continuava sentado, de queixo caído, naquele quarto invadido por um húmido crepúsculo. O fogo da lareira tingia-lhe de vermelho as mãos roídas pelos ácidos, marcadas, aqui e além, por ténues cicatrizes de queimaduras; via-se que considerava atentamente esses estranhos prolongamentos da alma, esses grandes instrumentos fritos de carne que nos servem para tomar contacto com tudo.
- Louvado seja eu! – exclamou ele, por fim, com uma espécie de exaltação em que Henrique Maximiliano julgou reconhecer o Zenão inebriado de devaneios mecanicistas partilhados com Colas Gheel. – Sempre me há-de maravilhar o facto de esta carne sustentada pelas suas vértebras, de este tronco ligado à cabeça pelo istmo do pescoço, e com os membros dispostos simetricamente à sua volta, conter, e talvez produzir, um espírito que tira partido dos meus olhos para ver e dos meus gestos para apalpar… Conheço os seus limites e sei que lhes falta tempo para ir mais longe, e força, se porventura pudesse dispor de tempo. Mas existe, e, neste, momento, ele é aquele que É. Bem sei que se ensina, que erra, que por vezes interpreta mal as lições que o mundo lhe ministra, mas sei também que possui o dom de conhecer e não raro rectificar os seus próprios erros. Já percorri grande parte desta bola em que vivemos, estudei o ponto de fusão dos metais e a germinação das plantas, observei os astros e examinei o interior dos corpos. Sou capaz de extrair, deste tição que aqui está, a noção de peso, e destas chamas a noção de calor. Sei que não sei aquilo que não sei, invejo aqueles que venham a saber mais, mas sei que, tal como eu, terão de medir, pesar, deduzir e desconfiar das deduções alcançadas, distinguir o que há de falso no verdadeiro e levar em conta a eterna mistura da verdade e da falsidade. Nunca me agarrei fixamente a uma ideia, por temer a confusão em que, sem ela, poderia vir a cair. Nunca temperei um facto verdadeiro com o molho da mentira, para me facilitar a digestão. Nunca deformei os pontos de vista do adversário para mais facilmente ter razão, nem sequer durante o debate sobre o antimónio, os de Bombast, que nem mesmo assim me ficou grato. Ou talvez sim: surpreendi-me nesse acto, mas sempre me repreendi como se repreende um criado desonesto, confiando apenas na promessa que a mim mesmo me fiz de vir a proceder melhor. Sonhei com os meus sonhos; não considero tudo isto mais do que sonhos. Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão. Os triunfos e os perigos que acumulei não são aquilo que se pensa: existem outras glórias para além da glória e outras chamas para além das da fogueira. Consegui, praticamente, desafiar as palavras. Hei-de morrer um pouco menos estúpido do que nasci.
YOURCENAR, A Obra ao Negro
Continuava sentado, de queixo caído, naquele quarto invadido por um húmido crepúsculo. O fogo da lareira tingia-lhe de vermelho as mãos roídas pelos ácidos, marcadas, aqui e além, por ténues cicatrizes de queimaduras; via-se que considerava atentamente esses estranhos prolongamentos da alma, esses grandes instrumentos fritos de carne que nos servem para tomar contacto com tudo.
- Louvado seja eu! – exclamou ele, por fim, com uma espécie de exaltação em que Henrique Maximiliano julgou reconhecer o Zenão inebriado de devaneios mecanicistas partilhados com Colas Gheel. – Sempre me há-de maravilhar o facto de esta carne sustentada pelas suas vértebras, de este tronco ligado à cabeça pelo istmo do pescoço, e com os membros dispostos simetricamente à sua volta, conter, e talvez produzir, um espírito que tira partido dos meus olhos para ver e dos meus gestos para apalpar… Conheço os seus limites e sei que lhes falta tempo para ir mais longe, e força, se porventura pudesse dispor de tempo. Mas existe, e, neste, momento, ele é aquele que É. Bem sei que se ensina, que erra, que por vezes interpreta mal as lições que o mundo lhe ministra, mas sei também que possui o dom de conhecer e não raro rectificar os seus próprios erros. Já percorri grande parte desta bola em que vivemos, estudei o ponto de fusão dos metais e a germinação das plantas, observei os astros e examinei o interior dos corpos. Sou capaz de extrair, deste tição que aqui está, a noção de peso, e destas chamas a noção de calor. Sei que não sei aquilo que não sei, invejo aqueles que venham a saber mais, mas sei que, tal como eu, terão de medir, pesar, deduzir e desconfiar das deduções alcançadas, distinguir o que há de falso no verdadeiro e levar em conta a eterna mistura da verdade e da falsidade. Nunca me agarrei fixamente a uma ideia, por temer a confusão em que, sem ela, poderia vir a cair. Nunca temperei um facto verdadeiro com o molho da mentira, para me facilitar a digestão. Nunca deformei os pontos de vista do adversário para mais facilmente ter razão, nem sequer durante o debate sobre o antimónio, os de Bombast, que nem mesmo assim me ficou grato. Ou talvez sim: surpreendi-me nesse acto, mas sempre me repreendi como se repreende um criado desonesto, confiando apenas na promessa que a mim mesmo me fiz de vir a proceder melhor. Sonhei com os meus sonhos; não considero tudo isto mais do que sonhos. Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão. Os triunfos e os perigos que acumulei não são aquilo que se pensa: existem outras glórias para além da glória e outras chamas para além das da fogueira. Consegui, praticamente, desafiar as palavras. Hei-de morrer um pouco menos estúpido do que nasci.
YOURCENAR, A Obra ao Negro
5 comentários:
Júlio, que saudade!
O texto é lindo, embora depreciativo, pois morrerás (se morreres) mais Sensível do que sempre foste. É a evolução da alma humana:sempre a busca da perfeição! Bjssss
Caríssimo Augusto não sei se temos a mesma profissão ou uma aparentada. Certo é que ontem quando li, num comentário,o Cèsar Paulo Salema chamar-vos de Conselheiro fiquei um pouco aprensiva com o meu "desplante", mas fiquei na mesma: "Sei que não sei aquilo que não sei".
Até pelo exercício da minha profissão, tenho esta parte da obra, que vós sublinhaste, como a mais bela e ao mesmo tempo a mais humanista.
Como deveis estar lembrado já uma vez citei parcialmente neste blogue uma parte dela: "Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão."
Encontro-me tão longe do meu "construtor" que é difícil entender a profissão dele.
A referência feita por CPS era mais de simpatia (no texto e contexto) ainda que não totalmente errada, em sede técnica. Seja como for,não tenho (tem...) idade (ou categoria) para essa categoria profissional.
E mais me obriga ele a não dizer, salvo o gosto comum por este fabuloso pedaço de prosa, esta fabulosa declaração de Zenão.
E,já agora, suspeitando das suas capacidades investigatórias, arrisco a confissão: no início do mês deu-se um desaparecimento. Considerando a vigilância da Net não posso usar algumas palavras.E posso acrescentar que foi de acordo com a vítima, ela mesma o desejou.
Não sei que tipo de ilícito será este, mas a modernidade anda agora a arrastar muitas interrogações.
Seja como for, está decidido: não passa de hoje.
Caro Augusto, só hoje, por razões que não vêm ao caso, vejo estes seus dois comentários. Quanto ao "conselheiro" neste momento já longínquo do comentário, está por mim perfeitamente entendido desde a publicação do livro "A fazer de contos" e da descoberta do seu conto e consequetemente da sua verdadeira identidade.
Quanto ao enigma do último comentário, não sei quem foi a vítima, mas se desapareceu e concordou, o mais que pode acontecer é colocarem-se questões relacionadas com o consentimento e a capacidade para consentir, no caso de estar prenchido algum tipo de ilícito...
Ah! A profissão é a mesma.
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