quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

5.

Entre o medo diligente e o discernimento vazio, segui o conselho. Disse ao homem que não o matava, que arriscava a sua raiva, que talvez merecesse o seu desprezo e a sua revolta. Disse-lhe que deixava a pistola e que partia. Era altura de ser ele a decidir. Ele que fizesse de juiz!
Ele, nada!
Acrescentei a hipótese derradeira. Se ele assim o queria, eu tinha muito gosto em levar-lhe o livro de memórias e publicá-lo, fosse em seu nome ou no meu. Havia de servir ao seu renascimento.
Ele, nada!
Peguei no livro e larguei a arma.
Despi a camisola e iniciei o regresso.
O homem não disse nada e o homem nada fez.
Uns fios de luz refulgiam ténues no horizonte. Vinha aí um dia novo. Ai, juventude! Não sabia se chegaria à fortaleza, não sabia quantos pares de passos ainda daria em vida. Fui galgando a distância, a tentar esquecer o mínimo pensamento que se aproximasse. Em cada passo, só queria o seguinte.
Chegado à fortaleza, corri para o hotel, junto à marina. Não via nada. Precisava de descongelar num banho quente.
“Ouviste o tiro?”
Não queria saber. Deixei cair a água quente, a escaldar, arrastando o odor da desgraça, da noite inteira, da camisola do homem. Devo ter ficado debaixo da água mais de uma hora. O Sol já estava todo aberto e ouvia-se o ténue bulício de Novembro.
“Tenho a certeza que ouviste! O homem matou-se!”
E que diferença faz, meu medroso? Que o homem se tenha morto, tanto me dá. Sabes, nem vi homem nenhum. Esta noite demorei-me mais tempo no farol, mas só estive contigo.
“Desculpa, mas não te posso largar. Vai ver o que se passa, preciso de saber”.
Com os binóculos, saí à varanda. Junto ao farol as autoridades isolaram a área.
Ao meio-dia tinha de deixar o quarto. Na cidade havia de esquecer tudo. Resolvi não dormir e pus-me a fazer a mala.



6.

Eram onze e meia quando a polícia ligou. Que não me afastasse, vinham de imediato ouvir-me. As explicações ficavam para depois, mas tinha de ser eu a dá-las. Como descobriram o número? Há menos de cinco horas eu enviara uma mensagem para o telemóvel do homem que pensavam ter sido abatido. Dizia o quê? Deve poder confirmar: escapaste em 78, mas esta noite morres, Miguel. Confirmei e acrescentei á autoridade, É um engano. Disseram que depois se veria, que também tinham as impressões digitais no revólver. Mas eu tenho um livro, desculpei-me. O inspector terá achado que não devia estar bem da cabeça: um livro? Precisamos é do corpo, que não há meio de aparecer.
O medo nunca mais piou.
À pressa, abri o livro. Completamente em branco; apenas a meio guardava uma notícia amarelada de jornal: homem condenado a vinte e quatro anos por ter matado a noiva. O cadáver é que ainda não apareceu.

Até hoje.

José Eusébio Almeida, O lugar do vivo, A Fazer de Contos, Coimbra Editora

3 comentários:

Marketing disse...

A isto se chama: Auto promoção.

Unknown disse...

+ ou -

AugustoMaio disse...

Sem embargo (do marketing) os proventos - fica-se a saber - são para instituição alheia e beneficiente.