tenho pétalas de areia debruadas de espuma
onde o corpo inventou pálpebras (como aos outros)
e turvo os olhos no voo do calor que parte.
o sol já se decepou inglório
enforcado na corda recta do horizonte
duma terra que se teima redonda.
de ti resta-me agora a silhueta dos ombros
(em luta de tons com o escuro a nascer)
e o que sobra só reimagino de memória;
daí me percorro aos pés
que deixaram em areia lembranças tão suaves
feitas de veludo como as carícias de mão de mãe.
o corpo - única pertença que m'acompanha -
prostra-se em glória de gravidade
- eppur se muove -
em silêncios sem eco
pois o meu braço, há segundos infinitos
deixou de alcançar o laço do teu abraço.
no côncavo da rocha despeço-me
definitivamente do teu rosto
e se, e se pudesse
se pudesse triturava-te no caldo da memória
até ser só futuro numa outra.
amanhã chorarás com o mesmo sal
mas jurarás que não.
e eu não sei cantar
nem Como Canta A Tempestade.
soubera fazer um poema com as letras do teu corpo
e erguia uma estátua de alfabetos
ás de beijos carinhosos
zês de partidas por despedir.
ainda há dias o dia caia com o mesmo sobressalto
mas a noite beijava a praia sem medos
e o escuro só enquadrava
os quatro olhos com que dobrávamos o sono.
vou recordar que ensaiei a revolta do adeus
moldando em plasticina de afectos
até suar o cansaço da desistência
todas as letras da saudade.
- e que me sobra? se só a sobra da pergunta
- onde estarás se nem me largas nem te sinto.
deixo a praia. onde as gaivotas
adivinham o mundo por compreender
e gozam de gritos essa alegria
de não aceitar tristeza.
gostava que o futuro nem houvesse
- e não o há, sei bem -
mas teimo-o tanto como o temo.
sem ti as papoilas despedem
as cores da glória
a tradição já não é o que era
eras só tu.
se não houvesse tempo não fugias
e só me consolo
certo que nem tu nem eu nem os dois
temos ainda culpa da Criação.
(Outubro 2010)