domingo, 13 de abril de 2008

Pastelaria Catita.8

Rosarinha revirava-se na cama, ao jeito duma panqueca escaldadiça. O efeito da tisana escoara-se no choro, dobrado pela angústia do ancião, ali ao lado. Não sentia culpa que lhe justificasse o tormento; de nada valia desarribar-se em desesperos. A cura era levantar-se. Escrever-lhe-ia umas verdades e o engenheiro passava a cuidar do respeito às donzelas com outra atenção.
Descobriu a bic laranja nos fundos da mesinha e aprontou-se a largar na revista de lavores o apontamento. O ponto cruz deixara em branco o espaço bastante.
Cogitou: se isto estancou antes de romance, que melhor lhe direi? Era costume copiar frases conseguidas na Crónica Feminina, mas tudo tem a sua época. Talvez lhe escrevesse uma mistura de paródia e seriedade
Ex.mo Senhor Calisto, Engenheiro.
As penas do seu desencontro voam suavemente do meu desgosto, assim como pássaros nocturnos que só no silêncio incomodam. Não sei se tem por costume desperdiçar romances antes da partida. Saiba que a alma se me baralhou e cheguei a largar-me culpas, mas não as tenho. Foi a excelência quem se apoderou do tempo decisivo e, à primeira contrariedade, viu a ocasião para o desleixo. Diz o povo, bem lo sabe, que a ocasião faz o gatuno, e vossamercê deixou-me o coração vazio, sem, sequer, uma réstia de dote que possa valorar no prego. Acordará que a razão me acompanha e que bem mais se esperaria da sua formação tão elogiada
.
Ao riscar acordará no canto de sobra, junto a um rendilhado a três agulhas, Rosarinha sentiu uma quebra de sono. Nem tempo teve de resguardar a revista: caíram as duas no colo da almofada.

4 comentários:

Anónimo disse...

"Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não
Tem uma só
Duas mesmo que é bom, ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado em baixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo,
A vida é a arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida."
Vinicius de Moraes
in "Crónica Feminina"-"Acordará que a razão me acompanha e que bem mais se esperaria da sua formação tão elogiada."- por si,claro,que até se gaba de escrever com aparo de ouro!

Anónimo disse...

"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."
Fernando Pessoa

"Um romance é uma história do que nunca foi"
...Razão tinha a Rosarinho!

Anónimo disse...

Sim.

"Dou por mim a pensar que um livro nasce de uma insatisfação, nasce de um vazio, cujos parâmetros se vão revelando no decurso e no final do trabalho. Escrevê-lo é, seguramente, encher esse vazio".

Enrique Vila-Matas, Exploradores do Abismo, Teorema, 2008

Anónimo disse...

Conheço - acho eu - a Rosarinha e só posso estar solidário. Como pode entregar-se assim uma donzela a um engenheiro taciturno? O castigo dela é ele entregar-se à escrita laboriosa e ser incapaz de uma atitude peremptória, ou sim ou não.
Vamos lá Calisto: não há mulher que aguente a timidez!