sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Estrangeiro

Quanto a mim, estava cansado de repetir sempre a mesma história e tinha a impressão de nunca ter falado tanto. Depois de um silêncio, o juiz levantou-se e disse que me queria ajudar, que o meu caso o interessava, e, com a ajuda de Deus, faria qualquer coisa por mim. Mas antes, queria dirigir-me algumas perguntas. Sem transição, perguntou-me se eu gostava da minha mãe. Redargui: "Sim, como toda a gente". E o escrivão que, até aqui, escrevia em ritmo normal à máquina, enganou-se e teve de voltar atrás. Ainda sem lógica aparente, o juiz perguntou-me, então, se disparara os cinco tiros a seguir. Pensei um bocado e especifiquei que disparara primeiro um só tiro e, alguns segundos depois, os outros quatro. "Porque fez uma pausa entre o primeiro e o segundo tiro?", disse ele. Mais uma vez voltei a ver a praia avermelhada e senti na testa a ardência do Sol. Mas, desta vez, não respondi nada.

Albert Camus, O Estrangeiro, trad. António Quadros

1 comentário:

Passiflora Maré disse...

«No início da minha detenção, no entanto, o mais duro foi virem-me à cabeça pensamentos de homem livre. Por exemplo, sentia, de repente, desejo de estar numa praia e de correr para o mar. Imaginando o barulho das primeiras ondas sob as plantas dos pés, a entrada do corpo na água, a libertação que era para mim o banho de mar, sentia, de repente, até que ponto as paredes da prisão me cercavam. Mas isto durou apenas alguns meses. Depois passei unicamente pensamentos de prisioneiro.»
Do mesmo autor e do mesmo tradutor.

Tenho-o visitado frequentemente,caro Augusto, embora ultimamente tenha aderido à estratégia dos Nome(s)/URL