Que terá sonhado o tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice? Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso. Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria. Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas. Sonhou os gregos que descobriram o diálogo e a dúvida. Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal. Sonhou a palavra, esse grosseiro e rígido símbolo. Sonhou a sorte que tivemos ou que agora sonhamos ter tido. Sonhou a primeira manhã de Ur. Sonhou o misterioso amor da bússula. Sonhou a proa do norueguês e a proa do português. Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, aquele que morreu uma tarde numa cruz. Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates. Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho. Sonhou o espelho em que Francisco López Merino e a sua imagem se viram pela última vez. Sonhou o espaço. Sonhou a música, que pode prescindir do espaço. Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável do que a música, porque inclui a música. Sonhou uma quarta dimensão e a forma singular que a habita. Sonhou o número da areia. Sonhou os números transfinitos, a que não se chega contando. Sonhou o primeiro que no trono ouviu o nome de Thor. Sonhou os opostos rostos de Jano, que não se verão nunca. Sonhou a lua e os dois homens que caminharam sobre a lua. Sonhou o poço e o pêndulo. Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinoza. Sonhou o jasmim, que não pode saber que o sonham. Sonhou as gerações de formigas e as gerações de reis. Sonhou a vasta teia que tecem todas as raanhas do mundo. Sonhou o arado e o martelo, o carangueijo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrêz. Sonhou a enumeração a que os tratadistas chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos. Sonhou a minha avó Frances Haslam na guarnição de Junín, a um passo das lanças do deserto, lendo a sua Bíblia e o seu Dickens. Sonhou que nas batalhas os tártaros cantavam. Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que depressa será uma onda. Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet. Sonhou os arquétipos. Sonhou que ao longo dos verões, ou num céu anterior aos verões, há uma única rosa. Sonhou o rosto dos teus mortos, que agora são esmaecidas fotografias. Sonhou a primeira manhã de Uxmal. Sonhou o acto da sombra. Sonhou as cem portas de Tebas. Sonhou os passos do labirinto. Sonhou o número secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha. Sonhou a vida dos espelhos. Sonhou os signos que o escriba sentado traçara. Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas. Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança. Sonhou o deserto. Sonhou a madrugada que espreita. Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes de água. Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido. Sonhou Alexandre da Macedónia. Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre. Sonhou o mar e a lágrima. Sonhou o cristal. Sonhou que Alguém o sonha.
hhhhhhhhhhhh
Jorge Luis Borges, Os conjurados, Difel
2 comentários:
Muito bem encontrado!
Será que Alguém sonha! Ou nós sonhamos que sonha?
Sonhar é característica de ser humano. Quem não sonha vegeta.
Enviar um comentário