quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

4.

No instante seguinte, no preciso momento em que me apontava os olhos (grandes, escuros debruados a cal, olhos que apagados já ameaçavam) um salpico de espuma fez-se-me gota na face esquerda. Se tugi, foi silêncio.
- Eu não sou eu, ó juizinho!
“Conhece-te. Espera-te. Deve ser caso roto que queira remendar. Daqui a nada, afunda-te na água gelada e nem se te aproveita o sal”.
- A história é comprida, mas a noite, tal como a vida que imita, vai longa. Por isso, fica curta. Vou-te despachar o enredo. Vê esta ironia, juizinho: desta vez sou eu a despachar! É melhor tomarmos assento.
Patético: Sentaram-se um órgão de soberania, sozinho e frio; um António Maria, acompanhado de um medo nervoso e chato; um homem gigante, decerto louco, vingativo de certeza. Primeiro o medo, sempre sorrateiro; eu e o órgão de imediato, no mesmo gesto, e o homem a completar o quadro, depois de ter temperado o cenário com o eco kitsch de um com licença. ESTÁ LICENCIADO! É UMA PIADA… TINHA FICADO TÃO BEM EM CASA…
- Nasci Miguel, há muito ano, e foi como Miguel que cresci. Fui puto como os outros putos, andei no Liceu e percorri os corredores da Faculdade. Fiz-me médico, casei e tive uma filha linda. Se te dissesse o que ela faz! E, numa noite muito fria de Fevereiro, quase há trinta anos, morri. Uma hora depois, tornei à vida: mais ou menos da mesma idade, poucos centímetros mais baixo, Pedro de meu nome e ser. Desempregado e vagabundo.
“Podia ser pior! Ainda te vais safar: quando são mesmo loucos, só querem conversar. Pode ser que não seja violento!”
- Não é fácil completar o nosso corpo com outra pessoa. Mantinha os gestos do morto, sentia tal qual o morto e, é claro, não podia…
Queria perguntar-lhe de onde raio me conhecia e a propósito de quê; dizer que me confundia com qualquer outro. Que diabo queria de mim, afinal? Mas, apenas para avançar conversa, esperançado que o propósito do homem não fosse além disso, só questionei (numa vozinha trémula, a calcular palavras) porque é que não podia.
- Porque me matei. Estava completamente morto e, eu acho natural, as pessoas não consideram interessante um morto continuar vivo, mesmo que o faça no uso da vida doutro.
“Podias perguntar-lhe se é uma alegoria. Ele pode querer dizer que mudou de vida e tomou o exemplo de outra pessoa. Caso não se julgue um fantasma, bem entendido. Não ligues: pergunta-lhe se ele se habituou ao outro”.
- Mas não tinha outro remédio: agora era eu o Pedro. Vinte e nove anos, calceteiro vadio, nascido nos declives do Douro e perdido, há muitas luas, no esquecimento da cidade. Consumia as horas entre o tasco e a taberna, sorvendo aguardente de desperdício e inventando biscates anónimos, que não me comprometessem o horário. Colava cartazes de políticos e merceeiros, limpava jardins, poucos, e rapava umas sandes como se fossem jantar. O coração resolveu estancar-me os dias e, numa noite fria, acordei junto ao alpendre que me acoitava. Morto. Morto e frio. Andei em bolandas, à procura de pertença, mas não cheguei a passar a noite inteira na morgue: um médico jovem, tanto como a minha idade, um nada mais alto mas também bem-parecido, surgiu por ali, esbaforido e apoquentado. Já se acompanhava de alguma ideia torpe, mas primeiro contou os cadáveres, abriu os gavetões, olhou-me bem olhado, fez umas quantas medidas e preencheu uns documentos, tudo na luz baça duma gambiarra que não me atemorizava. Senti que lhe fazia falta, que finalmente, agora morto, a alguém dava préstimo. O médico vestiu-me a roupa dele (janota), puxando as calças bem acima. Partiu-me os dentes e forçou-me a engolir qualquer coisa ácida, além de me esfregar o corpo com álcool (as vezes que supliquei uma branquinha ao fundo da rua e o destino ensaboava-me com aquele éter escusado). Arranjadinhos, saímos os dois num Opel azul-escuro, com um cheiro pestilento a gasolina, e percorremos uns bons trinta quilómetros, sempre com atenção e cautela. Ao longo da jornada, o gajo deu-se a umas quantas justificações, mas muito confusas: que as mulheres são um inferno (já sabia); que o colega de neurologia era um grande cabrão (não conhecia); que só o não matava porque não tinha mais tempo (era com ele) e porque, no fundo, tinha sido a Teresa quem se lhe pôs a jeito, que foi ela quem lhe virou a cabeça (não entendi); só tinha ódio de si por deixar a filha entregue a um qualquer destino, mas não era viável outra solução (pronto!). Por fim, disse que me agradecia estar eu ali, à sua mercê, sem alguém a perguntar de mim; disse que eu era a sua salvação e era eu, afinal, quem ia ficar vivo no lugar dele (grande coisa!). Era bom que nos conhecêssemos melhor, ainda propôs, mas eu estava noutra e decidi-me ficar calado. Quando chegámos ao destino, prendeu-me ao volante e então percebi que na próxima volta seguia sozinho. Arranjou um declive enorme (bem, já o tinha que conhecer, mas para mim era a primeira vez), acrescentou mais um cheiro nauseabundo de gasolina e empurrou com quanta força lhe sobrava. O carro rolou, primeiro devagarinho, depois acelerado e, possuído de uma fúria trepidante, embicou-se pelo precipício. No segundo solavanco de encontro aos penedos, espatifado, acendeu-se o fogo de artifício e um clarão varreu a escarpa toda, até ao mar. Rolámos mais alguns cem metros, o resto de mim e a sobra do Opel e a braseira permaneceu muito tempo a clarear as rochas e a água. Pedro regressaria a pé. Não tem lume, pois não? Tenho certo que deixou de fumar, mas podia trazer qualquer coisa que acenda. É nobre despedirmo-nos com fogo.
(…)
- Como é óbvio, não regressei a casa e os meses seguintes treinei-me a ser o Pedro, reinventando quase tudo o que dele não sabia. Tinha dinheiro acautelado, mas era forçoso passar por vagabundo. A um vagabundo ninguém exige nada, deita-se a cara para o lado e segue-se em frente, a passo mais rápido. Tu, juizinho, se ainda queres ser um grande escritor, devias experimentar outras vidas; dava-te bom proveito experimentares a fome, dormires em qualquer merda de sítio, espreitares o branco de uma naifa perdida…
Fazia por não o olhar, como ao vagabundo, incrédulo a tudo. O estômago revirava-se-me, o som do mar aturdia as palavras do homem e não havia meio de me desprender. Se estava desgraçado, o que é que perdia em participar no enredo?
- Mas o tempo escasseia e preciso de acelerar o passado. O que ficar por dizer entrego ao teu cuidado (afinal, ainda há tantos que escrevem pior que tu…): lego-te o livro que guardo no saco e lá tens tudo encadeado. Na prisão, gastava os dias em leituras e rascunhos, e foram muitos anos…
“Pistola, prisão, muitos aninhos… tens a sina desenhada! Mas tem um livro para te dar! Curioso: tão louco que não se despede sem um recuerdo!” ESTAMOS COM UMA PIADA!…
- Dois dias depois, calculo eu, fizeram-me um funeral condigno, mais engalanado que o merecimento, tão discreto quanto um mísero resto de corpo exigia. Pensava que a Teresa estava impossibilitada de ir, salvo ao dela, e a pequenita devia estar a ser resguardada da desgraça. Durante mais de um ano fugi do Miguel morto e acomodei-me ao morto Pedro. Todo o tempo, digo-to com sinceridade, julguei a Teresa perfeitamente morta e, só preso, é que descobri o contrário. Primeiro só isso mesmo, que a minha mulher tinha sido reanimada, que um milagre estancara a hemorragia e, volvidas duas semanas, tinha tido alta sem a mais pequena sequela. Mais tarde, apercebi-me dela ter descoberto que me passava por outro (como conseguiu, ainda hoje não imagino acrescento-te). Logo aí dei conta da sua decisão de me castigar até sempre, deixando que só eu apercebesse a descoberta e não a revelando a mais ninguém, sequer à Maria.
O homem, afinal, tinha lume.
Fez uma pausa e iluminou um cigarro. Um pontinho incandescente imitava o farol e varria o escuro, desenhando-lhe os gestos. Não ofereceu.
- O Miguel matou-se, juiz, porque tinha morto a mulher. Num ataque de fúria, naquela noite de Fevereiro que aventurou partilhar com o diabo, depois de ter tido a absoluta certeza da humilhação que ela lhe desferira, na cama e no desprezo, com o neurologista que lhe ocupou o lugar na clínica. Simplificando: com o maior cabrão que habita a Terra. Eu estava louco. Pedi-lhe explicações, mas não as precisando nem as querendo ouvir. Esbofeteei-a, esmurrei-a, rasguei-lhe a roupa. Deixei-me de mim e, sem ser eu, lancei-a contra a mesa da cozinha como quem atira um desperdício. As costas dobraram como um livro deslombado, num som seco que rachava a coluna. No movimento, a cabeça lascou a quina do móvel e jorrou uma torrente de sangue. Acordei! A minha filha, ao fundo da porta, espreitava o inferno. Fugi! Corri como uma alma vendida, peguei no Opel e fui à morgue. Aproveitei um corpo desconhecido, em descanso fresco, e um registo incompleto. Foi fácil. Viajámos os dois até ao mar, mas deixei que fosse o Pedro, agora o doutor Miguel, a fazer sozinho o percurso derradeiro. Eu, Miguel, agora Pedro, voltei ao mundo dos que por vivos se passam.
“Estou a ver tudo, companheiro: matou a legítima esposa e fugiu, borrado de medo. Ou pensou que a matou, o que, ao medo, é perfeitamente indiferente. E de medo percebo eu! Mas se a mulher nada contou, porque havia de ser preso?! Talvez lhe falte inventar alguma coisa e o melhor (pior para ti, quem sabe?) ainda está para chegar…”.
- Cheguei a ir ao Douro, intencionado a adaptar-me ao novo enquadramento. Uma viagem de carreira que demorou dias, entre serras e rio. Afinal, como qualquer juiz sabe e sempre esquece, um homem é ele e as tais das suas circunstâncias. Lembro-me daquele teu romance - o primeiro, mas já com o disfarce ridículo de mulher - em que um bancário coleccionava selos com efígies de pessoas famosas e usa sempre uma gravata às bolinhas pequeninas; perde a memória, mas só parcialmente, e apenas deixa de se lembrar dos que lhe são próximos: os vizinhos que raramente via, passam a ser os seus mais chegados e os que só viu de relance, num encontro casual, numa esquina de rua, parecem ser os companheiros de trabalho, mas a família e os verdadeiros colegas ficam completamente desconhecidos. Eu estava igual: os conterrâneos da aldeia, os primos ou os irmãos – se os tivesse – eram-me completamente estranhos. Não serviu de nada a minha busca, fiquei ciente que ninguém deu por mim, não fiquei a saber quem era e nem a maior desgraça (que chegaria mais tarde mas logo ali podia ter acautelado), eu minimamente pressenti. O ROMANCE – SEI LÁ SE É ROMANCE! – NÃO É NADA DISSO. O HOMEM NÃO PERDERA A MEMÓRIA MAS SIMULAVA QUE NÃO TINHA LEMBRANÇA! BEM DIFERENTE! AGORA TAMBÉM PENSA QUE É CRÍTICO. OS LEITORES SÃO TÃO INGÉNUOS. E ESTE GAJO É MÉDICO, OU FOI … SEI LÁ EU O QUE É QUE FOI. OU O QUE ESTÁ PARA SER. OU O QUE ESTÁ PARA VIR… Vim da aldeia com a mesma escassez que lá me levara, sem coragem para mais esclarecimentos, quando notei que referir o nome dele era afugentar as conversas. Esqueci. Agora, ia inventar-me. Mudei de cidade e recomecei. Procurava biscates e ia aceitando a mínima coisa que pudesse fazer à noite, na cautela de qualquer importuna curiosidade. A sorte protegeu-me durante um ano e passei de jardineiro de uma viúva jovem a seu acólito de leito. Rica negociante de ouro em segunda mão, herdeira de um nome que a democracia apagara, enovelou-se nos meus comedidos conselhos e, volvido o tempo da desconfiança, entregou-se-me por inteiro. Era dada às melancolias, achacada de variados padecimentos. E eu, sorrateiramente e sem descuidos, fui-a cuidando com o saber antigo e o acrescento dumas mesinhas caseiras. A vida parecia bonificar-me, sem a tanto ter direito.
(…)
Lembro-me de cada gesto, dos seus e dos daqueles dois juízes carrancudos que davam ares de génio. Vejo o Procurador a inebriar-se com a vitória e, embalado nessa certeza, a advertir o Mundo que há duas espécies de seres humanos, os que o são e os que nunca o serão. Cuidando que descobrira o Santo Graal, talvez o volume segundo da Poética (não era sobre o riso, ó juizinho?) sorriu-me de escárnio e verbalizou que a minha colocação era ainda abaixo da segunda classe.
O homem parecia transfigurado. Dispensava-se de tomar fôlego e lançava:
- Sabes que, depois de tantos anos, não consigo compreender. Que pode haver de bom numa condenação? E tu, quer tão novo eras! Foram mais que bebedeira e loucura os teus propósitos mais lógicos, ó juizito? Sabes que não; sabes que nem representar sabias! Representaram-te. Nunca foste actor, mesmo se lhe vestias os gestos…
“Bernardo, esse compincha de medos enovelados”.
- É indissolúvel o algoz do vitimado e só o acaso gradua as oportunidades, mas deixando-as sempre na berma da opção acidental. Preferes uma pneumonia ou uma pleurisia?, aceitarás a espada, se fugires do cutelo? A vida deixou-te a mão em almofada, mas que grandeza lhe acrescentas? Tu e eu não somos diferentes, se só somos uma soma de subordinações, seja de um falso guia ou dos pesos rodeantes que sufocam o ar.
“Soares, na mesma. O homem avança além da loucura. Tudo se pode esperar…”
- A camisola? Ó homem, vista lá a camisola. Fica-lhe grande, mas não vai daqui a nenhuma passagem de modelos! Traga também o revólver!
“Agora que a história me disfarçava. Logo agora que parecia estares a ficar sozinho, filosofando de ouvido no enredo, talvez arriscando o sonho de seres digno de uma imaginação tão forte como a realidade! Volto para ti, António: se é para trazeres o revólver, traz Fica do teu lado.”
Olhei o homem. Olhei o homem e só um título, aí dos anos sessenta, setenta, se rasgou no traço que fazia de pensamento: o direito do mais forte à liberdade. Cinema alemão das controvérsias da Faculdade. Não dizem que, antes de partirmos, galgamos toda a memória de vida em meia dúzia de piscares de tempo? Ia às terças ao Avenida e, na noite sem limite, explicava facilmente como mudar o Mundo. Ainda me sobrava tempo para apertar a Magui (não são esses velhos que nos ensinam o que é a vida, miúda!). Com ou sem sexo, bebíamos champanhe todas as noites na cerveja choca dos escudos parcos e comíamos trufa de ostras nos negritos definhados do Arco. E não é que ao outro dia, logo à hora do almoço, víamos que a vida acordara de novo, e tão grande, mas mesmo tão grande, mesmo tão grande como na noite anterior? Tínhamos a certeza do infinito. Absoluta. Absolutamente.
Olhava o homem e teimava-me. Certeza. Absoluta. Absolutamente. Quando foi que, pela primeira vez, tiveste a angústia que não viverias para sempre, António?
- Só tem uma bala!
Quando foi, António Maria?
- Fica ao seu cuidado!
Ergui-me, indiferente.
Caminhei os três passos que alcançavam o saco, alheio.
Tirei a camisola e vesti-a, apático.
Tirei o revólver, impassível.
Olhando o homem, deixei-o na mão aberta, desleixado.
- Mesmo nesta penumbra, basta apontar-me e, finalmente, dissolve o tempo, a memória, o Pedro e o Miguel. Com um tiro singelo, este corpo esvai-se e leva dois homens que a vida não comprou. E liberta-se do trabalho que deixou a meio, desse descuido que hoje lhe recordo.
“E é capaz de ser o melhor, companheiro. Mas, lá ao fundo, ainda se ouve o tiro e não tens tempo de fugir. Acho que temos receio de seres apanhado e, como receio é um nome pomposo para as minhas advertências, aconselho-te cautela. Nunca farias isso? O caraças, Toninho! Se ninguém visse, claro! Então o homem agarra-te aqui à noite, e vem armado, e quer-se vingar por o teres condenado... Não é legítima defesa, o que vocês chamam?”
- Não aponta? Já sei, quer saber o porquê! Juiz escritor, é o mal! Curioso, perspicaz, não acaba o homem antes do fim da história. E agora, na posse do cutelo, arrisca a minha revolta para fazer o pleno: mata-me, mas exige que eu lhe revele o segredo, que eu lhe fundamente o acto. Muito bem, aceito. Antes de partirmos em paz, aceito dar-lhe a razão para a minha morte. O QUE É A MORTE? A DA SUA MÃE, OU A SUA OU A MINHA? VOCÊ SÓ VIU A SUA MÃE MORRER. EU VEJO-OS ESTOIRAR TODOS OS DIAS NA MATER E EM RICHMOND E COMO LHES ARRANCAM AS TRIPAS NA SALA DE DISSECAÇÃO. Mas imponho uma condição: antes telefona aos dois velhinhos que faziam de colectivo e diz-lhes, Tenho na minha mira um homem que condenámos a vinte e quatro anos por ter morto a namorada, mas ele não era ele, não tinha namorada e não chegou a matar ninguém; o homem quer morrer agora e obriga-me a executar a decisão; não tenho outro remédio, se não é ele a mata-me! NEM SEI O NOME DELES, QUANTO MAIS OS TELEFONES. UMA IDEIA… DAVA A MINHA VIDA POR UMA IDEIA. ISTO DE DAR A VIDA, POR QUALQUER COISA QUE SEJA, É CARICATO…
Antes de um gesto, sem uma palavra ou a ideia dela, antes mesmo de mudar o olhar, o homem prosseguiu:
- Talvez não saiba os números, mas não se preocupe. Dê-me o seu telemóvel que eu marco. E se aceita ouvir o resto, pode sentar-se. Mantenha é a arma bem apontada, não vá eu pensar alguma coisa tola.
Eu era um autómato ou apenas a intriga, o meandro? Calado, dei o telemóvel ao homem, enquanto o medo me dizia que, a ser para matar, era agora, mas me acrescentava que uma pistola sem silenciador era uma merda. O homem olhou o dele, a recordar, e foi marcando no meu. Daí a nada (qualquer ideia o fez mudar de ideias), disse-me que faria as chamadas depois de findo o enredo: os juízes velhos já estariam mais dormidos para prestarem outra atenção. Voltou a sentar-se e perguntou-me, assim mesmo, e porquê eu?!
- Pois também eu não deixaria de fazer essa pergunta. Não desfazendo, certamente para si, é a mãe de todas as perguntas. O juizinho do colectivo, unzinho numa condenação de três, porquê ele? Ainda pior: se eu era o Pedro, se eu confessei o crime, porque raio havia agora de estar zangado? Afinal, nenhum dos distintos juízes aldrabou a prova! Não é, juizinho? Não é bem: eu sei que você sabe e agora – que porra! – eu sei que você já sabe que eu sei que a história não está completa. A certeza tive-a depois, quando o seu livro se aproveitou de mim. Mas logo no julgamento, como mais tarde retrocedi com evidência, você dera-me a pista. Lembra-se como eu. Disfarçava o olhar naquela tapeçaria que vos enfeitava a cabeça, a tudo acenava que sim; nada, em minha defesa, tinha para acrescentar. O juiz do meio estava cheio de pressa e, de repente, como um raio atravessando a sala, você trovou, Mas não pode ser este homem. Se alguém prestasse crédito, cairia a comarca, evaporariam os autos, ressuscitaria o Miguel. Mas não, há coisas mais estranhas que a surpresa, descomunais em demasia para servirem à admiração. O outro juiz deve ter pensado que o senhor estava bêbado e, em menos de três segundos, o juizinho voltou a retirar a âncora. Imberbe, mimado, medroso da figura de parvo, esclareceu, Tolice, estava a pensar noutra coisa. Eu não podia dizer que não era eu, evidentemente. A vergonha da minha certeza era infinitamente maior que a do receio do seu erro. Desse para onde desse, eu tinha que ser o Pedro, não ia trocar de novo. Não era só o ridículo, ia levar com outro homicídio, roubo de cadáver, falsificação de documentos.
“Ora aqui temos uma razão para este convívio. Não achas que acabas comigo se lhe enfaixares um balázio? Bem sei que depois regresso, mas logo se vê, o que interessa é agora!”
- Quando soube que a Teresa estava viva (disse-mo numa carta irónica, lida na prisão) também já era tarde. Sem grandes explicações, perguntei à advogada se podíamos rever a sentença e ela disse que sim, mas demorava. Disse-lhe que andava a escrever um conto em que o condenado tinha sido julgado por um crime alheio, mas ele próprio tinha feito isto e aquilo. Nessa altura devia estar você a escrevê-lo, meu sacana! A advogada esclareceu que ofensas graves, falsificação de documento oficial, destruição e profanação de cadáver também não davam uma pena pequena. E ainda me disse (veja lá como vocês fazem as leis…) que nunca me descontariam a prisão que já pagara! Aguentei. Já tinha perdido a primeira vida, depois perdi os vinte e quatro anos da que nem era minha.
“Dispara essa merda!”
Disparei. Finalmente senti um esgar de liberdade. Afinal, que mais podia recear? A frase saiu num clarão de bafo que quebrava o gelo e deixava o mar silente. Perguntei-lhe que responsabilidade me podia assacar pelas suas decisões e onde imaginara que eu o tinha tomado pelo outro.
- Ora essa, juizinho. Com gosto o cito: da autoria de Antónia M. Coimbra, o lugar do vivo. E o homem, de repente, sentia que não era seu o corpo que respondia àqueles juízes. Mas de que lhe serviria voltar ao que fora? Escondeu a vergonha da troca, apagando o ressuscitado e conformando-se com o desenlace: no fundo, sempre é um acaso o corpo que nos calha! SEI LÁ EU SE, NOS FUNDILHOS DA LEMBRANÇA, SOBROU ALGUMA IMAGINAÇÃO DESSE JULGAMENTO OU DE OUTRO QUALQUER. TUDO O QUE FAZEMOS É A NOSSA HISTÓRIA, NÃO HÁ OUTRO REMÉDIO. AGORA, O JULGAMENTO DO PEDRO SER CAUSA DIRECTA DO LUGAR DO VIVO, ISSO NÃO. QUANDO ESCREVEMOS, É A HISTÓRIA QUE NOS LEVA, NUNCA CONTRÁRIO. Eu não tinha grandes dúvidas, apenas certifiquei a certeza. Mas não me doeu, além dessa certeza, que me tenha usado para os devaneios literários, o que doeu foi a indiferença, o que doeu foi a falta de resposta a esta pergunta: quanto vale um homem se qualquer um vale o mesmo? Não é isso. O que quero dizer é, Que vale um homem se qualquer um tanto vale? Naquela sala, só a tua sagacidade me podia salvar e tu tiveste vergonha da dúvida. Como só a dúvida liberta, eu foi condenado. Quem salva um homem, salva o Mundo inteiro, dizia o Shindler. Quem não salva, mata. Foste tu quem fugiu! Quem, temeroso da incerteza que libertava, se agachou no descanso da certeza. E nem no livro – repara: e nem no livro – tu reabilitaste o homem. Tinha-lo morto e temeste ressuscitá-lo. Enfim, só te resta acabar o serviço.
“Não tens outro remédio!”
Qualquer jurista ridicularizaria uma causalidade tão medíocre. Um dia destes, caímos no descuido de imaginar a borboleta da China e somos responsáveis pela morte do cidadão que foi atingido por uma faísca na Bobadela! Fora eu pensar que uma dúvida atiraria um morto, criminoso confesso, para a cadeia e que uma literatura qualquer o ia manter tão morto como vivo. Essa não! Mas valeria pena dar-lhe explicações de causas virtuais, de crimes impossíveis?
“Não. Não valia a pena, nem tu és grande especialista da matéria. Aliás, passas os dias a inventar estranhezas semelhantes para as tuas histórias. Já vi que não lhe queres estoirar os miolos e, como sempre, estou solidário. De facto, envolve algum risco. Por isso, tive uma ideia. É filha do medo, mas para o dissipar. O homem quer ser reabilitado e é o que vais fazer: levas o livro dele, dizendo que o publicas. Depois, largas a pistola e vais-te embora, que amanhã é outro dia”.