quinta-feira, 4 de março de 2010

Momentos

(Folhetim semanal. Com este número do blogue de hoje e por apenas mais cinquenta cêntimos de paciência, os capítulos 1 e 2)

#1 "Bom dia, são agora sete horas da manhã, está na nossa companhia" - ouvia-se no rádio-despertador. A voz do locutor em altos berros, acompanhada pelo hit do top dessa semana, não queria dar mais espaço a quaisquer sonhos que pudessem ainda habitar debaixo da almofada, por onde João tentava pedir asilo político contra mais um dia que o esperava. A custo, João levantou-se, abriu a porta do quarto e atravessou o pequeno hall da suite, em direcção à casa de banho. Inclinando-se para o lavatório, abriu a torneira da água fria, depois um pouco a da quente e mergulhou as mãos na corrente amena, molhando de seguida a cara. Já mais desperto, olhou-se ao espelho e decidiu fazer a barba. Nunca deixava de se espantar com o facto curioso de lhe parecer que a sua barba estava sempre consideravelmente maior depois de uma noite de valentes copos. Talvez fosse da ressaca... A percepção das coisas saía modificada quando a recordação da noite anterior era ténue e, por isso mesmo, angustiante, obrigando-o a enfrentar um mundo muito mais real do que aquele a que se tinha entregado. Tudo era muito mais feio, mais cruel, mais ingrato. Na verdade, as inibições voltavam sempre e o que parecia ter sido uma saída elegante, uma gloriosa aventura, uma noite intensa de bem-estar perpétuo e a definição de uma nova pessoa - um rei da noite, um sultão em terreno conhecido, uma estrela de cinema em potência, quiçá - não eram agora mais do que a estúpida certeza de que voltava a estar consigo próprio - uma figura grotesca, a cicatriz dos excessos ali bem exposta. Para não falar da dor de cabeça e da náusea constante que o impelia a vomitar, por cada vez que virava a cara para o lado para passar com a lâmina por uma zona mais difícil de cortar. Voltando a mergulhar a cabeça na água, agora mais fria, tentava recordar-se do impossível. De tudo quanto tinha acontecido. Lembrava-se de uma vodcka pedida por entre uma multidão que expelia um suor perfumado - os preparativos de milhares, para uma noite que acontecia e que nela estavam ali a ser gastos, desvanecendo-se e reduzindo todos a uma igualdade espúria -, um encontrão de um segurança mal-encarado que talvez lhe tenha dito para "andar mais direito", uma cara feminina - da menina do bar - falsamente sorridente, que lhe conduzia a mão ao copo e ao cartão... Um táxi bafiento... O portão de entrada do prédio que insistia em ondular à vista. Pelo menos, não tinha havido nenhuma zaragata... Não foi vítima de nenhum assalto. Sete e quarenta e cinco. Tinha que se despachar mais depressa. A cabeça latejava-lhe nas têmporas e cada movimento que fazia, ao vestir a camisa branca ou as calças de xadrez, preto e branco, apenas lhe lembrava que devia voltar para aquela cama que ali estava, meio desfeita, terrível tentação de "apenas mais uns minutos" de descanso. "Tu estás velho, pá. Já devias saber que este tipo de coisas não são para a tua idade, caralho!" - a auto-recriminação parecia tão certa nestas alturas e, no entanto, estava sempre a cair nos mesmos enganos. "E vê lá tu, pá, se tinhas necessidade de acordares assim logo hoje... Logo hoje que tens coisas novas a chegar"... "Pareces um puto irresponsável" - e esta constatação talvez fosse aquela com que lhe custava mais lidar. Porque o que mais lhe apetecia, no contexto de dilemas tão básicos - os únicos permitidos por uma performance intelectual ainda diminuta àquelas horas e depois do fatídico serão - era, realmente, ser um puto irresponsável. Enquanto aquecia um café na cafeteira eléctrica que Paula - a antiga namorada - lhe tinha oferecido no seu último aniversário, procurava freneticamente as chaves de casa, do carro e da galeria, na banca central da cozinha que se encontrava cheia de postais, cartas, contas para pagar, pratos sujos, copos de vinho a meio - tudo fazendo parte de um cenário de horror de um fim-de-semana sem empregada e absolutamente diletante. "A dona Josefa disse que vinha hoje à tarde... Ainda bem!" - pensou, aliviado. Já a sair porta fora, o seu telemóvel tocou. "Estou? És tu Mané?" - atendeu. Do outro lado, uma voz agitada respondeu-lhe: "Ò João, pá! Mas o que é que tu andas a fazer, meu palerma? Onde é que tu estás, pá?" Meio atrapalhado, João disse: "Eh pá! É só mais meia hora e estou aí, ok?" "Tu já devias cá estar, foda-se! Andas a brincar com isto, andas, andas" - o sócio de João, por vezes, parecia pai dele. Não suportando a crítica, João desligou abruptamente o telemóvel e entrou no elevador. Em direcção à cave, a garagem do prédio, recapitulou as suas tarefas para o dia de hoje. A encomenda chegava dentro de uma hora. Às onze da manhã, tinha a reunião com o agente do expositor, ao meio-dia encontrava-se com os publicitários para dar as indicações para o catálogo e logo depois começaria a pendurar as peças. À tarde, era abrir as portas antes das três. A festa oficial seria apenas dali a três dias e ainda tinha que falar para a empresa do catering. "Que cena. Bem que podia ser eu o fotógrafo". - pensou João com algum ressentimento. De facto, desde os seus tempos da faculdade que se interessava por design, música, roupa e tudo aquilo que, segundo a sua percepção, eram os componentes essenciais de um estilo de vida pop, sempre jovem, sempre na moda, enfim, sofisticado. Contudo, como não tivesse nenhum dom especial para nenhuma das áreas assim definidas, João tomou outra opção. Ficar a olhar... Ao invés de estar do lado da criação, estava do lado de quem vendia e fazia dinheiro com a criação dos outros. Posto isto, realmente a única coisa que lhe restaria era ficar ali, captando momentos atrás de momentos. O negócio, que tinha aberto com o Mané, seu companheiro de quarto durante o curso de História, traduzia-se nos oitocentos metros quadrados de uma ampla loja na baixa, com paredes brancas e banais expositores que, quando vazios, lhe davam a sensação de apenas estar de guarda ao vácuo. Uma galeria, afinal, devia ser mesmo isso, um espaço em branco para que outras estórias, as únicas que existiam, pudessem ser contadas, desfrutadas e, sim, vendidas. Ligando a chave do carro, carregou no botão do auto-rádio e tentou apanhar a estação das notícias. Desde que lhe tinham roubado a antena a única coisa que apanhava era estática. Premindo o botão do CD, começou a ouvir os primeiros acordes de sintetizador da música de dança que o tinha acompanhado na noite anterior. Não estava a ter o mesmo efeito que na noite anterior, fosse lá ele saber - como sabia - porquê. De caminho em direcção à baixa da cidade, entre lentas filas de trânsito, foi aproveitando para fazer alguns telefonemas para os tipos do catering e convidados de última hora que ainda não tinham confirmado presença na festa de lançamento da nova exposição. Tudo certo. Já não era mau, para o começo de um dia que deveria ser muito longo. Ao chegar à galeria, Mané, um sujeito de trinta e cinco anos, gordo, cabelo preto e farta barba veio ter com ele à porta e, sem grandes cumprimentos, disse: "Já adiantei algumas coisas, mas precisava de ter algumas indicações tuas". "O gajo já chegou?" - perguntou João, referindo-se ao agente do artista. "Estava a tentar arranjar lugar para o carro, há cinco minutos" - respondeu Mané. "Bom, então, aguardamos para vermos o que ele tem para nos mostrar. Tenho algumas ideias sobre a maneira como devemos dispor as fotografias, mas não quero que esse gajo comece a fazer ondas" - disse João de olhar franzido. A dor de cabeça parecia querer dar tréguas, mas não era garantido que assim fosse. "Porra, João, tens de ter mais cuidado contigo, homem. Ainda por cima andas a sair à noite e não me convidas" - queixou-se Mané, meio a brincar, meio a falar a sério. "Tens razão. Mas olha que a noite não valeu de nada. Não se vê ninguém. Poucas gajas. Por isso não andas a perder grande cena". "Tu esperas mesmo que, numa noite de semana, alguém saia de casa? Só estou a ver alguns otários capazes disso e, mesmo assim, ter esperança de encontrar alguma coisa" - contrapôs o sócio, com uma daquelas gargalhadas tão anafadas como ele e que só o próprio sabia entoar. João lamentou-se: "Sabes, pá, começo realmente a achar que esta porra de vida não vai dar a lado nenhum. O tempo passa e é sempre a mesma cena. 'Cum camandro, pá!" De testa meio franzida, Mané respondeu: "Tu toma tininho, homem! Toma tininho e leva as coisas com calma. É como te digo, tens que ter juízo". Para o sócio de João, este era o ritual de sempre... Para ele, João era uma pessoa que parecia ter parado no tempo... que não tinha crescido e que ainda se julgava nos tempos de estudante. Isso não fazia dele má pessoa e também não era nada que o saturasse. A amizade deles era daquelas bem sólidas, feita de muitas cumplicidades e de grandes aventuras vividas juntos. João haveria de ver a sua vez chegar. Assentar com alguém e ter uma vida igual à sua e de todas as outras pessoas que, a certa altura, ao envelhecer, vêem que ser jovem para sempre, para além de ser uma maçada e uma utopia impraticável, é uma excelente moeda de troca relativamente a uma vida estável, com dinheiro ao final do mês e uma família decente. E no meio destas suas reflexões, julgou ser este um momento tão bom como outro para lhe dizer: "João, tu lembras-te daquela proposta que me fizeram para Barcelona?" "Lembro. O que é que tem?" - perguntou-lhe João, enquanto folheava descontraidamente as guias da encomenda. "Pá... Aceitei. A Teresa já começou à procura de casa e mudamo-nos para o mês que vem.". Ao olhar para João, Mané começou a perceber que talvez esta não tivesse sido a melhor altura para contar a João as novidades. "Mas ò Mané... Dizes-me isso assim? Dessa maneira?" - João parecia incrédulo. "Como é que tu querias que eu dissesse?" - Mané estava agora atrapalhado. "Foda-se! Então sempre vais? E a galeria, pá? Como é que tu achas que me vou virar sozinho???" "A minha parte, tal como está na escritura, passa para ti. Já está tudo assinado. Faltas apenas tu. O registo pode ser feito imediatamente." - Mané disse rapidamente. "Não sei o que te diga, Mané" - João sentia-se meio desfeito. "Desejas-me sorte". "Mas tu? Como professor?" - João tentava rir-se. "O que é que tem" - Mané tentava agora aliviar o ambiente, pantominando uma pose séria, a condizer com a de mestre de uma qualquer disciplina importante. "Ok, ok... Estou a ver. Vou sentir a tua falta." - o desabafo de João era sincero. "E eu a tua, João." Trocavam um olhar de sincera perda, quando, à porta assumou um sujeito banal de óculos escuros redondos. Vestindo um fato dois tamanhos acima da sua minúscula estatura, uma gravata que parecia maior que a sua cabeça de alfinete, cumprimentou ambos com um nervoso aperto de mão. Vitor Castanheira, agente do fotógrafo Jacinto Lopes, ou JL, como, confidenciou, o artista gostava de ser chamado. Após algumas piadas veladas sobre tal pedantismo, que de excêntrico não tinha nada, João e Mané fizeram uma pequena introdução sobre o espaço - de tão imenso que era e vazio que estava, a introdução realmente só podia ser pequena - e recapitularam as condições, as cláusulas e as comissões. O Castanheira parecia concordar com tudo... O artista ainda era jovem e precisava de projecção. Nada de especial. A galeria orgulhava-se de ter lançado, no ano anterior, dois novos nomes "emergentes no panorama artístico nacional" e era agora uma referência em vários roteiros turísticos da cidade. Bons clientes que eram sinónimo de boas compras, como garantiram, davam ao agente do JL, o descanso que buscava nessa luta pelos interesses do seu representado. Já passava da uma da tarde - e já após terem mandado os publicitários pela porta fora, a fim de refazerem todo o catálogo, insistindo que o mesmo precisava de "mais cor... esse esquema é coisa de meninos da quarte classe, pá" -, quando a última fotografia foi pendurada. Intitulada #Semblante, revelada em papel de arroz, em tons de preto e branco de uma nitidez aveludada e com a saturação ideal, bem como exposição e luz, representava um sorriso feminino, apenas se vendo a metade de uma cara jovem, fresca e com uns lábios irrequietos. João ainda pensou, sem olhar muito bem para o obra, "olha mais um com a mania que é o Vermeer da objectiva digital". Contudo, vista ao pormenor, aquela metade de olhar começou a intrigar João. Não havia indicação de quem era a modelo, embora parecesse ser alguém com vinte e tal anos. Também não tinha data. Mas não era propriamente esta falta de informação que o inquietava. Era a forma como aquele "semblante" se lhe impunha aos sentidos... Era como se já se tivesse cruzado com aquela pessoa, sendo a mesma várias pessoas, outras pessoas. Não comentou nada com Mané, que estava entretido a enviar mails para a namorada. Ainda lhe disse para irem almoçar ao café, mas Mané recusou. João saiu para a rua e... e, de súbito, parecia estar ainda a alucinar com os eflúvios do álcool consumido na noite anterior. Uma breve tontura tinha-se seguido à visão que teve, qual instantâneo. Ao longe, de perfil, uns cabelos pretos pareciam ocultar um rosto que ia jurar ser o mesmo da fotografia que tinha visto. Ao tentar clarear a vista, perdeu-lhe o rasto, após a passagem de um automóvel que tinha retomado a sua marcha, ao sinal verde do semáforo. Acto contínuo, teve o estranho pressentimento de que este seria um primeiro momento de outros tantos que aí viriam e que lhe mudariam a vida. Talvez estivesse numa de acreditar em partidas desse cliché chamado "destino". #2 "Boas tardes, senhor João, tudo bem consigo?" - perguntava Pessanha enquanto João puxava a cadeira de madeira escura para se sentar na mesa de mármore do costume, ali na cervejaria "Camilo com Pimenta, Lda. – Bifes, mariscos, cervejas várias, águas finas", do outro lado da rua da galeria. "Vai-se andando, Pessanha, vai-se andando" - respondeu João, enquanto sentia a dor de cabeça a instalar-se ainda com mais intensidade nas têmporas, fruto de se ter sentado muito depressa no assento de couro duro e rígido. "O que é que tens aí hoje que se coma?" - atalhou, impedindo que Pessanha começasse a discorrer sobre o rescaldo da futebolística noite europeia - algo que João apenas consentia, respondendo com lugares-comuns, em dias mais leves e por mera simpatia. Pessanha pareceu ter percebido que hoje o senhor João não estava com disposição para discutir o derby da Liga dos Campeões, respondendo prontamente com o seu forçado estilo de profissional: "Há uma salada de polvo fresquinha feita mesmo há pouco". O estômago de João protestou, vigoroso, perante tamanho despautério. Uma vez mais, Pessanha adiantou-se: "Mas se quiser outra coisa mais leve, manda-se vir o bife grelhado do costume, senhor João". "Olha, pode ser. E já agora traz-me uma água com gás fresca e o jornal de hoje, se fazes favor" - pediu João. Arriscando, Pessanha lançou a piada, ainda que a medo: "Noite difícil, senhor João?". João apenas sorriu e disse: "Oh pá. Nem me digas nada... nem me digas nada". Com isto o empregado, feliz com a pretensa cumplicidade que pensava ter criado com este cliente fiel, foi até ao balcão, gritando lá para dentro, com ares de superior hierárquico - consciente da sua posição na pirâmide profissional «do ramo da hotelaria» - o pedido feito por João. A água estava mesmo fresca. Os pequenos flocos de água gaseificada, congelada na garrafa que era guardada na arca frigorífica glaciar, derretiam-se-lhe na boca, quais pedaços de neve. Realmente, não havia ainda melhor remédio para a ressaca do que uma água mineral com gás, bem fresca. Pelo menos para ele que se achava, mais um cliché, um amante de coisas simples. E foi no meio destas suas lucubrações muito básicas, ao alcance das possibilidades deste "dia seguinte", que João notou na pessoa que entrava. Um sujeito que costumava também ir à cervejaria mas completamente desconhecido para si. Não gostava do homem, ou, pelo menos da sua figura. Sempre de blusão azul de tecido, camisa às riscas, gravata a condizer, calças de ganga e sapatos de pala, com berloque. Curiosamente não seria tal trajar, susceptível de ferir a sensibilidade de um qualquer consultor snob de moda, aquilo que lhe provocava irritação. Era, outrossim, aquele bigodinho escorreito, estreitinho, que encontrava enquadramento nuns óculos, com fundo de garrafa e demasiado redondos. Era a imagem mais odiada de João, porque de bafiento funcionário público, burocrata improdutivo. Ainda por cima, tinha o péssimo hábito de, acabada a refeição - uma sandes de queijo e um copo de vinho - palitar os dentes com a unha do dedo mindinho com uma alegria quase fetichista. João deixou-se mergulhar nos artigos de opinião da última página do jornal, como que decidindo abstrair-se daquela imagem tão gratuitamente grotesca. Pouco tempo depois chegava o seu bife grelhado com arroz branco e uma rodela de limão. Para beber pediu outra água com gás, mas "desta vez, natural, está bem? A outra estava muito gelada, pá!... Pois, Pessanha, eu sei que é a arca... Tá... Não faz mal... Obrigado". Continuava a pensar no seu avistamento desta manhã. Coincidência? Associação forçada de imagens? Sim. Seria o mais provável. "A bebida, realmente, anda-me a fazer mal, caraças" - protestou para si mesmo. Mas lá que aquele rosto o intrigava, lá isso era verdade. "Vou perguntar ao tal JL, quem é a modelo" - decidiu. Não tornou ao assunto, preferindo pensar, enquanto acendia um cigarro, no trabalho que o esperava na loja. “

Por Alexandre Villas-Diogo.

1 comentário:

DI disse...

Bem-vindo ao nível ôntico do da nossa vivência.