quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ideário para a criação

Um poema deslumbrante, de um Mestre inesquecível, Jorge de Sena, agora em antologia (edição de Jorge Fazendo Lourenço - Guimarães - babel)

Quando, em ti próprio, ouvires algum combate
do sonho em luta com a sua própria alma
e o mundo te parecer maior que a vida
e a vida te parecer a velha estrada
onde só tu não perseguiste o sonho,
defende, de ambos, o que for vencido.

Quando, à tua beira, houver um perseguido
e o escárneo se abater sobre o que ele pensa
e o mundo inteiro o perseguir mentindo
uma mentira maior que a dessa ideia,
defende-a como tua antes que o mundo
esmague em si próprio a chama em que se ateia.

Quando, como hoje, os crimes forem tantos
que as praias sequem no desdém das ondas,
e o melhor homem for um criminoso
voltando ansioso ao local do crime,
e o sangue nem lhe suje a ansiedade
porque não há mais sangue que ciências loucas,
grita aos ventos da morte que os traíram -
e na terra se ouça que a verdade é falsa
e só eram verdade os que partiram.

Penafiel, 29/8/1942

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Uma (Des)Ordem de Ideias

Hoje notei uma coisa curiosa (ou talvez não, dada a frequência com que acontece): o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, em declarações a um telejornal da hora do almoço, disse que aplaudia a decisão do Governo em retirar do Orçamento de Estado aquela norma sobre a obrigatoriedade de concessão de uma bolsa aos Estagiários; tendo dito ainda que tal proposta nunca teria feito sentido nenhum, na certeza de que os Advogados Estagiários - além de tudo aquilo que já soube, no passado, verborrear acerca deles - é que gastam tempo e recursos dos Escritórios dos Patronos.

Ora, tem azar o Senhor Bastonário - recandidato ao lugar - pelo facto de a minha memória - que também uso enquanto seu eleitor - ser quase fotográfica. Na verdade, foi precisamente na semana passada - mas já no período da noite, a seguir ao jantar - que o Exmo. Senhor Bastonário - recandidato ao lugar -, no programa “Prós e Contras”, defendeu EXACTAMENTE O CONTRÁRIO!

Quando criticado pelos outros dois Candidatos, com especial destaque para o que disse o Dr. Luís Filipe Carvalho, acerca do facto de a Ordem dos Advogados nada ter feito para ser ouvida sobre tal matéria encapotadamente contida na Lei do Orçamento, o Exmo. Senhor Bastonário - recandidato ao lugar - soube dizer que aquele não seria o momento certo para o fazer, na certeza de que o que ali estaria era uma autorização legislativa ao governo para regular tal matéria.

E disse ainda mais: que a lei ou decreto-lei a surgir assim contaria com o contributo da Ordem dos Advogados, na eventual fase de discussão pública, e que poderia vir a tornar-se uma boa lei. E porquê? Porque o Exmo. Senhor Bastonário, recandidato ao lugar, soube dizer - no seu jeito de denúncia pública, quanto a mim, inconsequente - que existia nos tais “grandes escritórios” trabalho quase escravo dos Colegas não-sócios.

Ora, é certo que poderia sempre o Exmo. Senhor Bastonário, recandidato ao lugar - caso eu merecesse alguma importância para ele, enquanto eleitor (sendo certo que só sabe é encher-me a caixa de correio electrónico com panfletos e artigos cheios de ideias, quanto a mim, avulsas e sem exequibilidade ou visão de futuro) - contrapôr-me que, no tal debate televisivo, ele quis, lá está, apenas focar o caso de Colegas Associados, já Advogados e, não - porque o alarme traumático começa a soar - aqueloutro dos Colegas Estagiários.

Contudo, o normativo objecto da discussão diz respeito, segundo o que se leu, precisamente, aos Advogados Estagiários, não sendo claro que consagre também a hipótese de os Advogados associados de Escritórios ou Sociedades, poderem vir a ser contemplados com a tal bolsa remuneratória.

Ou seja, no meio de tudo isto, a mim, só me resta uma pergunta: até quando, Senhor Bastonário, recandidato ao lugar, vai querer lançar a desordem de ideias e de argumentos, pretendendo esconder na bruma de remissões literais complexas apenas uma única verdade: o seu total desnorte programático?

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Ensaio



«Na candura dos teus desejos,
Tomei a chuva por minha amante.
Dizias-me que, mesmo de mim distante,
Tu nela estarias...


Em cada pingo,
Em cada beijo.

Mas, procurando agora teu molhado peito,
De ti nada vejo,
Nem sombra, nem ensejo.

Por onde andas?
Por onde repousas?

Sem resposta, nem vestígio,
Apenas resta a memória
Do teu toque; um esquiço.»

Alexandre Villas-Diogo, Ensaio, «Lírica de Inverno»

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Nam simul cum cathedra creavit Deus tabulam quamdam ad sribendum, que tantum grossa erat quantum posset homo ire in mille annis. Et erat tabula illa de perla albissima et extremitas eius undique de rubino el locus medius de smaragdo. Scriptum verum in ea existens totum erat purissime claritatis. Respiciebat namque Deus in tabulam illam centum vicibus die quolibet et quantiscumque repiciebat vicibus, construebat et destruebat, creabat et occidebat… Creavit namque Deus cum predicta tabula pennam quamdam claritatis ad scibendum, que habebat in se longitudinis quantum posset homo ire in VC annis et tantumdem ex latitudine quidem sua. Et ea creata, precebit sibi Deus ut scriberet. Penna vero dixit: “Quid scribam”? At ille respondens: “Tu scribes sapienciam meam et creaturas omnes meas a principio mundi usque ad finem” - Liber scale Machometi, cap. xx.

(tal como criou seu trono, Deus criou uma mesa para escrever tão vasta que um homem podia caminhar nela mil anos. A mesa era feita de pérolas branquíssimas, as suas extremidades de rubis eo centro de esmeralda. Tudo o que nela escrevia era da mais pura claridade. Deus olhava para a mesa centos de vezes por dia e, de cada vez que a olhava, construía e destruía, criava e matava… tal como criou a mesa, Deus criou uma pena de luz para escrever, tão larga e longa que um homem a poderia percorrer em largura ou comprimento quinhentos anos. E, esta criada, deus ordenou-lhe que escrevesse. Disse a pena: “Que escrevo?”. A ela respondeu: “Escreverás a minha sabedoria e todas as minhas criaturas, desde o princípio do mundo até ao seu fim.” – O Livro da Escada de Maomé, cap. xx).

(in Giorgio Agamben, Bartleby Escrita da Potência, Assírio & Alvim)

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

simples, o mar

amo o simples, como a água
desleixada na corrente; não sente
mágoa nem amargura; e de repente
sorri ser mar, fórmula
de planura com que os olhos se cansam
simplesmente.

15112010

vento, vazio vento

o vento regressa vazio
sem o aroma a notícias da tua ida
e eu encosto-me às rochas
a repousar o desalento

não brilha a neve, aqui
nos mares do sul, e
a luz revolta-se em desinterese;
já só a noite anuncia a noite.

15112010

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

E quando a chuva cai, vai-se a memória

Lá fora a chuva chora pingos suados
e tal como a mão dedilha no baço da vidraça
escrevo no vento as sílabas do teu nome
(a primeira é mar, espuma de desejo)
e os plátanos vestem de branco folhas
de lenços de dizer saudade.

Há um concerto de glórias roucas
quando m'aperto ao mundo
a reviver o teu adeus;
e o vento regressará
em nome do nome que te lembro.