domingo, 28 de fevereiro de 2010
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
sou. não sou?
meu castigo é branquear os rios
de vermelho sangue turvos
de dar voz aos surdos
de dar ouvido aos mudos
escravo de impróprios desafios
sou de resto o que resta da perdição
do mundo, o nem presta é
a sobra de uma canção
por trautear. nem sei se sou
espelho da vista do rosto
luz fugidia, sol-posto
amarelo de criança em balão
cinzento d'esperança. tufão
que arrase o mundo velho
em noite de sol intenso. calor profundo.
não penso. não sou. não vou.
fico encostado ao infinito
e no silêncio do grito
não falo, não calo:
devolvo o último som do medo.
nem sei se parto. só
estou farto
que m' iluminem a revolta.
anda ainda alguém à solta?
(e.u.m.)
de vermelho sangue turvos
de dar voz aos surdos
de dar ouvido aos mudos
escravo de impróprios desafios
sou de resto o que resta da perdição
do mundo, o nem presta é
a sobra de uma canção
por trautear. nem sei se sou
espelho da vista do rosto
luz fugidia, sol-posto
amarelo de criança em balão
cinzento d'esperança. tufão
que arrase o mundo velho
em noite de sol intenso. calor profundo.
não penso. não sou. não vou.
fico encostado ao infinito
e no silêncio do grito
não falo, não calo:
devolvo o último som do medo.
nem sei se parto. só
estou farto
que m' iluminem a revolta.
anda ainda alguém à solta?
(e.u.m.)
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
escrever....
escrever um poema
é ir à pesca de uma espera
entre a corrente da vida
e o sol, e o solo
onde crestamos os dias futuros.
apanha-se na rede o vindoiro,
o sopro do vento norte,
a brisa sudoeste;
e as mulheres perdidas
(entre a juventude e logo após)
chegam-nos à lembrança
como o frio de novembro, que encosta corpos.
é olhar o sul e o som,
a pauta e a bússola
a mão e o gesto.
(sem protesto)
aceita-se a irreversibilidade,
a dimensão do mundo,
oco das formas certas.
é gritar que teus lábios não são carne (desejos?)
mas nuvens, espuma de mar, solfejos
olhos perdidos noutros
e noutros, e noutros
beijos.
é ir à pesca de uma espera
entre a corrente da vida
e o sol, e o solo
onde crestamos os dias futuros.
apanha-se na rede o vindoiro,
o sopro do vento norte,
a brisa sudoeste;
e as mulheres perdidas
(entre a juventude e logo após)
chegam-nos à lembrança
como o frio de novembro, que encosta corpos.
é olhar o sul e o som,
a pauta e a bússola
a mão e o gesto.
(sem protesto)
aceita-se a irreversibilidade,
a dimensão do mundo,
oco das formas certas.
é gritar que teus lábios não são carne (desejos?)
mas nuvens, espuma de mar, solfejos
olhos perdidos noutros
e noutros, e noutros
beijos.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
1.
Iremos procurar a razão da giesta
a razão do amarelo
iremos procurar a razão
iremos procurar
e os olhos tomarão todas as cores
as cores de tudo
Pedro Tamen, O livro do sapateiro
D. Quixote, 1.ª edição Março de 2010
a razão do amarelo
iremos procurar a razão
iremos procurar
e os olhos tomarão todas as cores
as cores de tudo
Pedro Tamen, O livro do sapateiro
D. Quixote, 1.ª edição Março de 2010
fogo
Você, minha querida, é um personagem intrigante. Lembra-me um fósforo: ilumina, mas se não o largamos da mão, logo queima.
anónimo
Mulher. Mãe. Saudade.
Sentas-te ao sol
no silêncio seco dum granito
como se o pensamento houvesse fugido
e só a carícia da brisa te recorda o mundo.
Há uma imagem de filhos
quando, de fora, olhamos o círculo dos teus olhos
aí, onde, de vez, passeiam andorinhas
e bicam restos daquelas tardes antigas,
eles a correrem atrás de nada,
braços espalmados nas palavras por aprender
só essas que seriam liberdade.
Aos anos que as nuvens rumaram a Sul
e eles fugiram num atropelo de ânsia,
uma manhã sem vento, como outras,
só a teimosia a empurrar revolta.
E tu, mulher que o calor não abrasa
que o sol não queima
que o Sul não chama
resguardas-te da morte
no hábito lento de deixar passar os dias.
A noite chega ao ritmo das manhãs;
partirão as duas
em troca dos ossos que devolverás à terra.
Até lá, a espera. Só a tua espera
confunde a dança dos astros.
Tu que nem crês no baloiço
moves a eternidade,
o passo a passo de cada segundo
que te liberta. Imóvel.
no silêncio seco dum granito
como se o pensamento houvesse fugido
e só a carícia da brisa te recorda o mundo.
Há uma imagem de filhos
quando, de fora, olhamos o círculo dos teus olhos
aí, onde, de vez, passeiam andorinhas
e bicam restos daquelas tardes antigas,
eles a correrem atrás de nada,
braços espalmados nas palavras por aprender
só essas que seriam liberdade.
Aos anos que as nuvens rumaram a Sul
e eles fugiram num atropelo de ânsia,
uma manhã sem vento, como outras,
só a teimosia a empurrar revolta.
E tu, mulher que o calor não abrasa
que o sol não queima
que o Sul não chama
resguardas-te da morte
no hábito lento de deixar passar os dias.
A noite chega ao ritmo das manhãs;
partirão as duas
em troca dos ossos que devolverás à terra.
Até lá, a espera. Só a tua espera
confunde a dança dos astros.
Tu que nem crês no baloiço
moves a eternidade,
o passo a passo de cada segundo
que te liberta. Imóvel.
P'elo catorze de Fevereiro
queria uma mulher feita na trança d'oiro
do riso dos antigos; como os deuses, de olhar completo.
que me encontrasse na porta d'esperança
antes de entrarmos em casa,
e que os nossos lábios fossem um,
o nosso pasto, repasto de jejum,
o nosso enlevo fosse filho do medo
p´ra lhe cair as pernas, o decepar das asas.
queria que o corpo se corrompesse
em milagres de prova de destino
desde que juntos, poro a poro
até respirar o mesmo ar,
até deixar de respirar.
do riso dos antigos; como os deuses, de olhar completo.
que me encontrasse na porta d'esperança
antes de entrarmos em casa,
e que os nossos lábios fossem um,
o nosso pasto, repasto de jejum,
o nosso enlevo fosse filho do medo
p´ra lhe cair as pernas, o decepar das asas.
queria que o corpo se corrompesse
em milagres de prova de destino
desde que juntos, poro a poro
até respirar o mesmo ar,
até deixar de respirar.
Paisagem
Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amrgo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
sacudiam na areia as suas crinas.
Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.
Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento,
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.
Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exaltação afirmativa.
Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sob,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.
SOPHIA
O cheiro da terra era fundo e amrgo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
sacudiam na areia as suas crinas.
Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.
Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento,
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.
Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exaltação afirmativa.
Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sob,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.
SOPHIA
sábado, 13 de fevereiro de 2010
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Os nomes jubilosos
Retomarás o canto
o alvoroço das cítaras
as encantações
ténues ao atraverssarmos
os campos
Retomarás o honroso posto de observador
no jardim do príncipe
calcularás o vento pelo levantar do fogo
o ouro dos frutos pelo desenho dos odores
saberás o enunciado dos fenos
a idade exacta das folhas
os húmidos sinais que soletram a cor
arriscarás adivinhações
chegarás aos segredos guardados
da arte das curas
e do presságio
Então pronunciarás os nomes
jubilosos
José Tolentino Mendonça, Longe não sabia
o alvoroço das cítaras
as encantações
ténues ao atraverssarmos
os campos
Retomarás o honroso posto de observador
no jardim do príncipe
calcularás o vento pelo levantar do fogo
o ouro dos frutos pelo desenho dos odores
saberás o enunciado dos fenos
a idade exacta das folhas
os húmidos sinais que soletram a cor
arriscarás adivinhações
chegarás aos segredos guardados
da arte das curas
e do presságio
Então pronunciarás os nomes
jubilosos
José Tolentino Mendonça, Longe não sabia
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Dedicoratória I
Esta história dou-ta, porque é tua, Maria, nome redescoberto de um acto por nascer. São tuas as colinas do Borges (Kodama...) e a dedicatória do Herberto. Também eu sei histórias terríveis, e assombros que guardei nos fundos puídos da memória. Sem um estilo, sequer, podia derrubar todas as esperanças com um gesto de língua e rir-me, sulfúricos, dos cacos do mundo. Mas a história é tua, alegre até ao partir dos dentes nos tremeliques da vergonha diluída. Era uma vez uma guitarra de sexo, onde esfregávamos mãos de contentamento; tardes de um verão tão a sul que desnorteamos os dias, violação de relógios impenitentes, e nos teimamos numa entrega de rojo, suplício de vãs vontades.
Esta história é tua porque o merecimento não existe, só a ânsia. Tua porque ainda me lembro: se perguntarem por mim, diz que voei com os pássaros entre as janelas daquele palácio em ruínas. Tua porque o Cesariny avisou que a fala do olhar, no soletrar da mão, só do teu olhar se lê, e guardo o gosto dum reflexo descaído no seio imóvel do entardecer. E se falasse do mar, deuses!, donde os lábios salgados amassaram estes, hoje condoídos de espera, oxidados no silêncio dos ventos. Era capaz de gritar essa mudez com que abismamos cada retoque da onda, espuma de cristal a burilar projectos.
Não! Esta história é apenas a do teu regaço florido, vivaz da rega de lágrimas que o fim da luz choveu. Foi em setembro de um ano prestes a chegar, mas podia ter sido em qualquer mês, mesmo no passado. Esta história é tua porque assim deve ser. Dedico-ta.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
Tempo que não chega a tempo
Se o tempo recuperasse a prece
Se a glória do mundo eu pudesse
deixar cair o medo de mingar
e, perdida a voz, fosse falar
de como se perde a aurora sem
ganhar a noite, essa que tem
a sorte de libertar o gesto e o fado,
essa que me iludia choro e pecado
E assim pedir-te de volta, que o castigo
não me solta, que nem o perigo
m'alenta: nos dedos rotos de rezar
escondo contas de passarinho; os mimos do mar
não chegam a acreditar nos anos. Vou
dizer-te (baixinho) o que sou: enganos
com que se colora a primavera. Terra,
só terra e poeira, que sem maneira
já me não molda a alma. Já nem acalma.
Se a glória do mundo eu pudesse
deixar cair o medo de mingar
e, perdida a voz, fosse falar
de como se perde a aurora sem
ganhar a noite, essa que tem
a sorte de libertar o gesto e o fado,
essa que me iludia choro e pecado
E assim pedir-te de volta, que o castigo
não me solta, que nem o perigo
m'alenta: nos dedos rotos de rezar
escondo contas de passarinho; os mimos do mar
não chegam a acreditar nos anos. Vou
dizer-te (baixinho) o que sou: enganos
com que se colora a primavera. Terra,
só terra e poeira, que sem maneira
já me não molda a alma. Já nem acalma.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
O lugar do vivo
1.
Todos temos uma ocasião. Alguns, companhias da sorte, chegam a poder confessar, Na nossa vida houve um Verão. Na minha vida, não houve. Houve uma noite. Mas mentem, se me desculparem que há noites assim. E se outra houvesse, nem ao diabo a oferecia.
Aconteceu há dois anos. Desde ela, por ela, foi terrível tudo quanto me arrastou.
Há escassos dias, finalmente, encontrei a mulher do médico morto. Não se chama Teresa, mas está viva. E pode permitir que eu volte a ser qualquer coisa. Nunca mais como antigamente. Depois daquela noite, nunca mais.
2.
“A persistência da memória é tão surrealista como a tua teimosia. Contar a história não é garantia de recuperares a liberdade. As vezes que to repito! Mas seja: há quem desculpe a terapia. E, agora, não serei eu a renovar-te o medo”.
3.
- Já ninguém se mata à beira-mar, junto do farol. Saiu-me da boca, mas não fui eu a falar.
O medo continuou, agora num sussurro fechado, só comigo: “Que havia de lhe dizer, se não uma graça? Ele é medonho, repara bem!”
Na terceira semana de Novembro, desde há dez anos, conseguia aconchegar dias dispersos e ia respirar o mar. Sozinho, apartado da cidade, escondido em invisibilidade incógnita. As pegadas do Verão tinham desaparecido e o bafo do São Martinho não tem quentura para contrariar o ritmo das estações. Preciso de arrefecer e só o ar do mar me ajuda a retomar o desgosto do trabalho, a reinventar o fôlego. Todos os anos, era este pedaço de Outono que me rejuvenescia. Fugia à família e esvaziava-me no som das ondas, nas réstias de Sol e nas longas caminhadas pelo areal lavado.
Todas as vezes, como numa destinação astrológica, temendo que o olvido fosse agoiro, percorria o pontão na noite anterior ao regresso. Caminhava da fortaleza ao farol e enchia o peito daquela terna brisa fresca. Chovesse, ventasse forte (houve uma noite, vão lá seis anos, que uma trovoada medonha me escolheu e tive de avançar em gatas, enquanto a ventania me fazia de trapo sacudido). Regressava do farol, peito cheio, percorrendo o quilómetro de volta. Sempre sem um parceiro, sempre sem vivalma que visse, e sempre com o descanso de nem polícia nem bombeiro se inquietarem com a minha ousadia, impotentes na imaginação de haver um louco a percorrer o frio escuro de Novembro.
Foi a três curtos passos do farol, num escuro salpicado de bagos de reluzente espuma, que vi o homem.
“Vai atirar-se dali, mesmo à tua frente; ou não, pode é estar à tua espera”.
Era grande o homem. Era um homem excessivo e desmesurado. Um fato escuro, uma camisola preta, de gola alta, e, no breu imenso, reflectia uma barba branca, aparada a rigor, e um cabelo grisalho que as têmporas ondulavam.
Um velho lobo-do-mar? Um marinheiro que perdera o rumo ou a graça? Um louco que aguardava outro?
Pensará qualquer um, mesmo parcamente sensato, que em lugar de uma graça parva, dava-lhe as boas noites e retrocedia ao meu caminho de sempre. Desde há dois anos que eu tenho pensado exactamente o mesmo. Só que, volvendo a então, não fora eu o do gracejo, tomara-me o medo a voz; depois, o corpo não reagia e a cabeça estava bem alheada dum raciocínio; por fim, algo me teimava que o acaso nunca é por acaso e nunca somos ágeis a contrariar o fado.
No quilómetro em redor, nem um mísero peixe sonharia este encontro e o homem, impávido, imóvel, parecia saber de cor os caminhos da minha imaginação obstruída.
Todos temos uma ocasião. Alguns, companhias da sorte, chegam a poder confessar, Na nossa vida houve um Verão. Na minha vida, não houve. Houve uma noite. Mas mentem, se me desculparem que há noites assim. E se outra houvesse, nem ao diabo a oferecia.
Aconteceu há dois anos. Desde ela, por ela, foi terrível tudo quanto me arrastou.
Há escassos dias, finalmente, encontrei a mulher do médico morto. Não se chama Teresa, mas está viva. E pode permitir que eu volte a ser qualquer coisa. Nunca mais como antigamente. Depois daquela noite, nunca mais.
2.
“A persistência da memória é tão surrealista como a tua teimosia. Contar a história não é garantia de recuperares a liberdade. As vezes que to repito! Mas seja: há quem desculpe a terapia. E, agora, não serei eu a renovar-te o medo”.
3.
- Já ninguém se mata à beira-mar, junto do farol. Saiu-me da boca, mas não fui eu a falar.
O medo continuou, agora num sussurro fechado, só comigo: “Que havia de lhe dizer, se não uma graça? Ele é medonho, repara bem!”
Na terceira semana de Novembro, desde há dez anos, conseguia aconchegar dias dispersos e ia respirar o mar. Sozinho, apartado da cidade, escondido em invisibilidade incógnita. As pegadas do Verão tinham desaparecido e o bafo do São Martinho não tem quentura para contrariar o ritmo das estações. Preciso de arrefecer e só o ar do mar me ajuda a retomar o desgosto do trabalho, a reinventar o fôlego. Todos os anos, era este pedaço de Outono que me rejuvenescia. Fugia à família e esvaziava-me no som das ondas, nas réstias de Sol e nas longas caminhadas pelo areal lavado.
Todas as vezes, como numa destinação astrológica, temendo que o olvido fosse agoiro, percorria o pontão na noite anterior ao regresso. Caminhava da fortaleza ao farol e enchia o peito daquela terna brisa fresca. Chovesse, ventasse forte (houve uma noite, vão lá seis anos, que uma trovoada medonha me escolheu e tive de avançar em gatas, enquanto a ventania me fazia de trapo sacudido). Regressava do farol, peito cheio, percorrendo o quilómetro de volta. Sempre sem um parceiro, sempre sem vivalma que visse, e sempre com o descanso de nem polícia nem bombeiro se inquietarem com a minha ousadia, impotentes na imaginação de haver um louco a percorrer o frio escuro de Novembro.
Foi a três curtos passos do farol, num escuro salpicado de bagos de reluzente espuma, que vi o homem.
“Vai atirar-se dali, mesmo à tua frente; ou não, pode é estar à tua espera”.
Era grande o homem. Era um homem excessivo e desmesurado. Um fato escuro, uma camisola preta, de gola alta, e, no breu imenso, reflectia uma barba branca, aparada a rigor, e um cabelo grisalho que as têmporas ondulavam.
Um velho lobo-do-mar? Um marinheiro que perdera o rumo ou a graça? Um louco que aguardava outro?
Pensará qualquer um, mesmo parcamente sensato, que em lugar de uma graça parva, dava-lhe as boas noites e retrocedia ao meu caminho de sempre. Desde há dois anos que eu tenho pensado exactamente o mesmo. Só que, volvendo a então, não fora eu o do gracejo, tomara-me o medo a voz; depois, o corpo não reagia e a cabeça estava bem alheada dum raciocínio; por fim, algo me teimava que o acaso nunca é por acaso e nunca somos ágeis a contrariar o fado.
No quilómetro em redor, nem um mísero peixe sonharia este encontro e o homem, impávido, imóvel, parecia saber de cor os caminhos da minha imaginação obstruída.
4.
No instante seguinte, no preciso momento em que me apontava os olhos (grandes, escuros debruados a cal, olhos que apagados já ameaçavam) um salpico de espuma fez-se-me gota na face esquerda. Se tugi, foi silêncio.
- Eu não sou eu, ó juizinho!
“Conhece-te. Espera-te. Deve ser caso roto que queira remendar. Daqui a nada, afunda-te na água gelada e nem se te aproveita o sal”.
- A história é comprida, mas a noite, tal como a vida que imita, vai longa. Por isso, fica curta. Vou-te despachar o enredo. Vê esta ironia, juizinho: desta vez sou eu a despachar! É melhor tomarmos assento.
Patético: Sentaram-se um órgão de soberania, sozinho e frio; um António Maria, acompanhado de um medo nervoso e chato; um homem gigante, decerto louco, vingativo de certeza. Primeiro o medo, sempre sorrateiro; eu e o órgão de imediato, no mesmo gesto, e o homem a completar o quadro, depois de ter temperado o cenário com o eco kitsch de um com licença. ESTÁ LICENCIADO! É UMA PIADA… TINHA FICADO TÃO BEM EM CASA…
- Nasci Miguel, há muito ano, e foi como Miguel que cresci. Fui puto como os outros putos, andei no Liceu e percorri os corredores da Faculdade. Fiz-me médico, casei e tive uma filha linda. Se te dissesse o que ela faz! E, numa noite muito fria de Fevereiro, quase há trinta anos, morri. Uma hora depois, tornei à vida: mais ou menos da mesma idade, poucos centímetros mais baixo, Pedro de meu nome e ser. Desempregado e vagabundo.
“Podia ser pior! Ainda te vais safar: quando são mesmo loucos, só querem conversar. Pode ser que não seja violento!”
- Não é fácil completar o nosso corpo com outra pessoa. Mantinha os gestos do morto, sentia tal qual o morto e, é claro, não podia…
Queria perguntar-lhe de onde raio me conhecia e a propósito de quê; dizer que me confundia com qualquer outro. Que diabo queria de mim, afinal? Mas, apenas para avançar conversa, esperançado que o propósito do homem não fosse além disso, só questionei (numa vozinha trémula, a calcular palavras) porque é que não podia.
- Porque me matei. Estava completamente morto e, eu acho natural, as pessoas não consideram interessante um morto continuar vivo, mesmo que o faça no uso da vida doutro.
“Podias perguntar-lhe se é uma alegoria. Ele pode querer dizer que mudou de vida e tomou o exemplo de outra pessoa. Caso não se julgue um fantasma, bem entendido. Não ligues: pergunta-lhe se ele se habituou ao outro”.
- Mas não tinha outro remédio: agora era eu o Pedro. Vinte e nove anos, calceteiro vadio, nascido nos declives do Douro e perdido, há muitas luas, no esquecimento da cidade. Consumia as horas entre o tasco e a taberna, sorvendo aguardente de desperdício e inventando biscates anónimos, que não me comprometessem o horário. Colava cartazes de políticos e merceeiros, limpava jardins, poucos, e rapava umas sandes como se fossem jantar. O coração resolveu estancar-me os dias e, numa noite fria, acordei junto ao alpendre que me acoitava. Morto. Morto e frio. Andei em bolandas, à procura de pertença, mas não cheguei a passar a noite inteira na morgue: um médico jovem, tanto como a minha idade, um nada mais alto mas também bem-parecido, surgiu por ali, esbaforido e apoquentado. Já se acompanhava de alguma ideia torpe, mas primeiro contou os cadáveres, abriu os gavetões, olhou-me bem olhado, fez umas quantas medidas e preencheu uns documentos, tudo na luz baça duma gambiarra que não me atemorizava. Senti que lhe fazia falta, que finalmente, agora morto, a alguém dava préstimo. O médico vestiu-me a roupa dele (janota), puxando as calças bem acima. Partiu-me os dentes e forçou-me a engolir qualquer coisa ácida, além de me esfregar o corpo com álcool (as vezes que supliquei uma branquinha ao fundo da rua e o destino ensaboava-me com aquele éter escusado). Arranjadinhos, saímos os dois num Opel azul-escuro, com um cheiro pestilento a gasolina, e percorremos uns bons trinta quilómetros, sempre com atenção e cautela. Ao longo da jornada, o gajo deu-se a umas quantas justificações, mas muito confusas: que as mulheres são um inferno (já sabia); que o colega de neurologia era um grande cabrão (não conhecia); que só o não matava porque não tinha mais tempo (era com ele) e porque, no fundo, tinha sido a Teresa quem se lhe pôs a jeito, que foi ela quem lhe virou a cabeça (não entendi); só tinha ódio de si por deixar a filha entregue a um qualquer destino, mas não era viável outra solução (pronto!). Por fim, disse que me agradecia estar eu ali, à sua mercê, sem alguém a perguntar de mim; disse que eu era a sua salvação e era eu, afinal, quem ia ficar vivo no lugar dele (grande coisa!). Era bom que nos conhecêssemos melhor, ainda propôs, mas eu estava noutra e decidi-me ficar calado. Quando chegámos ao destino, prendeu-me ao volante e então percebi que na próxima volta seguia sozinho. Arranjou um declive enorme (bem, já o tinha que conhecer, mas para mim era a primeira vez), acrescentou mais um cheiro nauseabundo de gasolina e empurrou com quanta força lhe sobrava. O carro rolou, primeiro devagarinho, depois acelerado e, possuído de uma fúria trepidante, embicou-se pelo precipício. No segundo solavanco de encontro aos penedos, espatifado, acendeu-se o fogo de artifício e um clarão varreu a escarpa toda, até ao mar. Rolámos mais alguns cem metros, o resto de mim e a sobra do Opel e a braseira permaneceu muito tempo a clarear as rochas e a água. Pedro regressaria a pé. Não tem lume, pois não? Tenho certo que deixou de fumar, mas podia trazer qualquer coisa que acenda. É nobre despedirmo-nos com fogo.
(…)
- Como é óbvio, não regressei a casa e os meses seguintes treinei-me a ser o Pedro, reinventando quase tudo o que dele não sabia. Tinha dinheiro acautelado, mas era forçoso passar por vagabundo. A um vagabundo ninguém exige nada, deita-se a cara para o lado e segue-se em frente, a passo mais rápido. Tu, juizinho, se ainda queres ser um grande escritor, devias experimentar outras vidas; dava-te bom proveito experimentares a fome, dormires em qualquer merda de sítio, espreitares o branco de uma naifa perdida…
Fazia por não o olhar, como ao vagabundo, incrédulo a tudo. O estômago revirava-se-me, o som do mar aturdia as palavras do homem e não havia meio de me desprender. Se estava desgraçado, o que é que perdia em participar no enredo?
- Mas o tempo escasseia e preciso de acelerar o passado. O que ficar por dizer entrego ao teu cuidado (afinal, ainda há tantos que escrevem pior que tu…): lego-te o livro que guardo no saco e lá tens tudo encadeado. Na prisão, gastava os dias em leituras e rascunhos, e foram muitos anos…
“Pistola, prisão, muitos aninhos… tens a sina desenhada! Mas tem um livro para te dar! Curioso: tão louco que não se despede sem um recuerdo!” ESTAMOS COM UMA PIADA!…
- Dois dias depois, calculo eu, fizeram-me um funeral condigno, mais engalanado que o merecimento, tão discreto quanto um mísero resto de corpo exigia. Pensava que a Teresa estava impossibilitada de ir, salvo ao dela, e a pequenita devia estar a ser resguardada da desgraça. Durante mais de um ano fugi do Miguel morto e acomodei-me ao morto Pedro. Todo o tempo, digo-to com sinceridade, julguei a Teresa perfeitamente morta e, só preso, é que descobri o contrário. Primeiro só isso mesmo, que a minha mulher tinha sido reanimada, que um milagre estancara a hemorragia e, volvidas duas semanas, tinha tido alta sem a mais pequena sequela. Mais tarde, apercebi-me dela ter descoberto que me passava por outro (como conseguiu, ainda hoje não imagino acrescento-te). Logo aí dei conta da sua decisão de me castigar até sempre, deixando que só eu apercebesse a descoberta e não a revelando a mais ninguém, sequer à Maria.
O homem, afinal, tinha lume.
Fez uma pausa e iluminou um cigarro. Um pontinho incandescente imitava o farol e varria o escuro, desenhando-lhe os gestos. Não ofereceu.
- O Miguel matou-se, juiz, porque tinha morto a mulher. Num ataque de fúria, naquela noite de Fevereiro que aventurou partilhar com o diabo, depois de ter tido a absoluta certeza da humilhação que ela lhe desferira, na cama e no desprezo, com o neurologista que lhe ocupou o lugar na clínica. Simplificando: com o maior cabrão que habita a Terra. Eu estava louco. Pedi-lhe explicações, mas não as precisando nem as querendo ouvir. Esbofeteei-a, esmurrei-a, rasguei-lhe a roupa. Deixei-me de mim e, sem ser eu, lancei-a contra a mesa da cozinha como quem atira um desperdício. As costas dobraram como um livro deslombado, num som seco que rachava a coluna. No movimento, a cabeça lascou a quina do móvel e jorrou uma torrente de sangue. Acordei! A minha filha, ao fundo da porta, espreitava o inferno. Fugi! Corri como uma alma vendida, peguei no Opel e fui à morgue. Aproveitei um corpo desconhecido, em descanso fresco, e um registo incompleto. Foi fácil. Viajámos os dois até ao mar, mas deixei que fosse o Pedro, agora o doutor Miguel, a fazer sozinho o percurso derradeiro. Eu, Miguel, agora Pedro, voltei ao mundo dos que por vivos se passam.
“Estou a ver tudo, companheiro: matou a legítima esposa e fugiu, borrado de medo. Ou pensou que a matou, o que, ao medo, é perfeitamente indiferente. E de medo percebo eu! Mas se a mulher nada contou, porque havia de ser preso?! Talvez lhe falte inventar alguma coisa e o melhor (pior para ti, quem sabe?) ainda está para chegar…”.
- Cheguei a ir ao Douro, intencionado a adaptar-me ao novo enquadramento. Uma viagem de carreira que demorou dias, entre serras e rio. Afinal, como qualquer juiz sabe e sempre esquece, um homem é ele e as tais das suas circunstâncias. Lembro-me daquele teu romance - o primeiro, mas já com o disfarce ridículo de mulher - em que um bancário coleccionava selos com efígies de pessoas famosas e usa sempre uma gravata às bolinhas pequeninas; perde a memória, mas só parcialmente, e apenas deixa de se lembrar dos que lhe são próximos: os vizinhos que raramente via, passam a ser os seus mais chegados e os que só viu de relance, num encontro casual, numa esquina de rua, parecem ser os companheiros de trabalho, mas a família e os verdadeiros colegas ficam completamente desconhecidos. Eu estava igual: os conterrâneos da aldeia, os primos ou os irmãos – se os tivesse – eram-me completamente estranhos. Não serviu de nada a minha busca, fiquei ciente que ninguém deu por mim, não fiquei a saber quem era e nem a maior desgraça (que chegaria mais tarde mas logo ali podia ter acautelado), eu minimamente pressenti. O ROMANCE – SEI LÁ SE É ROMANCE! – NÃO É NADA DISSO. O HOMEM NÃO PERDERA A MEMÓRIA MAS SIMULAVA QUE NÃO TINHA LEMBRANÇA! BEM DIFERENTE! AGORA TAMBÉM PENSA QUE É CRÍTICO. OS LEITORES SÃO TÃO INGÉNUOS. E ESTE GAJO É MÉDICO, OU FOI … SEI LÁ EU O QUE É QUE FOI. OU O QUE ESTÁ PARA SER. OU O QUE ESTÁ PARA VIR… Vim da aldeia com a mesma escassez que lá me levara, sem coragem para mais esclarecimentos, quando notei que referir o nome dele era afugentar as conversas. Esqueci. Agora, ia inventar-me. Mudei de cidade e recomecei. Procurava biscates e ia aceitando a mínima coisa que pudesse fazer à noite, na cautela de qualquer importuna curiosidade. A sorte protegeu-me durante um ano e passei de jardineiro de uma viúva jovem a seu acólito de leito. Rica negociante de ouro em segunda mão, herdeira de um nome que a democracia apagara, enovelou-se nos meus comedidos conselhos e, volvido o tempo da desconfiança, entregou-se-me por inteiro. Era dada às melancolias, achacada de variados padecimentos. E eu, sorrateiramente e sem descuidos, fui-a cuidando com o saber antigo e o acrescento dumas mesinhas caseiras. A vida parecia bonificar-me, sem a tanto ter direito.
(…)
Lembro-me de cada gesto, dos seus e dos daqueles dois juízes carrancudos que davam ares de génio. Vejo o Procurador a inebriar-se com a vitória e, embalado nessa certeza, a advertir o Mundo que há duas espécies de seres humanos, os que o são e os que nunca o serão. Cuidando que descobrira o Santo Graal, talvez o volume segundo da Poética (não era sobre o riso, ó juizinho?) sorriu-me de escárnio e verbalizou que a minha colocação era ainda abaixo da segunda classe.
O homem parecia transfigurado. Dispensava-se de tomar fôlego e lançava:
- Sabes que, depois de tantos anos, não consigo compreender. Que pode haver de bom numa condenação? E tu, quer tão novo eras! Foram mais que bebedeira e loucura os teus propósitos mais lógicos, ó juizito? Sabes que não; sabes que nem representar sabias! Representaram-te. Nunca foste actor, mesmo se lhe vestias os gestos…
“Bernardo, esse compincha de medos enovelados”.
- É indissolúvel o algoz do vitimado e só o acaso gradua as oportunidades, mas deixando-as sempre na berma da opção acidental. Preferes uma pneumonia ou uma pleurisia?, aceitarás a espada, se fugires do cutelo? A vida deixou-te a mão em almofada, mas que grandeza lhe acrescentas? Tu e eu não somos diferentes, se só somos uma soma de subordinações, seja de um falso guia ou dos pesos rodeantes que sufocam o ar.
“Soares, na mesma. O homem avança além da loucura. Tudo se pode esperar…”
- A camisola? Ó homem, vista lá a camisola. Fica-lhe grande, mas não vai daqui a nenhuma passagem de modelos! Traga também o revólver!
“Agora que a história me disfarçava. Logo agora que parecia estares a ficar sozinho, filosofando de ouvido no enredo, talvez arriscando o sonho de seres digno de uma imaginação tão forte como a realidade! Volto para ti, António: se é para trazeres o revólver, traz Fica do teu lado.”
Olhei o homem. Olhei o homem e só um título, aí dos anos sessenta, setenta, se rasgou no traço que fazia de pensamento: o direito do mais forte à liberdade. Cinema alemão das controvérsias da Faculdade. Não dizem que, antes de partirmos, galgamos toda a memória de vida em meia dúzia de piscares de tempo? Ia às terças ao Avenida e, na noite sem limite, explicava facilmente como mudar o Mundo. Ainda me sobrava tempo para apertar a Magui (não são esses velhos que nos ensinam o que é a vida, miúda!). Com ou sem sexo, bebíamos champanhe todas as noites na cerveja choca dos escudos parcos e comíamos trufa de ostras nos negritos definhados do Arco. E não é que ao outro dia, logo à hora do almoço, víamos que a vida acordara de novo, e tão grande, mas mesmo tão grande, mesmo tão grande como na noite anterior? Tínhamos a certeza do infinito. Absoluta. Absolutamente.
Olhava o homem e teimava-me. Certeza. Absoluta. Absolutamente. Quando foi que, pela primeira vez, tiveste a angústia que não viverias para sempre, António?
- Só tem uma bala!
Quando foi, António Maria?
- Fica ao seu cuidado!
Ergui-me, indiferente.
Caminhei os três passos que alcançavam o saco, alheio.
Tirei a camisola e vesti-a, apático.
Tirei o revólver, impassível.
Olhando o homem, deixei-o na mão aberta, desleixado.
- Mesmo nesta penumbra, basta apontar-me e, finalmente, dissolve o tempo, a memória, o Pedro e o Miguel. Com um tiro singelo, este corpo esvai-se e leva dois homens que a vida não comprou. E liberta-se do trabalho que deixou a meio, desse descuido que hoje lhe recordo.
“E é capaz de ser o melhor, companheiro. Mas, lá ao fundo, ainda se ouve o tiro e não tens tempo de fugir. Acho que temos receio de seres apanhado e, como receio é um nome pomposo para as minhas advertências, aconselho-te cautela. Nunca farias isso? O caraças, Toninho! Se ninguém visse, claro! Então o homem agarra-te aqui à noite, e vem armado, e quer-se vingar por o teres condenado... Não é legítima defesa, o que vocês chamam?”
- Não aponta? Já sei, quer saber o porquê! Juiz escritor, é o mal! Curioso, perspicaz, não acaba o homem antes do fim da história. E agora, na posse do cutelo, arrisca a minha revolta para fazer o pleno: mata-me, mas exige que eu lhe revele o segredo, que eu lhe fundamente o acto. Muito bem, aceito. Antes de partirmos em paz, aceito dar-lhe a razão para a minha morte. O QUE É A MORTE? A DA SUA MÃE, OU A SUA OU A MINHA? VOCÊ SÓ VIU A SUA MÃE MORRER. EU VEJO-OS ESTOIRAR TODOS OS DIAS NA MATER E EM RICHMOND E COMO LHES ARRANCAM AS TRIPAS NA SALA DE DISSECAÇÃO. Mas imponho uma condição: antes telefona aos dois velhinhos que faziam de colectivo e diz-lhes, Tenho na minha mira um homem que condenámos a vinte e quatro anos por ter morto a namorada, mas ele não era ele, não tinha namorada e não chegou a matar ninguém; o homem quer morrer agora e obriga-me a executar a decisão; não tenho outro remédio, se não é ele a mata-me! NEM SEI O NOME DELES, QUANTO MAIS OS TELEFONES. UMA IDEIA… DAVA A MINHA VIDA POR UMA IDEIA. ISTO DE DAR A VIDA, POR QUALQUER COISA QUE SEJA, É CARICATO…
Antes de um gesto, sem uma palavra ou a ideia dela, antes mesmo de mudar o olhar, o homem prosseguiu:
- Talvez não saiba os números, mas não se preocupe. Dê-me o seu telemóvel que eu marco. E se aceita ouvir o resto, pode sentar-se. Mantenha é a arma bem apontada, não vá eu pensar alguma coisa tola.
Eu era um autómato ou apenas a intriga, o meandro? Calado, dei o telemóvel ao homem, enquanto o medo me dizia que, a ser para matar, era agora, mas me acrescentava que uma pistola sem silenciador era uma merda. O homem olhou o dele, a recordar, e foi marcando no meu. Daí a nada (qualquer ideia o fez mudar de ideias), disse-me que faria as chamadas depois de findo o enredo: os juízes velhos já estariam mais dormidos para prestarem outra atenção. Voltou a sentar-se e perguntou-me, assim mesmo, e porquê eu?!
- Pois também eu não deixaria de fazer essa pergunta. Não desfazendo, certamente para si, é a mãe de todas as perguntas. O juizinho do colectivo, unzinho numa condenação de três, porquê ele? Ainda pior: se eu era o Pedro, se eu confessei o crime, porque raio havia agora de estar zangado? Afinal, nenhum dos distintos juízes aldrabou a prova! Não é, juizinho? Não é bem: eu sei que você sabe e agora – que porra! – eu sei que você já sabe que eu sei que a história não está completa. A certeza tive-a depois, quando o seu livro se aproveitou de mim. Mas logo no julgamento, como mais tarde retrocedi com evidência, você dera-me a pista. Lembra-se como eu. Disfarçava o olhar naquela tapeçaria que vos enfeitava a cabeça, a tudo acenava que sim; nada, em minha defesa, tinha para acrescentar. O juiz do meio estava cheio de pressa e, de repente, como um raio atravessando a sala, você trovou, Mas não pode ser este homem. Se alguém prestasse crédito, cairia a comarca, evaporariam os autos, ressuscitaria o Miguel. Mas não, há coisas mais estranhas que a surpresa, descomunais em demasia para servirem à admiração. O outro juiz deve ter pensado que o senhor estava bêbado e, em menos de três segundos, o juizinho voltou a retirar a âncora. Imberbe, mimado, medroso da figura de parvo, esclareceu, Tolice, estava a pensar noutra coisa. Eu não podia dizer que não era eu, evidentemente. A vergonha da minha certeza era infinitamente maior que a do receio do seu erro. Desse para onde desse, eu tinha que ser o Pedro, não ia trocar de novo. Não era só o ridículo, ia levar com outro homicídio, roubo de cadáver, falsificação de documentos.
“Ora aqui temos uma razão para este convívio. Não achas que acabas comigo se lhe enfaixares um balázio? Bem sei que depois regresso, mas logo se vê, o que interessa é agora!”
- Quando soube que a Teresa estava viva (disse-mo numa carta irónica, lida na prisão) também já era tarde. Sem grandes explicações, perguntei à advogada se podíamos rever a sentença e ela disse que sim, mas demorava. Disse-lhe que andava a escrever um conto em que o condenado tinha sido julgado por um crime alheio, mas ele próprio tinha feito isto e aquilo. Nessa altura devia estar você a escrevê-lo, meu sacana! A advogada esclareceu que ofensas graves, falsificação de documento oficial, destruição e profanação de cadáver também não davam uma pena pequena. E ainda me disse (veja lá como vocês fazem as leis…) que nunca me descontariam a prisão que já pagara! Aguentei. Já tinha perdido a primeira vida, depois perdi os vinte e quatro anos da que nem era minha.
“Dispara essa merda!”
Disparei. Finalmente senti um esgar de liberdade. Afinal, que mais podia recear? A frase saiu num clarão de bafo que quebrava o gelo e deixava o mar silente. Perguntei-lhe que responsabilidade me podia assacar pelas suas decisões e onde imaginara que eu o tinha tomado pelo outro.
- Ora essa, juizinho. Com gosto o cito: da autoria de Antónia M. Coimbra, o lugar do vivo. E o homem, de repente, sentia que não era seu o corpo que respondia àqueles juízes. Mas de que lhe serviria voltar ao que fora? Escondeu a vergonha da troca, apagando o ressuscitado e conformando-se com o desenlace: no fundo, sempre é um acaso o corpo que nos calha! SEI LÁ EU SE, NOS FUNDILHOS DA LEMBRANÇA, SOBROU ALGUMA IMAGINAÇÃO DESSE JULGAMENTO OU DE OUTRO QUALQUER. TUDO O QUE FAZEMOS É A NOSSA HISTÓRIA, NÃO HÁ OUTRO REMÉDIO. AGORA, O JULGAMENTO DO PEDRO SER CAUSA DIRECTA DO LUGAR DO VIVO, ISSO NÃO. QUANDO ESCREVEMOS, É A HISTÓRIA QUE NOS LEVA, NUNCA CONTRÁRIO. Eu não tinha grandes dúvidas, apenas certifiquei a certeza. Mas não me doeu, além dessa certeza, que me tenha usado para os devaneios literários, o que doeu foi a indiferença, o que doeu foi a falta de resposta a esta pergunta: quanto vale um homem se qualquer um vale o mesmo? Não é isso. O que quero dizer é, Que vale um homem se qualquer um tanto vale? Naquela sala, só a tua sagacidade me podia salvar e tu tiveste vergonha da dúvida. Como só a dúvida liberta, eu foi condenado. Quem salva um homem, salva o Mundo inteiro, dizia o Shindler. Quem não salva, mata. Foste tu quem fugiu! Quem, temeroso da incerteza que libertava, se agachou no descanso da certeza. E nem no livro – repara: e nem no livro – tu reabilitaste o homem. Tinha-lo morto e temeste ressuscitá-lo. Enfim, só te resta acabar o serviço.
“Não tens outro remédio!”
Qualquer jurista ridicularizaria uma causalidade tão medíocre. Um dia destes, caímos no descuido de imaginar a borboleta da China e somos responsáveis pela morte do cidadão que foi atingido por uma faísca na Bobadela! Fora eu pensar que uma dúvida atiraria um morto, criminoso confesso, para a cadeia e que uma literatura qualquer o ia manter tão morto como vivo. Essa não! Mas valeria pena dar-lhe explicações de causas virtuais, de crimes impossíveis?
“Não. Não valia a pena, nem tu és grande especialista da matéria. Aliás, passas os dias a inventar estranhezas semelhantes para as tuas histórias. Já vi que não lhe queres estoirar os miolos e, como sempre, estou solidário. De facto, envolve algum risco. Por isso, tive uma ideia. É filha do medo, mas para o dissipar. O homem quer ser reabilitado e é o que vais fazer: levas o livro dele, dizendo que o publicas. Depois, largas a pistola e vais-te embora, que amanhã é outro dia”.
No instante seguinte, no preciso momento em que me apontava os olhos (grandes, escuros debruados a cal, olhos que apagados já ameaçavam) um salpico de espuma fez-se-me gota na face esquerda. Se tugi, foi silêncio.
- Eu não sou eu, ó juizinho!
“Conhece-te. Espera-te. Deve ser caso roto que queira remendar. Daqui a nada, afunda-te na água gelada e nem se te aproveita o sal”.
- A história é comprida, mas a noite, tal como a vida que imita, vai longa. Por isso, fica curta. Vou-te despachar o enredo. Vê esta ironia, juizinho: desta vez sou eu a despachar! É melhor tomarmos assento.
Patético: Sentaram-se um órgão de soberania, sozinho e frio; um António Maria, acompanhado de um medo nervoso e chato; um homem gigante, decerto louco, vingativo de certeza. Primeiro o medo, sempre sorrateiro; eu e o órgão de imediato, no mesmo gesto, e o homem a completar o quadro, depois de ter temperado o cenário com o eco kitsch de um com licença. ESTÁ LICENCIADO! É UMA PIADA… TINHA FICADO TÃO BEM EM CASA…
- Nasci Miguel, há muito ano, e foi como Miguel que cresci. Fui puto como os outros putos, andei no Liceu e percorri os corredores da Faculdade. Fiz-me médico, casei e tive uma filha linda. Se te dissesse o que ela faz! E, numa noite muito fria de Fevereiro, quase há trinta anos, morri. Uma hora depois, tornei à vida: mais ou menos da mesma idade, poucos centímetros mais baixo, Pedro de meu nome e ser. Desempregado e vagabundo.
“Podia ser pior! Ainda te vais safar: quando são mesmo loucos, só querem conversar. Pode ser que não seja violento!”
- Não é fácil completar o nosso corpo com outra pessoa. Mantinha os gestos do morto, sentia tal qual o morto e, é claro, não podia…
Queria perguntar-lhe de onde raio me conhecia e a propósito de quê; dizer que me confundia com qualquer outro. Que diabo queria de mim, afinal? Mas, apenas para avançar conversa, esperançado que o propósito do homem não fosse além disso, só questionei (numa vozinha trémula, a calcular palavras) porque é que não podia.
- Porque me matei. Estava completamente morto e, eu acho natural, as pessoas não consideram interessante um morto continuar vivo, mesmo que o faça no uso da vida doutro.
“Podias perguntar-lhe se é uma alegoria. Ele pode querer dizer que mudou de vida e tomou o exemplo de outra pessoa. Caso não se julgue um fantasma, bem entendido. Não ligues: pergunta-lhe se ele se habituou ao outro”.
- Mas não tinha outro remédio: agora era eu o Pedro. Vinte e nove anos, calceteiro vadio, nascido nos declives do Douro e perdido, há muitas luas, no esquecimento da cidade. Consumia as horas entre o tasco e a taberna, sorvendo aguardente de desperdício e inventando biscates anónimos, que não me comprometessem o horário. Colava cartazes de políticos e merceeiros, limpava jardins, poucos, e rapava umas sandes como se fossem jantar. O coração resolveu estancar-me os dias e, numa noite fria, acordei junto ao alpendre que me acoitava. Morto. Morto e frio. Andei em bolandas, à procura de pertença, mas não cheguei a passar a noite inteira na morgue: um médico jovem, tanto como a minha idade, um nada mais alto mas também bem-parecido, surgiu por ali, esbaforido e apoquentado. Já se acompanhava de alguma ideia torpe, mas primeiro contou os cadáveres, abriu os gavetões, olhou-me bem olhado, fez umas quantas medidas e preencheu uns documentos, tudo na luz baça duma gambiarra que não me atemorizava. Senti que lhe fazia falta, que finalmente, agora morto, a alguém dava préstimo. O médico vestiu-me a roupa dele (janota), puxando as calças bem acima. Partiu-me os dentes e forçou-me a engolir qualquer coisa ácida, além de me esfregar o corpo com álcool (as vezes que supliquei uma branquinha ao fundo da rua e o destino ensaboava-me com aquele éter escusado). Arranjadinhos, saímos os dois num Opel azul-escuro, com um cheiro pestilento a gasolina, e percorremos uns bons trinta quilómetros, sempre com atenção e cautela. Ao longo da jornada, o gajo deu-se a umas quantas justificações, mas muito confusas: que as mulheres são um inferno (já sabia); que o colega de neurologia era um grande cabrão (não conhecia); que só o não matava porque não tinha mais tempo (era com ele) e porque, no fundo, tinha sido a Teresa quem se lhe pôs a jeito, que foi ela quem lhe virou a cabeça (não entendi); só tinha ódio de si por deixar a filha entregue a um qualquer destino, mas não era viável outra solução (pronto!). Por fim, disse que me agradecia estar eu ali, à sua mercê, sem alguém a perguntar de mim; disse que eu era a sua salvação e era eu, afinal, quem ia ficar vivo no lugar dele (grande coisa!). Era bom que nos conhecêssemos melhor, ainda propôs, mas eu estava noutra e decidi-me ficar calado. Quando chegámos ao destino, prendeu-me ao volante e então percebi que na próxima volta seguia sozinho. Arranjou um declive enorme (bem, já o tinha que conhecer, mas para mim era a primeira vez), acrescentou mais um cheiro nauseabundo de gasolina e empurrou com quanta força lhe sobrava. O carro rolou, primeiro devagarinho, depois acelerado e, possuído de uma fúria trepidante, embicou-se pelo precipício. No segundo solavanco de encontro aos penedos, espatifado, acendeu-se o fogo de artifício e um clarão varreu a escarpa toda, até ao mar. Rolámos mais alguns cem metros, o resto de mim e a sobra do Opel e a braseira permaneceu muito tempo a clarear as rochas e a água. Pedro regressaria a pé. Não tem lume, pois não? Tenho certo que deixou de fumar, mas podia trazer qualquer coisa que acenda. É nobre despedirmo-nos com fogo.
(…)
- Como é óbvio, não regressei a casa e os meses seguintes treinei-me a ser o Pedro, reinventando quase tudo o que dele não sabia. Tinha dinheiro acautelado, mas era forçoso passar por vagabundo. A um vagabundo ninguém exige nada, deita-se a cara para o lado e segue-se em frente, a passo mais rápido. Tu, juizinho, se ainda queres ser um grande escritor, devias experimentar outras vidas; dava-te bom proveito experimentares a fome, dormires em qualquer merda de sítio, espreitares o branco de uma naifa perdida…
Fazia por não o olhar, como ao vagabundo, incrédulo a tudo. O estômago revirava-se-me, o som do mar aturdia as palavras do homem e não havia meio de me desprender. Se estava desgraçado, o que é que perdia em participar no enredo?
- Mas o tempo escasseia e preciso de acelerar o passado. O que ficar por dizer entrego ao teu cuidado (afinal, ainda há tantos que escrevem pior que tu…): lego-te o livro que guardo no saco e lá tens tudo encadeado. Na prisão, gastava os dias em leituras e rascunhos, e foram muitos anos…
“Pistola, prisão, muitos aninhos… tens a sina desenhada! Mas tem um livro para te dar! Curioso: tão louco que não se despede sem um recuerdo!” ESTAMOS COM UMA PIADA!…
- Dois dias depois, calculo eu, fizeram-me um funeral condigno, mais engalanado que o merecimento, tão discreto quanto um mísero resto de corpo exigia. Pensava que a Teresa estava impossibilitada de ir, salvo ao dela, e a pequenita devia estar a ser resguardada da desgraça. Durante mais de um ano fugi do Miguel morto e acomodei-me ao morto Pedro. Todo o tempo, digo-to com sinceridade, julguei a Teresa perfeitamente morta e, só preso, é que descobri o contrário. Primeiro só isso mesmo, que a minha mulher tinha sido reanimada, que um milagre estancara a hemorragia e, volvidas duas semanas, tinha tido alta sem a mais pequena sequela. Mais tarde, apercebi-me dela ter descoberto que me passava por outro (como conseguiu, ainda hoje não imagino acrescento-te). Logo aí dei conta da sua decisão de me castigar até sempre, deixando que só eu apercebesse a descoberta e não a revelando a mais ninguém, sequer à Maria.
O homem, afinal, tinha lume.
Fez uma pausa e iluminou um cigarro. Um pontinho incandescente imitava o farol e varria o escuro, desenhando-lhe os gestos. Não ofereceu.
- O Miguel matou-se, juiz, porque tinha morto a mulher. Num ataque de fúria, naquela noite de Fevereiro que aventurou partilhar com o diabo, depois de ter tido a absoluta certeza da humilhação que ela lhe desferira, na cama e no desprezo, com o neurologista que lhe ocupou o lugar na clínica. Simplificando: com o maior cabrão que habita a Terra. Eu estava louco. Pedi-lhe explicações, mas não as precisando nem as querendo ouvir. Esbofeteei-a, esmurrei-a, rasguei-lhe a roupa. Deixei-me de mim e, sem ser eu, lancei-a contra a mesa da cozinha como quem atira um desperdício. As costas dobraram como um livro deslombado, num som seco que rachava a coluna. No movimento, a cabeça lascou a quina do móvel e jorrou uma torrente de sangue. Acordei! A minha filha, ao fundo da porta, espreitava o inferno. Fugi! Corri como uma alma vendida, peguei no Opel e fui à morgue. Aproveitei um corpo desconhecido, em descanso fresco, e um registo incompleto. Foi fácil. Viajámos os dois até ao mar, mas deixei que fosse o Pedro, agora o doutor Miguel, a fazer sozinho o percurso derradeiro. Eu, Miguel, agora Pedro, voltei ao mundo dos que por vivos se passam.
“Estou a ver tudo, companheiro: matou a legítima esposa e fugiu, borrado de medo. Ou pensou que a matou, o que, ao medo, é perfeitamente indiferente. E de medo percebo eu! Mas se a mulher nada contou, porque havia de ser preso?! Talvez lhe falte inventar alguma coisa e o melhor (pior para ti, quem sabe?) ainda está para chegar…”.
- Cheguei a ir ao Douro, intencionado a adaptar-me ao novo enquadramento. Uma viagem de carreira que demorou dias, entre serras e rio. Afinal, como qualquer juiz sabe e sempre esquece, um homem é ele e as tais das suas circunstâncias. Lembro-me daquele teu romance - o primeiro, mas já com o disfarce ridículo de mulher - em que um bancário coleccionava selos com efígies de pessoas famosas e usa sempre uma gravata às bolinhas pequeninas; perde a memória, mas só parcialmente, e apenas deixa de se lembrar dos que lhe são próximos: os vizinhos que raramente via, passam a ser os seus mais chegados e os que só viu de relance, num encontro casual, numa esquina de rua, parecem ser os companheiros de trabalho, mas a família e os verdadeiros colegas ficam completamente desconhecidos. Eu estava igual: os conterrâneos da aldeia, os primos ou os irmãos – se os tivesse – eram-me completamente estranhos. Não serviu de nada a minha busca, fiquei ciente que ninguém deu por mim, não fiquei a saber quem era e nem a maior desgraça (que chegaria mais tarde mas logo ali podia ter acautelado), eu minimamente pressenti. O ROMANCE – SEI LÁ SE É ROMANCE! – NÃO É NADA DISSO. O HOMEM NÃO PERDERA A MEMÓRIA MAS SIMULAVA QUE NÃO TINHA LEMBRANÇA! BEM DIFERENTE! AGORA TAMBÉM PENSA QUE É CRÍTICO. OS LEITORES SÃO TÃO INGÉNUOS. E ESTE GAJO É MÉDICO, OU FOI … SEI LÁ EU O QUE É QUE FOI. OU O QUE ESTÁ PARA SER. OU O QUE ESTÁ PARA VIR… Vim da aldeia com a mesma escassez que lá me levara, sem coragem para mais esclarecimentos, quando notei que referir o nome dele era afugentar as conversas. Esqueci. Agora, ia inventar-me. Mudei de cidade e recomecei. Procurava biscates e ia aceitando a mínima coisa que pudesse fazer à noite, na cautela de qualquer importuna curiosidade. A sorte protegeu-me durante um ano e passei de jardineiro de uma viúva jovem a seu acólito de leito. Rica negociante de ouro em segunda mão, herdeira de um nome que a democracia apagara, enovelou-se nos meus comedidos conselhos e, volvido o tempo da desconfiança, entregou-se-me por inteiro. Era dada às melancolias, achacada de variados padecimentos. E eu, sorrateiramente e sem descuidos, fui-a cuidando com o saber antigo e o acrescento dumas mesinhas caseiras. A vida parecia bonificar-me, sem a tanto ter direito.
(…)
Lembro-me de cada gesto, dos seus e dos daqueles dois juízes carrancudos que davam ares de génio. Vejo o Procurador a inebriar-se com a vitória e, embalado nessa certeza, a advertir o Mundo que há duas espécies de seres humanos, os que o são e os que nunca o serão. Cuidando que descobrira o Santo Graal, talvez o volume segundo da Poética (não era sobre o riso, ó juizinho?) sorriu-me de escárnio e verbalizou que a minha colocação era ainda abaixo da segunda classe.
O homem parecia transfigurado. Dispensava-se de tomar fôlego e lançava:
- Sabes que, depois de tantos anos, não consigo compreender. Que pode haver de bom numa condenação? E tu, quer tão novo eras! Foram mais que bebedeira e loucura os teus propósitos mais lógicos, ó juizito? Sabes que não; sabes que nem representar sabias! Representaram-te. Nunca foste actor, mesmo se lhe vestias os gestos…
“Bernardo, esse compincha de medos enovelados”.
- É indissolúvel o algoz do vitimado e só o acaso gradua as oportunidades, mas deixando-as sempre na berma da opção acidental. Preferes uma pneumonia ou uma pleurisia?, aceitarás a espada, se fugires do cutelo? A vida deixou-te a mão em almofada, mas que grandeza lhe acrescentas? Tu e eu não somos diferentes, se só somos uma soma de subordinações, seja de um falso guia ou dos pesos rodeantes que sufocam o ar.
“Soares, na mesma. O homem avança além da loucura. Tudo se pode esperar…”
- A camisola? Ó homem, vista lá a camisola. Fica-lhe grande, mas não vai daqui a nenhuma passagem de modelos! Traga também o revólver!
“Agora que a história me disfarçava. Logo agora que parecia estares a ficar sozinho, filosofando de ouvido no enredo, talvez arriscando o sonho de seres digno de uma imaginação tão forte como a realidade! Volto para ti, António: se é para trazeres o revólver, traz Fica do teu lado.”
Olhei o homem. Olhei o homem e só um título, aí dos anos sessenta, setenta, se rasgou no traço que fazia de pensamento: o direito do mais forte à liberdade. Cinema alemão das controvérsias da Faculdade. Não dizem que, antes de partirmos, galgamos toda a memória de vida em meia dúzia de piscares de tempo? Ia às terças ao Avenida e, na noite sem limite, explicava facilmente como mudar o Mundo. Ainda me sobrava tempo para apertar a Magui (não são esses velhos que nos ensinam o que é a vida, miúda!). Com ou sem sexo, bebíamos champanhe todas as noites na cerveja choca dos escudos parcos e comíamos trufa de ostras nos negritos definhados do Arco. E não é que ao outro dia, logo à hora do almoço, víamos que a vida acordara de novo, e tão grande, mas mesmo tão grande, mesmo tão grande como na noite anterior? Tínhamos a certeza do infinito. Absoluta. Absolutamente.
Olhava o homem e teimava-me. Certeza. Absoluta. Absolutamente. Quando foi que, pela primeira vez, tiveste a angústia que não viverias para sempre, António?
- Só tem uma bala!
Quando foi, António Maria?
- Fica ao seu cuidado!
Ergui-me, indiferente.
Caminhei os três passos que alcançavam o saco, alheio.
Tirei a camisola e vesti-a, apático.
Tirei o revólver, impassível.
Olhando o homem, deixei-o na mão aberta, desleixado.
- Mesmo nesta penumbra, basta apontar-me e, finalmente, dissolve o tempo, a memória, o Pedro e o Miguel. Com um tiro singelo, este corpo esvai-se e leva dois homens que a vida não comprou. E liberta-se do trabalho que deixou a meio, desse descuido que hoje lhe recordo.
“E é capaz de ser o melhor, companheiro. Mas, lá ao fundo, ainda se ouve o tiro e não tens tempo de fugir. Acho que temos receio de seres apanhado e, como receio é um nome pomposo para as minhas advertências, aconselho-te cautela. Nunca farias isso? O caraças, Toninho! Se ninguém visse, claro! Então o homem agarra-te aqui à noite, e vem armado, e quer-se vingar por o teres condenado... Não é legítima defesa, o que vocês chamam?”
- Não aponta? Já sei, quer saber o porquê! Juiz escritor, é o mal! Curioso, perspicaz, não acaba o homem antes do fim da história. E agora, na posse do cutelo, arrisca a minha revolta para fazer o pleno: mata-me, mas exige que eu lhe revele o segredo, que eu lhe fundamente o acto. Muito bem, aceito. Antes de partirmos em paz, aceito dar-lhe a razão para a minha morte. O QUE É A MORTE? A DA SUA MÃE, OU A SUA OU A MINHA? VOCÊ SÓ VIU A SUA MÃE MORRER. EU VEJO-OS ESTOIRAR TODOS OS DIAS NA MATER E EM RICHMOND E COMO LHES ARRANCAM AS TRIPAS NA SALA DE DISSECAÇÃO. Mas imponho uma condição: antes telefona aos dois velhinhos que faziam de colectivo e diz-lhes, Tenho na minha mira um homem que condenámos a vinte e quatro anos por ter morto a namorada, mas ele não era ele, não tinha namorada e não chegou a matar ninguém; o homem quer morrer agora e obriga-me a executar a decisão; não tenho outro remédio, se não é ele a mata-me! NEM SEI O NOME DELES, QUANTO MAIS OS TELEFONES. UMA IDEIA… DAVA A MINHA VIDA POR UMA IDEIA. ISTO DE DAR A VIDA, POR QUALQUER COISA QUE SEJA, É CARICATO…
Antes de um gesto, sem uma palavra ou a ideia dela, antes mesmo de mudar o olhar, o homem prosseguiu:
- Talvez não saiba os números, mas não se preocupe. Dê-me o seu telemóvel que eu marco. E se aceita ouvir o resto, pode sentar-se. Mantenha é a arma bem apontada, não vá eu pensar alguma coisa tola.
Eu era um autómato ou apenas a intriga, o meandro? Calado, dei o telemóvel ao homem, enquanto o medo me dizia que, a ser para matar, era agora, mas me acrescentava que uma pistola sem silenciador era uma merda. O homem olhou o dele, a recordar, e foi marcando no meu. Daí a nada (qualquer ideia o fez mudar de ideias), disse-me que faria as chamadas depois de findo o enredo: os juízes velhos já estariam mais dormidos para prestarem outra atenção. Voltou a sentar-se e perguntou-me, assim mesmo, e porquê eu?!
- Pois também eu não deixaria de fazer essa pergunta. Não desfazendo, certamente para si, é a mãe de todas as perguntas. O juizinho do colectivo, unzinho numa condenação de três, porquê ele? Ainda pior: se eu era o Pedro, se eu confessei o crime, porque raio havia agora de estar zangado? Afinal, nenhum dos distintos juízes aldrabou a prova! Não é, juizinho? Não é bem: eu sei que você sabe e agora – que porra! – eu sei que você já sabe que eu sei que a história não está completa. A certeza tive-a depois, quando o seu livro se aproveitou de mim. Mas logo no julgamento, como mais tarde retrocedi com evidência, você dera-me a pista. Lembra-se como eu. Disfarçava o olhar naquela tapeçaria que vos enfeitava a cabeça, a tudo acenava que sim; nada, em minha defesa, tinha para acrescentar. O juiz do meio estava cheio de pressa e, de repente, como um raio atravessando a sala, você trovou, Mas não pode ser este homem. Se alguém prestasse crédito, cairia a comarca, evaporariam os autos, ressuscitaria o Miguel. Mas não, há coisas mais estranhas que a surpresa, descomunais em demasia para servirem à admiração. O outro juiz deve ter pensado que o senhor estava bêbado e, em menos de três segundos, o juizinho voltou a retirar a âncora. Imberbe, mimado, medroso da figura de parvo, esclareceu, Tolice, estava a pensar noutra coisa. Eu não podia dizer que não era eu, evidentemente. A vergonha da minha certeza era infinitamente maior que a do receio do seu erro. Desse para onde desse, eu tinha que ser o Pedro, não ia trocar de novo. Não era só o ridículo, ia levar com outro homicídio, roubo de cadáver, falsificação de documentos.
“Ora aqui temos uma razão para este convívio. Não achas que acabas comigo se lhe enfaixares um balázio? Bem sei que depois regresso, mas logo se vê, o que interessa é agora!”
- Quando soube que a Teresa estava viva (disse-mo numa carta irónica, lida na prisão) também já era tarde. Sem grandes explicações, perguntei à advogada se podíamos rever a sentença e ela disse que sim, mas demorava. Disse-lhe que andava a escrever um conto em que o condenado tinha sido julgado por um crime alheio, mas ele próprio tinha feito isto e aquilo. Nessa altura devia estar você a escrevê-lo, meu sacana! A advogada esclareceu que ofensas graves, falsificação de documento oficial, destruição e profanação de cadáver também não davam uma pena pequena. E ainda me disse (veja lá como vocês fazem as leis…) que nunca me descontariam a prisão que já pagara! Aguentei. Já tinha perdido a primeira vida, depois perdi os vinte e quatro anos da que nem era minha.
“Dispara essa merda!”
Disparei. Finalmente senti um esgar de liberdade. Afinal, que mais podia recear? A frase saiu num clarão de bafo que quebrava o gelo e deixava o mar silente. Perguntei-lhe que responsabilidade me podia assacar pelas suas decisões e onde imaginara que eu o tinha tomado pelo outro.
- Ora essa, juizinho. Com gosto o cito: da autoria de Antónia M. Coimbra, o lugar do vivo. E o homem, de repente, sentia que não era seu o corpo que respondia àqueles juízes. Mas de que lhe serviria voltar ao que fora? Escondeu a vergonha da troca, apagando o ressuscitado e conformando-se com o desenlace: no fundo, sempre é um acaso o corpo que nos calha! SEI LÁ EU SE, NOS FUNDILHOS DA LEMBRANÇA, SOBROU ALGUMA IMAGINAÇÃO DESSE JULGAMENTO OU DE OUTRO QUALQUER. TUDO O QUE FAZEMOS É A NOSSA HISTÓRIA, NÃO HÁ OUTRO REMÉDIO. AGORA, O JULGAMENTO DO PEDRO SER CAUSA DIRECTA DO LUGAR DO VIVO, ISSO NÃO. QUANDO ESCREVEMOS, É A HISTÓRIA QUE NOS LEVA, NUNCA CONTRÁRIO. Eu não tinha grandes dúvidas, apenas certifiquei a certeza. Mas não me doeu, além dessa certeza, que me tenha usado para os devaneios literários, o que doeu foi a indiferença, o que doeu foi a falta de resposta a esta pergunta: quanto vale um homem se qualquer um vale o mesmo? Não é isso. O que quero dizer é, Que vale um homem se qualquer um tanto vale? Naquela sala, só a tua sagacidade me podia salvar e tu tiveste vergonha da dúvida. Como só a dúvida liberta, eu foi condenado. Quem salva um homem, salva o Mundo inteiro, dizia o Shindler. Quem não salva, mata. Foste tu quem fugiu! Quem, temeroso da incerteza que libertava, se agachou no descanso da certeza. E nem no livro – repara: e nem no livro – tu reabilitaste o homem. Tinha-lo morto e temeste ressuscitá-lo. Enfim, só te resta acabar o serviço.
“Não tens outro remédio!”
Qualquer jurista ridicularizaria uma causalidade tão medíocre. Um dia destes, caímos no descuido de imaginar a borboleta da China e somos responsáveis pela morte do cidadão que foi atingido por uma faísca na Bobadela! Fora eu pensar que uma dúvida atiraria um morto, criminoso confesso, para a cadeia e que uma literatura qualquer o ia manter tão morto como vivo. Essa não! Mas valeria pena dar-lhe explicações de causas virtuais, de crimes impossíveis?
“Não. Não valia a pena, nem tu és grande especialista da matéria. Aliás, passas os dias a inventar estranhezas semelhantes para as tuas histórias. Já vi que não lhe queres estoirar os miolos e, como sempre, estou solidário. De facto, envolve algum risco. Por isso, tive uma ideia. É filha do medo, mas para o dissipar. O homem quer ser reabilitado e é o que vais fazer: levas o livro dele, dizendo que o publicas. Depois, largas a pistola e vais-te embora, que amanhã é outro dia”.
5.
Entre o medo diligente e o discernimento vazio, segui o conselho. Disse ao homem que não o matava, que arriscava a sua raiva, que talvez merecesse o seu desprezo e a sua revolta. Disse-lhe que deixava a pistola e que partia. Era altura de ser ele a decidir. Ele que fizesse de juiz!
Ele, nada!
Acrescentei a hipótese derradeira. Se ele assim o queria, eu tinha muito gosto em levar-lhe o livro de memórias e publicá-lo, fosse em seu nome ou no meu. Havia de servir ao seu renascimento.
Ele, nada!
Peguei no livro e larguei a arma.
Despi a camisola e iniciei o regresso.
O homem não disse nada e o homem nada fez.
Uns fios de luz refulgiam ténues no horizonte. Vinha aí um dia novo. Ai, juventude! Não sabia se chegaria à fortaleza, não sabia quantos pares de passos ainda daria em vida. Fui galgando a distância, a tentar esquecer o mínimo pensamento que se aproximasse. Em cada passo, só queria o seguinte.
Chegado à fortaleza, corri para o hotel, junto à marina. Não via nada. Precisava de descongelar num banho quente.
“Ouviste o tiro?”
Não queria saber. Deixei cair a água quente, a escaldar, arrastando o odor da desgraça, da noite inteira, da camisola do homem. Devo ter ficado debaixo da água mais de uma hora. O Sol já estava todo aberto e ouvia-se o ténue bulício de Novembro.
“Tenho a certeza que ouviste! O homem matou-se!”
E que diferença faz, meu medroso? Que o homem se tenha morto, tanto me dá. Sabes, nem vi homem nenhum. Esta noite demorei-me mais tempo no farol, mas só estive contigo.
“Desculpa, mas não te posso largar. Vai ver o que se passa, preciso de saber”.
Com os binóculos, saí à varanda. Junto ao farol as autoridades isolaram a área.
Ao meio-dia tinha de deixar o quarto. Na cidade havia de esquecer tudo. Resolvi não dormir e pus-me a fazer a mala.
6.
Eram onze e meia quando a polícia ligou. Que não me afastasse, vinham de imediato ouvir-me. As explicações ficavam para depois, mas tinha de ser eu a dá-las. Como descobriram o número? Há menos de cinco horas eu enviara uma mensagem para o telemóvel do homem que pensavam ter sido abatido. Dizia o quê? Deve poder confirmar: escapaste em 78, mas esta noite morres, Miguel. Confirmei e acrescentei á autoridade, É um engano. Disseram que depois se veria, que também tinham as impressões digitais no revólver. Mas eu tenho um livro, desculpei-me. O inspector terá achado que não devia estar bem da cabeça: um livro? Precisamos é do corpo, que não há meio de aparecer.
O medo nunca mais piou.
À pressa, abri o livro. Completamente em branco; apenas a meio guardava uma notícia amarelada de jornal: homem condenado a vinte e quatro anos por ter matado a noiva. O cadáver é que ainda não apareceu.
Até hoje.
Entre o medo diligente e o discernimento vazio, segui o conselho. Disse ao homem que não o matava, que arriscava a sua raiva, que talvez merecesse o seu desprezo e a sua revolta. Disse-lhe que deixava a pistola e que partia. Era altura de ser ele a decidir. Ele que fizesse de juiz!
Ele, nada!
Acrescentei a hipótese derradeira. Se ele assim o queria, eu tinha muito gosto em levar-lhe o livro de memórias e publicá-lo, fosse em seu nome ou no meu. Havia de servir ao seu renascimento.
Ele, nada!
Peguei no livro e larguei a arma.
Despi a camisola e iniciei o regresso.
O homem não disse nada e o homem nada fez.
Uns fios de luz refulgiam ténues no horizonte. Vinha aí um dia novo. Ai, juventude! Não sabia se chegaria à fortaleza, não sabia quantos pares de passos ainda daria em vida. Fui galgando a distância, a tentar esquecer o mínimo pensamento que se aproximasse. Em cada passo, só queria o seguinte.
Chegado à fortaleza, corri para o hotel, junto à marina. Não via nada. Precisava de descongelar num banho quente.
“Ouviste o tiro?”
Não queria saber. Deixei cair a água quente, a escaldar, arrastando o odor da desgraça, da noite inteira, da camisola do homem. Devo ter ficado debaixo da água mais de uma hora. O Sol já estava todo aberto e ouvia-se o ténue bulício de Novembro.
“Tenho a certeza que ouviste! O homem matou-se!”
E que diferença faz, meu medroso? Que o homem se tenha morto, tanto me dá. Sabes, nem vi homem nenhum. Esta noite demorei-me mais tempo no farol, mas só estive contigo.
“Desculpa, mas não te posso largar. Vai ver o que se passa, preciso de saber”.
Com os binóculos, saí à varanda. Junto ao farol as autoridades isolaram a área.
Ao meio-dia tinha de deixar o quarto. Na cidade havia de esquecer tudo. Resolvi não dormir e pus-me a fazer a mala.
6.
Eram onze e meia quando a polícia ligou. Que não me afastasse, vinham de imediato ouvir-me. As explicações ficavam para depois, mas tinha de ser eu a dá-las. Como descobriram o número? Há menos de cinco horas eu enviara uma mensagem para o telemóvel do homem que pensavam ter sido abatido. Dizia o quê? Deve poder confirmar: escapaste em 78, mas esta noite morres, Miguel. Confirmei e acrescentei á autoridade, É um engano. Disseram que depois se veria, que também tinham as impressões digitais no revólver. Mas eu tenho um livro, desculpei-me. O inspector terá achado que não devia estar bem da cabeça: um livro? Precisamos é do corpo, que não há meio de aparecer.
O medo nunca mais piou.
À pressa, abri o livro. Completamente em branco; apenas a meio guardava uma notícia amarelada de jornal: homem condenado a vinte e quatro anos por ter matado a noiva. O cadáver é que ainda não apareceu.
Até hoje.
José Eusébio Almeida, O lugar do vivo, A Fazer de Contos, Coimbra Editora
Ainda maior que o pensamento
Desde a infância que o teu olhar era em mim um glaciar desconcertante de luz.
E quando te vi pela primeira vez, trinta anos depois, quis recuperar por inteiro todas as memorias sonhadas por defeito.
Deslizaria nos teus lábios mais que dedos em marfim,
e no teu peito via nuvens de cristal onde antes só pensara Sol.
Juntei a eternidade no exíguo espaço por onde mãos tímidas aveludavam os fios de seara dos teus cabelos.
E quando voltei a respirar o mundo derrubou-se no meu gesto.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
I've been thinking...
The undefined moment of procrastination shows itself on those not so much wanted ocasions, when a guy gets more concerned about the shape of his handwriting and the sweet touch of the ink on plain paper rather than actually writing something meaningfull and defining.
By ViriatoFCastro :)Blogged with the Flock Browser
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