- Teorias, doutor Almeida! Teorias: essa coisa de crimes continuados e de concursos... teorias. A realidade era outra: eu estava ali pela primeira vez, com uma ré sem nome, a ser julgada por não ter querido dizer... o nome! Ia-me pôr com teorias, doutor Almeida?... Não – respondeu quem perguntava -, isso só ia complicar: então eram crimes por aí fora, parecia champanhe em cascata! Sabe... olhei para o meu mestre e ele havia perdido o entusiasmo, só me sussurrou que nunca lhe tinha acontecido; olhei para o defensor e não ouvi som... e só disse: estou feito. Então, entre desânimo e silêncios, o senhor delegado permitiu-se tomar a palavra e chegou-se mais junto da cidadã, a meia distância comigo. Olhou-a com uma bonomia terna e disse-lhe, a senhora deve ter um documento em sua casa, todos nós nos esquecemos onde pomos as coisas; talvez se procurasse um bocadinho... nós esperávamos... porque sabemos que não quer tratar mal ninguém.
Os olhos do juiz mais novo esbugalhavam uma surpresa que emparelhava com a admiração de uma prematura ruga, a franzir-lhe na testa: o atrevimento do delegado! O juiz-presidente arrastou ninguém até ao silêncio. Mas logo alteou o tom, de peito cheio:
- Foi magia, doutor Almeida: a senhora, era assim que se chamava e tinham-se esquecido, disse que às vezes deixava a identidade na mesinha de cabeceira, não fosse perdê-la no ruedo, e a autoridade não lhe permitira ir à sua cata. Claro que eu interrompi o julgamento, doutor Almeida... deixei as teorias lá onde devem ficar e, passado nem cinco minutos, a senhora tinha nome, tinha os demais adereços e até tinha cartão de identidade... e tudo se resolveu. Sei lá se contra a lei!
- Sei lá! – mal se ouviu ao mais novo.
- Sei lá... – nem se ouviu ao doutor Fernandes.
- Como vê, doutor Almeida, a surpresa atacou-me na ocasião mais frágil, mas a solução -... e aí é que quero chegar – reforçou-me o entendimento: cada dia é um caso, cada caso é um olhar; depois, há sempre gente... atrás das teorias.
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Os olhos do juiz mais novo esbugalhavam uma surpresa que emparelhava com a admiração de uma prematura ruga, a franzir-lhe na testa: o atrevimento do delegado! O juiz-presidente arrastou ninguém até ao silêncio. Mas logo alteou o tom, de peito cheio:
- Foi magia, doutor Almeida: a senhora, era assim que se chamava e tinham-se esquecido, disse que às vezes deixava a identidade na mesinha de cabeceira, não fosse perdê-la no ruedo, e a autoridade não lhe permitira ir à sua cata. Claro que eu interrompi o julgamento, doutor Almeida... deixei as teorias lá onde devem ficar e, passado nem cinco minutos, a senhora tinha nome, tinha os demais adereços e até tinha cartão de identidade... e tudo se resolveu. Sei lá se contra a lei!
- Sei lá! – mal se ouviu ao mais novo.
- Sei lá... – nem se ouviu ao doutor Fernandes.
- Como vê, doutor Almeida, a surpresa atacou-me na ocasião mais frágil, mas a solução -... e aí é que quero chegar – reforçou-me o entendimento: cada dia é um caso, cada caso é um olhar; depois, há sempre gente... atrás das teorias.
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José Eusébio Almeida, A senhora sem nome e..., A Contos Com A Justiça
2 comentários:
Bravo, a apreensão da ténue linha do equilíbrio, que passa por todos os obstáculos sem partir, é a função primeira de qualquer juíz- presidente de primeira grandeza.
Belíssimo!
(antes das teorias...)
"-Sabe, doutor Almeida, a vida é um dia de cada vez e só nos ensina o que serve a esse momento: temos o estojo, é verdade, a paleta, mas a cada hora o céu ganha tons diferentes: se não soubermos misturar as cores, sai sujeira na pintura. Só que, e aí é que está o drama, não podemos misturá-las antes de olhar o céu. Vou-lhe contar o meu primeiro julgamento; o doutor Fernandes – e levando no olhar uma firme solicitação de aval, fixou pausadamente o sossegado colega – já conhece o sucedido.
(...)
-Foi exactamente o meu primeiro, a primeira ocasião que ia estar sozinho, dispensando tutor ou muleta. Era naturalmente um caso simples, meticulosamente escolhido como o mais simples, para o iniciado brilhar. Uma simples desobediência e, juridicamente pensando, uma desobediência simples. A acusada percorria as ruas mais estreitas da Baixa, com preferência pela horas soturnas da noite; ganhava a jorna como o corpo lhe ensinou e a circunstância lhe foi impondo. Se tinha chulo, não vinha ao caso... naquele concreto caso. No dia em causa, ainda que já escuro, a autoridade administrativa, presente, zelosa e devidamente fardada, sustou-a em zona pública e, certamente à falta de qualquer outra gravidade, solicitou-lhe a identificação. A polícia, vá-se lá ter a certeza do porquê, pretendia saber o nome completo, filiação e todos os demais itens e adereços da sujeita, já que, quanto à actividade propriamente dita, julgava-se perfeitamente sabedora. Muito bem ... acontece que a cidadã se recusou: que não se identificava e sequer tinha – ao menos junto a si – cartão próprio e bastante. A autoridade cumpriu com as normas e deteve a desobediente. Transportada à esquadra manteve o propósito inicial, ignorando nova ordem dos agentes, ordem clara e séria, repetida pelo graduado do posto, destinada a saber quem era e, muito além disso, a que o comprovasse.
O juiz-presidente ia recordando a história, anciã de recontada, mas invariavelmente servida com acrescentos propositados ao cimentar do interesse. Prosseguiu a empresa depois de um reajuste dorsal, quase subliminar:
-Ao final da manhã compareceu na comarca para que justiça fosse feita. O processo estava pronto, de tão simples que se mostrava, e só havia que a ouvir, certamente confessava, uns dias de multa em dose adequadamente baixa e ... caso arrumado. Vinha mesmo a calhar pois também eu estava na calha: era a altura da minha primeira vez. Certificada a simplicidade, lá fui, sozinho mas firme, vestido do preto virgem que escondia a gravata festiva. Tudo augurava um êxito primogénito: o Delegado do Procurador da República cumprimentou-me como a um ex-caloiro e o meu mestre sossegava-se ao fundo da sala, certo da inegável competência do seu pupilo: ao fim de tanto mês de estágio, quase se envergonhava de caso tão simplório. Comecei o julgamento com a solenidade de um perito, como qualquer outro começaria: que era obrigada a responder às perguntas relativas à identificação, e fazê-lo sob pena de desobediência, naturalmente. Depois solicitei-lhe o nome.
O juiz-presidente parou o relato e olhou o juiz mais novo, confirmando que o enredo não estava a ser adivinhado. Assim era: do juiz mais novo, visivelmente perplexo pela pompa da narrativa na definhez da dificuldade, só a espera transparecia.
-Aí, doutor Almeida, foi o bom e o bonito: a cidadã olhou-me sem pudor, como que sabendo ao que vinha e, sem mais nem outros dizeres, retorquiu-me que não tinha nome ou, que se o tinha, perdera-o e não pretendia dizer-mo.
-Outra desobediência – concluiu presto o juiz mais novo, entoando na sala toda a velocidade terminal dos raciocínios jurídicos, especialmente de cariz penal - ... estava a praticar outro crime.
-Quem, doutor Almeida?
-A arguida, claro!
-Claro?! A arguida nem tinha nome, doutor Almeida.
-Havia de tê-lo ... toda a gente o tem; quando se descobrisse apanhava pelos dois.
(...)
-Dois ... pelo menos, doutor Almeida, já que nós íamos eternizando o número, em sucessivas tentativas de saber quem a pessoa era!
-Pois ... podia ser um só crime, mas um crime continuado: ela não dizia o nome e a situação de incumprimento da ordem ia-se mantendo..."
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