O meu fortim foi sempre o gabinete onde descarno processos até à medula para encontrar a solução justa ou a que - quem faz as leis chama de justa - aquela que os honestos esperam e os vigaristas detestam. E embora o meu desvendar ou desnudar não importe a mais ninguém que a mim, e não faça, assim, parte das coisas importantes que aos outros interessaria saber, tenho de revelar (mais como fim último de catarse, nunca de exibicionismo, e muito menos, para alimentar a curiosidade de quem lê ou escuta) que um facto porventura vulgar, alterou o meu ritmo, os meus horários, influenciou as minhas inibições, agigantou os meus segredos, aumentou os meus medos, acelerou o meu ritmo cardíaco, e não sei se algum prazer ou gozo me deu ou dá (o que me faz duvidar desde já da sua importância, porque utilidade não tem).
Esse facto é tão simples e vulgar que se traduz no que os filmes, a escrita, as imagens, e a imaginação dos homens já esgotou: traduz-se numa mulher nua na janela, que às cinco e meia da tarde, (já noite quando inverno), invariavelmente a essa hora, abre as portadas da casa onde mora, embora distante, mas em frente ao meu gabinete, e muda de roupa sempre nos mesmos gestos, no memo ritmo.
António Sampaio Gomes, Um tiro na nuca, porque sim, A Contos Com A Justiça
António Sampaio Gomes, Um tiro na nuca, porque sim, A Contos Com A Justiça
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