quarta-feira, 22 de junho de 2011

multidão

Em cada olhar
há um folclore de gestos
antigos como memórias cinzentas
parados em dúvidas
de encruzilhadas d'esperas
como se uma bucólica respiração
fosse o princípio e o fim
o desarrumado rumo
dum acto inquieto.



Maior dia do ano a nascer...
O nascer do maior dia do ano

terça-feira, 21 de junho de 2011

Momentos #4

#4
O sorriso irrequieto e rasgado da rapariga ia aumentando à medida que João se aproximava; e também aqueles olhos castanhos, enormes, cada vez mais curiosos e divertidos com uma abordagem que, assim se via, era por demais evidente. A discrição, o «não dar barraca» pareciam ter sido, naquele momento, catalogados por João como vetustos e anacrónicos cânones.
«Olá, boa noite» - cumprimentou João.
«Olá» - disse, simplesmente, a miúda, ao mesmo tempo que mordiscava a palhinha por onde sorvia a sua bebida, incolor à vista, depositada no copo alto de plástico.
Será uma miúda de vodka, perguntava João a si mesmo. «Bela obra esta, não achas», inquiriu ele, pretendendo manter as suas intenções ocultas; quais em concreto, também ele não sabia muito bem... mas... seria mesmo ela a modelo da fotografia?
«É... acho que sim... Não percebo muito disto», respondeu-lhe a rapariga, desinteressadamente, enquanto desviava o olhar de João, contemplando, em profundidade e perspectiva, o resto da sala que se ia movendo ao som da house music e de conversas de circunstância entre os convidados.
A resposta dada provocou em João algum desalento. Se realmente ela é assim tão leiga nisto, não pode ser modelo, pensou; as modelos conviviam com os profissionais, iam aprendendo alguma coisa; quanto mais não fosse, alguns jargões decorados, por forma a manterem conversas que as deixassem bem vistas junto a grupos de pseudo-intelectuais com algum dinheiro para gastar em arte, ou, quando o não tinham, com tempo suficiente para escrever críticas que só eram lidas por pessoas parecidas.
Mesmo assim, João voltou à carga: «Mas, então, nesse caso, o que te traz a uma exposição de fotografia?»
A rapariga esboçou mais um daqueles rasgados sorrisos, demasiado parecido com o do retrato que pairava junto deles, naquele parede; «isso agora...», respondeu naquela voz rouca que começava a provocar bastante mais do que apenas um qualquer encanto puramente platónico.
E tais pulsões, João sabia-o bem, punham-no imediatamente na defensiva, numa postura em que a timidez voltava a denunciar-se e a falta de jeito era sinónimo de nó na garganta, boca seca e, por vezes, faces coradas.
E a miúda a divertir-se com isso, notou João, ficando cada vez mais nervoso.
Levando à boca o seu próprio copo, aproveitou para, pausadamente, decidir o que dizer em seguida. «Isso agora, não. Podemos conferir a guest list em conjunto, se quiseres» - porra! Já me lixei, pensou João, em pânico. No meio da vontade em dar uma resposta divertida àquela sugestão da rapariga, algo tinha ficado pelo caminho, sendo certo que o resultado final tinha sido desastroso, num tom de agressividade despropositada. «Como eu sou idiota, pá!», exclamou no seu interior.
Contudo, por incrível que pudesse parecer, a jovem mostrou-se ainda mais divertida... E de repente disse: «Então é a ti que tenho de agradecer pelas bebidas à borla? Parabéns, tens aqui uma bela festa. Aquela a que fui há duas semanas não foi tão boa».
«Deixa-me adivinhar», interrompeu João, «és uma penetra de festas!». O seu sorriso amarelo, após se ouvir a si próprio, não deixava entrever a sua verdadeira frustração. Sim senhor, João, tu hoje estás lançado, miúdo; cada tiro, cada melro.
A conversa, com tais atoardas, iria acabar logo ali.
Mas, uma vez mais, a rapariga não desarmou e retorquiu a rir-se: «Nem por isso, não... Digamos que tenho os meus conhecimentos».
Seria namorada de alguns dos convidados? João não queria contemplar tal hipótese. Ela era enigmática, sedutora demais, para que a noite acabasse abruptamente, no preciso instante em que algum sujeito bem vestido, idiota e pedante, lhe pusesse um braço à volta da cintura e dissesse «lá estás tu a falar com estranhos outra vez... vamos para casa que já é tarde?», virando costas com um piscar de olho de "chico-esperto".
João gostava de se deixar envolver na teia da sedução, do limiar de possibilidade de um sonho apaixonado mas, bastas vezes, vinha-lhe esse travo amargo da realidade. É natural que uma miúda destas namore, ou, até mesmo, seja já casada, pensava.
«Bem... vou andando...». Ao ouvi-la, João abandonou as suas lucubrações e uma sensação de pânico invadiu-lhe os sentidos.
«Não vás já!», disse de repente, «fica mais um bocado». A entoação dada roçava já a súplica mal disfarçada, apercebeu-se, envergonhado do seu declarado desespero.
«Não. Não pode ser. Estava a pensar em ir beber um copo ali mais abaixo e está a ficar tarde», respondeu a jovem, deixando transparecer alguma impaciência com as insistências de João.
«Então vamos os dois» - sugeriu ele.
Ela riu-se com tal sugestão, perguntando de seguida: «Mas o que te faz pensar que quero ir contigo». João sentiu o impacto de um soco invisível, mas certeiro, mesmo no centro do seu estômago.
Contudo, não se deu por achado: «Vieste à minha galeria. Estivemos este tempo todo a conversar; livraste-me de alguns convidados que são uma verdadeira seca. Deixa-me retribuir, pagando-te um copo no bar, ali, no fundo da rua. É para lá que vais, não é?»
Durante alguns segundos, pareceu-lhe que ela ponderava tal insólito convite, num puro esquema de «deve e haver». Por fim, disse: «Bem... Se é mesmo para irmos, preciso de saber o teu nome. Não costumo deixar que estranhos me paguem copos. Eu chamo-me Luísa... e tu?».
«Ah... Eu sou o João... muito prazer», respondeu, rindo-se nervosamente. «Vamos então?».
«Hmmmm... João... Certo... Vamos lá», o olhar divertido de Luísa tinha assumido agora certos e determinados traços que João ainda não conseguia decifrar.
Da outra ponta da galeria, Mané, que falava com o empresário de Jacinto Lopes, notou que João se dirigia para a saída. Este tipo é sempre a mesma coisa, pensou.
Desculpando-se ao sujeito que lhe contava animadamente algumas supostas peripécias da sua vida de empresário de artistas - contando na sua carteira com aquela banda punk que tinha roubado a bateria ao grupo de baile da aldeia -, Mané dirigiu-se para a porta. Tendo agarrado discretamente João por um braço, disse-lhe em sussurro: «É sempre isto, pá. Fico eu aqui a segurar o forte, não é? Enquanto o menino se diverte com os seus engates. João, não te esqueças que eu estou para me ir embora e...».
João interrompeu-o: «Mané, não é nada disso. Desta vez, o interesse é puramente profissional».
«Profissional, hein? Mas pensas que estás a enganar quem, pá?» - Mané começava a perder a paciência; «o único interesse que devias ter é no sucesso deste lançamento e não em marcar pontos com essa miúda... É gira e tudo isso, mas tu tens responsabilidades, pá. E eu não vou cá estar mais para te lembrar delas».
Luísa estava já do lado de fora da galeria, no passeio da rua, falando ao telemóvel. Tinha um certo ar carregado, notou João intrigado. «Mané, eu sei que não vou poder pedir-te mais nada na vida. Por isso, dá-me uma folga hoje. Quero tirar uma teima com que ando desde o início da noite... Melhor, desde o início da semana».
«Tu já andaste foi no scotch, não foi, João?» - perguntou Mané, naquele jeito de quem já se conformava com tais hábitos do sócio.
«Não é nada disso, pá!» - exclamou João, vendo Luísa a olhar para o relógio, enquanto esperava por ele, o telemóvel já na mochila. «Repara bem na fotografia que está naquele canto... Esta miúda é a tal modelo! Tenho a certeza!».
«Mas o que é que isso interessa???» - por vezes, Mané ficava farto das obsessões infantis de João.
«Manuel, por favor, deixa-me ir! Amanhã falamos».
Olhando para João, Mané sabia que não havia mais nada a fazer. «Vai, pá... Sempre a mesma merda!». Este tipo vai ter de aprender por ele próprio, pensou, por fim.
João saltou para a rua e foi ter com Luísa. «Problemas?», perguntou ela, reticente.
«Nada disso... Coisas do meu sócio» - atalhou João.
Desceram a rua num estranho silêncio absoluto. Como se tudo o que tinham para dizer um ao outro já tivesse sido dito, restando apenas algo do género de «Está uma noite quente, não está?». Contudo, João não via grande utilidade em falar sobre o tempo, pelo que nem abriu a boca.
Ao entrar no bar, o som do jazz dava o mote a uma certa quietude acolhedora. Escolheram uma mesa junto à cabine do DJ, de um formato curioso, com a frente de um qualquer Cadilac cromado em tons de rosa, a sair da parede e escondendo no avançado que assim criava, a banca com os gira-discos, os leitores de CD's e os misturadores de som.
À chegada do empregado à mesa de ambos, João perguntou a Luísa: «Que te apetece beber?».
«Vodka tónico» - respondeu ela, olhando seriamente para o empregado. Afinal, sempre és menina do vodka, pensou João... «Sejam dois, então, por favor», disse ele ao sorridente empregado que parecia querer adivinhar, em jeito de quem achava já saber tudo, o propósito daquele casal recém-chegado. João não suportava tais hábitos, e, para não se irritar, desviou o olhar, para Luísa.
«Então, conta-me... Como é que deste com a nossa exposição?», perguntou, enquanto acendia um cigarro e as bebidas eram servidas.
Luísa deu um gole demorado na sua bebida, parecendo deixar-se levar pelo fresco travo agridoce da combinação; o limão, o gelo e a água tónica borbulhante eram a verdadeira essência e camuflagem daquele prazer culpado; daquele desejo de alguém se perder na ilusão etílica dos sentidos.
Mordendo ao de leve aqueles seus lábios carnudos, naturalmente vermelhos, perguntou em tom de desafio: «Diz-me, João, que te interessa isso ao certo?»
«Como já te dei a entender, podia pensar num milhão de razões, enquanto dono da galeria e autor da guest list... Mas o que eu realmente acho é que tu estiveste ali na exposição, hoje, a convite do Jacinto - eu cedi-lhe algumas entradas para os seus próprios convidados; tu és a modelo do #Semblante»
Luísa sorriu ao de leve e disse: «Pois... talvez até seja... mas é só disso que queres falar? Foi só mesmo por causa disso que vieste comigo até aqui?»
Apetecia-lhe insistir até ter a certeza de que Luísa era, realmente, a modelo daquele retrato que tanto o intrigava e fascinava. Contudo, apenas disse: «Conta-me mais sobre ti, Luísa».
«Que interesse podes ter tu em mim, na minha vida?». Luísa não desarmava, naquele seu sorriso inquieto.
No entanto, naquele preciso momento, os olhares de ambos cruzaram-se, por instantes; e algo se passou. Num fragmento de segundo, pareceu a João que nada mais importava saber; que Luísa já lhe tinha contado tudo. A nitidez com que conseguia olhar para o fundo da sua alma, contrastava com aqueles grandes olhos castanhos que lhe tinham captado a atenção desde o primeiro momento.
Luísa parecia sentir o mesmo, pensar o mesmo...
Sem se aperceberem, os dedos das suas mãos direitas tocaram-se ao de leve, sobre o vidro da mesa, onde repousavam as suas bebidas; as bolhinhas de gás da água tónica subindo, a marcar um tempo que, de facto, a esta altura, era bastante acelerado.
Da entrada do bar, cuja porta se encontrava totalmente aberta, vinha uma brisa fria, o anúncio de uma madrugada prenhe de possibilidades.
Luísa aproximou-se suavemente de João; os lábios de ambos tocando-se, prenunciando o resto de um beijo demorado, suave e macio. O hálito de Luísa era doce e, ao mesmo tempo, quente.
«Uma foto não te consegue beijar assim, pois não?» - murmurou Luísa, afastando-se milímetros da cara incrédula de João.
Totalmente desarmado, João estava sem palavras. O coração batia-lhe descompassado e sentia que, a qualquer momento, se engasgaria, com falta de ar.
Se dúvidas ainda lhe pudessem pairar no espírito, as mesmas tinham-se dissipado naquele instante. Ele era agora prisioneiro de Luísa;
Que tinha retomado a sua pose enigmática e aquele olhar de menina irrequieta; como se inconsciente do que tinha acabado de fazer...


Alexandre Villas-Diogo, Momentos

domingo, 19 de junho de 2011

voyeur

a noite percorre gritos de euforia
dilata-se na estrada, como uma enchente
e chega, deste lado, a um olhar invejoso
que se distrai duma televisão em silêncios
e repara, com toda a imaginação disponível;
julgando ver dois corpos em modo de um
no escoar da luz preguiçosa duma lua indiscreta.

Um sonho do(s) mestre (s)

Na noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia.(...) Fernando tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler. Naquele dia tinha de ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certa altura a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. (...)
À porta da casa estava uma velhota com óculos e uma touca branca. Pessoa percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e ergueu-se em bicos dos pés, beijando-a na face.
Não me canse muito o meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa das poltronas e tinha a cabeça inclinada para trás. era o Headmaster Nicholas, o seu professor da High School.
Não sabia que o caeiro era o senhor, disse Fernando Pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade (...)

ANTONIO TABUCCHI, Sonhos de Sonhos, Quetzal, 3.ª ed., 1998

sábado, 4 de junho de 2011

Arte poética

Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.

Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.

E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

MANUEL ANTÓNIO PINA, Prémio Camões
Poesia, saudade da prosa,
antologia pessoal, Assírio&Alvim

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Histórias da Água de Castello

Não te vás de mim e deixa-te ficar. 
Vem comigo aproveitar esta noite perfumada com aroma de pinheiro; junto às ribeirinhas margens iluminadas por candeeiros de tempos mais inocentes. Deixa que esta estação te marque o compasso, não pensando no que está para trás. O tempo não dá tréguas e na tua mão apenas o valete de copas te garante algum ganho. Procura a melodia e não te importes com a letra, pois a verdade das coisas encontra-se mais nos sentidos no que numa qualquer razão de médias ponderadas.
E tudo isto te digo porque, de certo modo sei que estar onde estou sem ti não faz qualquer sentido. E se assim é, fácil se torna de ver a razão pela qual o que escrevo também não faz sentido algum. O ímpeto da saudade apenas me diz para deixar a pena cibernética vogar ao sabor da brisa fresca com cheiro a cerejas. Não chego ou paro em sitio nenhum porque realmente nem cheguei a sair de onde me encontro. E deste modo, logo noto que já só falta um quarto para as onze…