terça-feira, 20 de abril de 2010

Momentos

"#3
Ao entrar, João quase não reconhecia o espaço... Era sempre assim nas noites das festas de lançamento de uma nova exposição. Pop dos tops, as luzes cibernéticas - porque as psicadélicas eram coisa do passado -, um oceano de «gente gira», segurando nos copos que iam saindo do bar improvisado junto à cabine do DJ... Todos os que ali se encontravam tinham sido convidados para contemplar o trabalho fotográfico de Jacinto Lopes.
Contudo, a impressão que João tinha era que as únicas fotografias a render alguma coisa esta noite, tal como nas outras todas, eram aquelas que cada conviva decidia tirar com o seu telemóvel... Com os amigos, sorrindo, fazendo alguma cara idiota para «postar» no livro-das-caras - nos tempos que corriam qualquer um tinha direito à sua própria revista social. E ainda bem que assim era, talvez - pensava João. Avesso a um certo estilo snob, com rótulos de «reservado a pessoas que apenas alguns de nós consideram importantes e porque sim» e «pessoas famosas» (nunca percebendo muito bem a partir de que altura se podia considerar alguém famoso, implicando a fama algo de realmente importante para a sociedade), avesso a tudo isso, João raramente emitia passes de imprensa para repórteres que insistiam em fazer carreira, vendo tudo a «cor-de-rosa».
Ao avistar Mané ao longe, à conversa num canto da galeria, com um sujeito, alto, moreno, vestido com um fato preto às riscas brancas, encaminhou-se para o local, deduzindo logo tratar-se do tal JL.
«João, pá, ainda bem que chegaste» - disse Mané, num tom excessivamente jovial mas compreensível pelo copo que ele tinha na mão. Com toda a certeza, o que Mané bebia não era apenas sumo de laranja. «O nosso novo cliente, Jacinto Lopes».
«Muito prazer, Jacinto. Sou o João. Desde já quero dar-te os meus parabéns pelo teu trabalho e agradecer-te pela escolha que fizeste aqui pela "Kapa7"» - João não resistia a um bom trabalho de relações públicas.
«O prazer é todo meu... Ouvi falar muito bem da vossa galeria, por isso a escolha foi quase como que natural» - respondeu JL, tímido e sorridente.
Este tipo ainda é um puto, pensou João. Mas ao menos teve a coragem de se lançar no sonho, não haja dúvida. Olhando para ele com curiosidade, uma pergunta assaltou João de repente: «Jacinto, diz-me uma coisa... Tens ali uma fotografia chamada «#Semblante»... Pá, qual é a história da peça?»
JL esboçou um sorriso e respondeu: «Gostaram? Penso que é o melhor trabalho que alguma vez fiz... A luz e a angular estavam a sair muito bem naquele dia e a escolha do papel de revelação também me pareceu...»
«Não é disso que eu estava a falar, pá!» - interrompeu João.
«Não? Não... estou a... perceber...» - Jacinto mostrava-se desconfortável e o som da música também não estava a ajudar a manter uma conversa séria.
«Estou a falar da modelo! Quem é ela? Onde a encontraste? Conhece-la pessoalmente» - a torrente de perguntas não seria apropriada para o momento mas João sentia que as tinha de fazer... era idiota que metade de um rosto desconhecido andasse a intrigá-lo desde o início da semana.
«Ò João, pá, deixa lá isso... O JL está lá agora para se lembrar de todas as modelos que teve a trabalhar com ele» - atalhou Mané que detestava estes pequenos assédios de João, mostrando aos outros o péssimo defeito que tinha em não se conter sempre que a sua ideia não era entendida à primeira.
«Pois... Já não sei muito bem quem era... Foi-me recomendada por uma agência com quem já não trabalho há dois anos... Se bem me lembro, era uma estudante de filosofia... sim... ela disse-me qualquer coisa sobre isso... Que fazia este tipo de trabalhos apenas para ajudar a pagar as propinas ou coisa do género» - Jacinto parecia agora mais expedito nas explicações que dava, na esperança de causar boa impressão aos seus galeristas. Ele próprio também sentia uma certa inquietação - um não-se-sabe-muito-bem-o-quê de desejo, talvez - quando se punha a recordar aqueles profundos olhos castanhos e o sorriso inquietante da, agora e ao que parecia ilustre, desconhecida.
João sentia-se um pouco frustrado. «Pronto, deixa lá, pá. Nada de importante.» - respondeu. De seguida, olhou à sua volta e resolveu ir desanuviar para o meio das pessoas. A galeria estava mesmo sobrelotada. «Mané, Jacinto, até já. Vou dar uma volta e ver se consigo vender já alguma coisa» - uma vez mais, o toque de relações públicas, qual marchand sério, pareceu-lhe uma boa desculpa.
Enquanto se encaminhava para a zona das bebidas, ia olhando para o longe, para a parede onde estava exposto o #Semblante e, de súbito, pensou: «Por esta noite quero que sejas a minha musa... Quero levar-te comigo para todo o lado». Naquela afirmação havia uma nota de romantismo quase infantil, aquela réstia de crença na magia de uma história que, cinicamente ou bem vistas as coisas, não fazia sentido algum: qualquer vendedor de sapatos hoje em dia podia ser um princípe e qualquer «chaço» a sair da sucata podia ser mais do que um dispensador de peças para um mecânico de uma oficina de bairro.
Mas, esta noite, ao pegar no gin tónico que tinha pedido, João queria acreditar.
E, nesse preciso instante, João avistou-a. Um olhar maroto, sorriso de menina irrequieta como que a preparar alguma partida... Os olhos castanhos, os dois, as sobrancelhas, também as duas, arqueadas, num tom deliciosamente inquisidor relativamente a tudo, e a boca... aquela boca, inteira, a prenunciar a frescura de um pêssego de finais de Junho... A promessa de, num beijo apenas, descobrir todo o calor de um Verão sem fim. Ela estava ali! "

Alexandre Villas-Diogo, Momentos

O folhetim que satisfaz... apenas os sonhos.

2 comentários:

AugustoMaio disse...

Folhetim que satisfaz, é bem certo. E os sonhos é o mais difícil.

quanto pesa o vento? disse...

muito bem escrito. parabéns.
gostei.
abraço.